CAMILLO CASTELLO-BRANCO.
2.ª EDIÇÃO.
PORTO: EM CASA DE CRUZ COUTINHO—EDITOR, Rua dos Caldeireiros n. os 18 e 20.
1862.
MORRER POR CAPRICHO.
I.
II.
III.
IV.
V.
VI.
VII.
VIII.
IX.
X.
XII.
CONCLUSÃO.
UMA PAIXÃO BEM EMPREGADA.
UMA PAIXÃO BEM EMPREGADA.
I.
DE ABYSMO EM ABYSMO.
AVENTURAS D'UM BOTICARIO D'ALDÊA.
AVENTURAS D'UM BOTICARIO D'ALDÊA.
COUSAS QUE SÓ EU SEI.
COUSAS QUE SÓ EU SEI.
I.
II.
III.
IV.
V.
VI.
VII.
VIII.
IX.
X.
I.
II.
III.
A CAVEIRA.
PROLOGO.
A CAVEIRA.
I.
II.
III.
IV.
UMA PRAGA ROGADA NAS ESCADAS DA FORCA.
UMA PRAGA ROGADA NAS ESCADAS DA FORCA.
I.
II.
III.
IV.
V.
VI.
VII.
VIII.
IX.
X.
XI.
XII.
XIII.
XIV.
XV.
CONCLUSÃO.
REMATE.
PATHOLOGIA DO CASAMENTO.
PERSONAGENS.
PATHOLOGIA DO CASAMENTO.
ACTO I.
ACTO II.
ACTO III.
SCENAS CONTEMPORANEAS
Índice de conteúdo
POR
CAMILLO CASTELLO-BRANCO.
Índice de conteúdo
2.ª EDIÇÃO.
PORTO:
EM CASA DE CRUZ COUTINHO—EDITOR,
Rua dos Caldeireiros
n.os 18 e 20.
1862.
Índice de conteúdo
Porto—TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA,
Rua da Cancella Velha n.º 62.
MORRER POR CAPRICHO.
Índice de conteúdo
I.
Índice de conteúdo
Os meus amigos, de certo, não sabem o que é caçar coelhos na neve?
Não admira.
Imaginem-se em qualquer aldêa, nas visinhanças do Marão. Olhem em redor de si, e contemplem o quadro que os viajantes na Suissa lhes descrevem todos os dias, supposto que nunca sahissem da sua terra.
A primeira impressão que recebem é a do assombro. Leguas em roda, nem na terra nem no céo, se descobre uma crista de rochedo, a frança d'uma arvore, a dobra d'uma nuvem, que não seja branca, alvissima, desde um horisonte a outro horisonte.
E, depois, ha ahi em toda essa natureza amortalhada um silencio funebre. Não cantam as aves, não balam os cordeiros, não silva o buzio de pegureiro, não soam nas quebradas as campainhas da arreata de machos.
Se ouvis um rugido assobiado ao qual respondem outros, não vos afasteis para longe da casa d'onde presenceaes, com o coração confrangido, esta scena. É uma alcatéa de lobos, que descem famintos da serra, e serão capazes de vos hirem buscar á cozinha, onde naturalmente tiritaes de frio, sentados ao pé do tóro de carvalho.
Faço-vos esta recommendação porque sois uns homens afeminados, que nunca sahistes dos salões, dos botequins, dos theatros, e das praças. Aposto que se desseis de face com um lobo, de garras arqueadas, e fauces inflammadas, antes que o lobo vos désse o cordial abraço da fome, já vós tinheis perdida a sensibilidade, e consciencia da vida, e até o direito que todo o homem tem de matar não só o seu semelhante, mas até um lobo, em justa defeza!
Se eu podesse contar com o vosso animo, aconselhar-vos-hia, que em uma d'essas manhãs de neve, com meio covado de altura nos terrenos chãos, tomasseis um cajado, e, com duas finas cadellas de coelho, fosseis dar na serra um passeio d'algumas horas.
O peor que podia succeder-vos era o desvio do caminho, que só com muita pratica se acerta, e, quando mal vos precatasseis, resvalar n'um abysmo de neve, onde nem as orelhas de fóra dissessem ao passageiro que um moço, a todos os respeitos excellente, fôra alli absorvido por um sorvete dos que a natureza offerece aos amantes de refrescos, com menos economia que o
Guichard.
Afóra este inconveniente, ainda ha o dos lobos, que muitas vezes tomam conta das nossas cadellas, devoram-nas com uma perfeição e rapidez fabulosas, e, quando Deus quer, fazem dos nossos corpos um supplemento nutritivo ás nossas cadellas, deixando-nos a alma por muito grande obsequio.
O terceiro percalço, affecto á caça do coelho na neve, aconteceu-me a mim, ultimo dos mortaes, em 26 de Dezembro de 1844.
É o que tereis a bondade de procurar saber no capitulo seguinte.
II.
Índice de conteúdo
Fui convidado por alguns amigos a acompanhal-os á serra, porque o sol refrangia-se em scintillas na neve, que parecia desfazer-se em laminas de prata.
Fui muito contente da consideração que se me dava, como caçador, porque, em verdade vos digo, atirei com certeiro olho a perdizes e galinholas. Se nunca matei nenhuma, o que tambem é verdade, deve-se á pessima polvora das nossas fabricas. Em compensação, matei muito melro e tordo nas serdeiras, e consegui matar de noite uma coruja, africa que muitos caçadores famosos de certo não fizeram. Eu fui um grande homem antes de escrever folhetins! Deus perdôe a quem me torceu a vocação! Eu podia, a estas horas, ser um habil corredor de lebres, e assim tornei-me a lebre dos galgos sociaes.
Estes galgos sociaes, meu leitor, se tu és um d'elles, permitte-me dizer-te que tens o faro muito descaçado, e que eu hei-de saltar por cima de ti, quando cuidares que me abocas. Se não és galgo, sensato amigo, aqui rasgo o diploma de tolo, que te concedi, sem te levar direitos de mercê.
Agora, vai entrar a historia direitinha até ao fim.
III.
Índice de conteúdo
Subimos á esplanada da serra. Eramos seis. Dividimo-nos em tres grupos, e combinamos em nos darmos signaes com tiros no caso de nos perdermos encobertos pelo nevoeiro, que poderia de improviso esconder-nosos cabeços das serras, unicas balizas que nos serviam de guia.
Assim combinados, cada grupo, com dous cães, seguiu as pégadas dos coelhos impressas de fresco na neve. Eram muitos, e morriam á pancada, porque os pobresinhos alapados debaixo das urzes, se fugiam, eram logo mordidos pelos cães; se esperavam eram apanhados á mão. Alguns, mais previdentes, tinham emigrado para as fundas colheitas, formadas pelas sinuosidades interiores dos penedos agglomerados. A estes perseguia-os o furão, que eu levava no meu cacifo, desalapava-os, e os cães, farejando as avenidas da colheita, recebiam-os nos dentes, sacudiam-nos com o rancor do instincto, e atiravam-nos mortos aos nossos pés.
Andamos assim uma hora, tão entretidos, tão esquecidos do mundo, que nunca tão distrahida hora eu tive na minha vida, a não ser aquellas em que durmo, e sonho que hei-de tornar áquelles meus dias de candura, depois de lidar muito com a innocencia d'estas angelicas creaturas, que vestiriam, por innocentes, como Adão e Eva, se a serpente lhes não dissesse que andavam indecentes.
Ao cabo d'essa hora, toldou-se o ar, e cahiu uma segunda camada de neve.
O meu companheiro quiz logo voltar sobre os seus vestigios, porque (dizia elle) d'aqui a minutos as nossas pégadas estarão cobertas, e não saberemos caminhar para o nascente nem para o poente.
—Eu, por ora, não vou—lhe disse eu.
—Porque?
—Estou bem aqui. Acho muita poesia n'este quadro. Imagino que esta chuva de neve se transforma em chuva de fogo... Este nevoeiro, que rola em ondas aos nossos pés, e sobre a nossa cabeça, afigura-se-me o fumo do grande incendio no juizo final! Olha... não te parece que o vento espalha já as cinzas d'uma grande cidade! Não vês Sodoma lá em baixo vomitando columnas de fumo?...
—Eu não vejo nada... Acho de muito mau gosto as tuas visões... vamos embora...
—Vai tu... e quando encontrares os nossos companheiros, dá um tiro, que eu lá vou ter. Estou bem aqui; não me mudo por cousa nenhuma.
—Até logo.
IV.
Índice de conteúdo
E eu continuei a vêr as minhas visões.
Parece-me que, por esses tempos, fui poeta, muito poeta, em elevações d'alma para cousas de imaginação, que não era esta fria imaginação, que tenho hoje.
Absorvido no meu quadro do juizo final, que só uma phantasia abrasada poderia dar-me, transfigurando a neve em fogo, ouvi um tiro, e não fiz caso. Ouvi segundo, e senti um piedoso desdem por aquelles homens, prosa vil, que não tiravam partido do grandioso panorama, que a mão liberal da natureza desenrolava diante de meus olhos absortos.
Não sabeis que o nevoeiro embriaga?
É uma verdade. A cabeça enfraquece; nos ouvidos ha um zunido, que vos faz perder o rumo. Sentis uma sensação desagradavel, semelhante á do giro penoso em que a indigestão do vinho vos traz a cabeça vertiginosa.
Foi o que eu senti, quando me furtei ás minhas contemplações improprias do tempo e do lugar.
Ergui-me, e não sabia já designar a direcção que levára o meu companheiro, nem o ponto onde se deram os tiros. Desfechei a minha clavina, mas a humidade inutilisára a escorva. Os cães, que poderiam ensinar-me o caminho, tinham seguido o meu companheiro. Não desanimei.
Tal direcção pareceu-me que deveria ser a melhor, e segui-a. O nevoeiro deixava-me vêr apenas o espaço que pisava. Atravessei a lombada da serra, e comecei a descer. Escorreguei muitas vezes nos algares da encosta, e senti a neve pela cintura. Gastei duas horas, tres, quatro, descendo, descendo, sem encontrar uma povoação. Conheci que estava perdido. A neve augmentava. A noite aproximava-se, e nem um symptoma de vida! Então, sim; tive medo, e imaginei que a minha sepultura, sem solemnidade alguma, deveria encontral-a brevemente no estomago d'algum lobo.
E, de mais a mais, eu tinha fome.
Todos os provimentos, que eu levava na minha rede, eram um pedaço de brôa para o meu furão. Reparti-o entre nós. O animalsinho comeu com appetite, e pilhando-se solto, como o seu officio era desemlapar coelhos, entrou na primeira lura que viu, e fez saltar fóra um gato bravo, que espirrava diabolicamente por cima dos tojos coroados de neve.
Nunca me esqueceram os espirros d'este gato bravo!
Continuei o meu caminho, sem esperanças de encontrar pousada.
Escureceu.
Encostei-me, desalentado, a um castanheiro, e fiz da minha pobre cabeça uma cabeça academica.
Pensei muito, estabeleci varios raciocinios, que conspiraram em provar-me, que, perto d'alli, devia existir uma povoação, por isso que os castanheiros, campos, e paredes eram indicios de aldêa proxima. N'este comenos, ouvi um mugido de boi, e em seguida uma sineta, que tocava ás «Ave-Marias.»
Aquellas tres badaladas ergueram a Deus o meu espirito reconhecido. Orei com a devoção dos dezoito annos. Não vos digo mais nada a este respeito, porque me não entenderieis. Sois excellentes pessoas para devorar um romance em dez volumes; mas não lerieis, sem abrir tres vezes a bocca, uma pagina de sentimentos embalsamados do aroma do céo, que o poeta não deve nunca profanar, misturando-os a frioleiras d'uma historia, ao alcance de todas as capacidades.
Eu creio que entre vós ha entendimentos muito finos, paladares muito apurados no sabor do bello, corações muito brandos para emoções suaves. Creio que sim; mas o melhor é fazer de conta que os não ha.
V.
Índice de conteúdo
Minutos depois, achava-me n'uma povoação, onde nunca estivera. Encontrei uma velha que castigava um porco, rebelde á invocação de sua ama, com uma roca.
Perguntei-lhe que povo era aquelle.
—Alpedrinha—disse ella.
Ora, Alpedrinha distava duas leguas e meia de minha casa. Era necessario pernoitar alli. Perguntei á dita velha onde morava o parocho. Mostrou-me a casa. Pedi gasalhado ao reverendo, que n'esse momento voltava da igreja. Disse-me que subisse. Quiz saber quem eu era, e tratou-me delicadamente, quando lhe citei um medico, pessoa de minha familia.
O snr. padre Joaquim era um padre admiravel. Tinha maneiras da côrte. Vestia com muita limpeza. Fallava com prodigiosa correcção, e offerecia aos seus hospedes aguardente e biscoutos, tudo do melhor, e servido em bons crystaes e polida salva de prata.
Momentos depois que eu chegára, apeou á porta do meu sympathico sacerdote um cavalleiro, ainda moço, muito pallido e magro, com chapéo hespanhol, faxa vermelha, e botas d'agua.
Era um estudante de Coimbra, que voltava doente para sua casa, e costumava pernoitar em Alpedrinha, com aquella familia.
A primeira pergunta do academico foi esta:
—Como está a snr.
a D. Amelia?
—O mesmo...—respondeu padre Joaquim.
—E seu mano? Tem vindo a casa?
—Não senhor: desde que foi delegado para * * *, ha tres mezes, não voltou....
Eu estava ancioso por conhecer a snr.
a D. Amelia, porque até ao momento em que o estudante chegou, suppunha eu que toda a familia do parocho se limitaria a alguma ama, e alguns pequenitos, que, de ordinario, são afilhados do padre. Depois das perguntas do meu illustre companheiro de hospedagem, fiquei sabendo que n'aquella casa existia uma snr.
a D. Amelia, e um senhor delegado de * * *.
Padre Joaquim contou ao academico as minhas aventuras de caçador; disse-lhe que me tinha achado muito fino (referia-se naturalmente á magresa), e fez a apologia dos meus olhos, que, naturalmente, revelavam uma extraordinaria esperteza, espiritualisados pelo espirito de vinho, que o sacerdote me injectou nas veias marasmadas pelo frio.
Conversei com o academico. Perguntei-lhe muitas cousas de Coimbra: quantos canellões soffria um calouro; o calculo aproximado dos puxões de orelhas; a solemnidade indecente de certo vaso na cabeça.... &c. &c.
O academico respondia-me com muito agrado, e offerecia-se para meu protector em Coimbra, no anno seguinte, que devia ser o da minha partida.
VI.
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—Snr. Valladares—disse o padre ao estudante—minha cunhada ergueu-se da cama para vir comprimental-o...
—É uma grande consideração, que eu lhe não mereço; mas a delicadeza da snr.
a D. Amelia é sempre um severo preceito que ella se impõe.
Fallou bem.
N'isto, entrou uma senhora, com um ar de tanta nobreza, que me pareceu uma cousa nova. Eu não conhecia assim nenhuma. Era alta, muito magra no rosto, mas muito bella nos olhos, nos labios, nos cabellos, em tudo se via tanta formosura, tanto donaire, um senhoril tão estreme do vulgo, que eu, creança e poeta, senti-me tão acanhado como o mais boçal dos pastores de cabras d'aquella freguezia.
—Como passou, snr. Valladares?—perguntou ella com voz tremula, tossindo a cada palavra, e aconchegando da face a golla de veludo da sua capa.
—Sempre doente, minha senhora... Por não poder mais, recolho-me a casa...
—Eu bem lhe disse que não fosse... v. s.
a teimou, agora já sabe que os conselhos d'uma mulher não são sempre pieguices...
—E os de v. exc.
a nunca poderão sêl-o... E a snr.
a D. Amelia como está?
—D'este modo que vê... Tossindo sempre, sempre mal, sem descanço d'este lado, que me parece que já não vive, se não para matar o resto de vida que tenho...
D. Amelia indicava o coração.
—Porque não dá um passeio até Lisboa?—tornou o academico.
—Isso lhe tenho eu dito todos os dias—atalhou o padre.
—De que me serve Lisboa?
—São ares patrios, minha senhora. Talvez o contacto do coração com as suas amigas de collegio...
—Eu já não tenho coração para contacto com amigas nem inimigas, snr. Valladares...
—O que v. exc.
a tem é uma ardentissima imaginação, alma de poeta, que só tem a sensibilidade do que é triste, e não sabe tirar recursos da esperança...
—Esperança!...—murmurou ella com um triste sorriso, e voltando-se para mim, perguntou-me:
—Já sei que este senhor esteve em risco de passar uma noite divertida com os lobos...
—É verdade, minha senhora; mas a Providencia encaminhou-me ao paraizo, depois de me ter mostrado o inferno.
—Ora ahi tem uma resposta d'um moço, que seria pena comerem-no os lobos!...—disse o padre, desafiando um gracioso sorriso de Amelia.
—Ha-de dizer ao seu parente medico que me salve da sepultura assim como nós esta noite o salvaremos de ser victima dos lobos—disse-me ella, apertando affectuosamente a mão de Valladares, em despedida, porque a tosse exasperava-se cada vez mais.
Esta rapida apparição impressionou-me muito. Queria fazer mil perguntas; mas eu não tinha a quem. O padre e o estudante fallaram em assumptos, que me não interessavam nada. O que eu queria era a vida, a historia, os soffrimentos, a poesia d'aquella mulher. Eu tinha lido, dias antes, não sei que romance, onde vira uma mulher assim...
Appareceu um taboleiro com a cêa. O abbade fez o prato de D. Amelia. Era uma aza de gallinha, que elle mesmo lhe serviu.
Valladares tambem comeu do pucaro da doente. Eu, com o abbade, entramos corajosamente n'um coelho guisado, cuja retaguarda cortamos com um excellente caldo verde, e lourejantes castanhas assadas com manteiga.
No fim, demos graças a Deus.
O padre, segundo o seu costume, foi sentar-se á cabeceira de sua cunhada. Eu e Valladares entramos n'um quarto commum.
VII.
Índice de conteúdo
O academico tinha uma physionomia franca e insinuante. Conversava comigo sem desdenhosa superioridade. Familiarisamo-nos depressa, como dous futuros companheiros de casa em Coimbra.
Eu fui um grande fallador, n'aquella idade, em que pensava menos. O meu recente amigo sympathisou com a minha garrula eloquencia, e dava signaes de desenfado, quando naturalmente devêra querer dormir, depois de uma fatigante jornada, em dia de neve.
Eu não era rapaz que, por delicadeza, calasse a minha curiosidade a respeito de D. Amelia.
—O senhor faz-me o favor de me dizer uma cousa?—disse eu.
—Que é? quantas horas são?... são 10... quer dormir?
—Não, senhor: queria saber quem é esta snr.
a D. Amelia?
—É cunhada do padre, e casada com um sujeito, delegado em * * *.
—Isso já eu sabia... pouco mais ou menos.
—Então sabe tanto como eu...
—Mas é d'aqui d'esta aldêa esta senhora? Creio que ouvi dizer que era de Lisboa.
—É verdade... nasceu em Lisboa...
—E como veio parar aqui n'este matagal? Naturalmente perdeu-se, como eu, na serra, por causa da neve, e veio cá bater, e cá ficou! Pois eu dou-lhe a minha palavra de honra, que apenas vir luzir o buraco, retiro-me sem mais ceremonias d'este delicioso covil de cabras.
O meu amigo ria-se. Estava disposto a achar-me graça, e o leitor póde tambem rir-se, se lhe aprouver.
E acrescentou ao sorriso:
—Parece-lhe impossivel que a tal senhora viesse de Lisboa para aqui sem ser impellida por um acaso?
—De certo... Já não admira que ella tenha tosse de tisica... O que me espanta é ella viver, se cá está desde hontem!... Quando veio ella?
—Ha dous annos.
—Então é eterna... ou santa. Hei-de dizer que encontrei esta martyr a uma minha tia, que é capaz de jurar que a viu fazer milagres...
—O menino é sarcastico! Se o não visse tão inclinado a rir-se de cousas serias, contava-lhe uma historia triste...
—E eu gosto muito de historias tristes... Verá que me não rio, quando me dizem alguma cousa que me toque o sentimento. A minha familia chama-me poeta; os visinhos chamam-me tolo; não sei bem o que sou; mas o que não sou é insensivel... Vê... já não tenho vontade de gracejar... Conte-me agora a historia, que eu prometto contar-lhe outra que me fez chorar, porque é uma passagem tão infeliz, que, se eu fizesse novellas, escrevia uma.
—Talvez as escreva no futuro...
—Eu?... Deixe-se d'isso... O meu mestre de logica diz que eu sou um alarve, e o de rhetoria já me mandou ser aprendiz de alfaiate... Não tenho habilidade nenhuma. O meu gosto é lêr os sonetos do abbade de Jazente, e as quintilhas do Nicolau Tolentino. Não sei mais nada, nem quero saber... Vamos á historia, sim?
—Então aproxime-se de mim, que eu quero fallar baixo. Mas, antes de mais nada, promette não contar a ninguem o que vou dizer-lhe?
—Pois é segredo!
—É.
—Prometto...
—Pois ahi vai.
VIII.
Índice de conteúdo
—Esta senhora viveu em Lisboa até aos dezeseis annos. Hoje o mais que póde ter são vinte e dous.
—Só?! Eu calculava trinta e tantos
bons, como diz minha tia, quando quer fazer todas as pessoas mais velhas que ella.
—Pois deixemos lá sua tia, que deve ser, pouco mais ou menos, como todas as tias... Vamos com a nossa historia, e depressa, senão adormeço, e o meu curioso amigo perde a occasião de saber quem é a snr.
a D. Amelia...
—Isso de modo nenhum—atalhei eu com sobresalto—Prometto não interromper a historia.
—Pois bem. O pai d'esta senhora morreu em Lisboa, e o conselho de familia deliberou que a orphã viesse para a provincia, onde tinha tios, e o seu patrimonio em quintas.
Quando appareceu em * * *, os rapazes fizeram-lhe montaria, e disputaram a primazia no namoro. D. Amelia não aceitava, nem repellia a côrte de nenhum. Tinha o mesmo riso para todos, e fallava a todos com a mesma delicadeza.
Havia alli um rapaz que não frequentava a sociedade de Amelia, porque não frequentava sociedade nenhuma. Fôra educado em Genova, viera de lá aos quinze annos, vivera no Porto até aos vinte e cinco, e quando recolheu á provincia, d'onde sahira de tres annos, com a sua familia que emigrára em 1828, ninguem o conhecia, e elle mesmo não queria conhecer ninguem.
Chamavam-lhe celebre, exquisito, excentrico, orgulhoso, impostor, e não sei que muitas outras lisonjas do charco de certos espiritos, que não podem sahir da pequena esphera de lama, que a natureza lhes deu por homenagem.
D. Amelia viu este rapaz n'um cemiterio: leu um epitaphio que elle mandára abrir na sepultura de seu pai que o deixára em Genova no collegio, e viera morrer em 1836 á patria: comprimentou-o de passagem, respondendo a um distincto cortejo do melancolico poeta; e parece que, desde esse encontro, Amelia transfigurou-se para todos os homens, deu que pensar á sua familia, queria todos os dias visitar o cemiterio, e retirava quasi sempre mais triste, porque muito raras vezes encontrou alli o invisivel extravagante da opinião publica.
—Como se chamava elle? Eu conheço alguns rapazes de * * * que foram meus condiscipulos em logica.
—Não é nenhum dos seus condiscipulos. Já lhe disse que este sujeito veio do Porto para a provincia, com vinte e tantos annos pelo menos. O seu appellido é Côrte-Real, conhece?
—Nada, não conheço; mas ouço fallar todos os dias n'esse rapaz.
—Que ouve dizer?
—Que está em Lisboa, doudo, no hospital...
—O senhor afiança-me isso? Ha que tempo endoudeceu?
—Ha dous ou tres mezes...
—Quem lh'o disse?
—Um medico, meu parente, que o mandou conduzir para a enfermaria dos doudos.
O academico fez-me signal de silencio, e mandou-me ouvir.
—Não ouve?—disse elle.
—Ouço... é alguem que soluça...
—É ella...
—D. Amelia?
—Sim... Ouviu a nossa conversa... Tem ouvidos de tisica...
—É admiravel!... Pois o quarto d'ella não é longe d'este?
—Passam-se tres quartos, mas os repartimentos são de tabique, e eu não me lembrei de tal... Calemo-nos...
—E a historia?... Falle mais baixo, que ella não ouvirá mais nada...
—Agora, é impossivel... Aquelles soluços transtornaram-me a cabeça... Deite-se, e ámanhã fallaremos antes de nos despedirmos...
IX.
Índice de conteúdo
Á cabeceira do meu leito, estava um volume das
Viagens de Cyro, e o quinto volume d'uma
Miscellanea curiosa e proveitosa, onde encontrei uma longa poesia a
D. Ignez de Castro, que me fez dormir até ás 8 horas da manhã.
O meu companheiro, quando abri os olhos, estava sentado na cama, e escrevendo nas paginas d'uma carteira.
—O senhor está a fazer versos?—perguntei eu.
—Adevinhou.
—Faz favor de recitar, se não é segredo!
—Recito: olhe lá se entende:
Eras um anjo? Se o eras
Que torvo facho do inferno
Te queimou as azas? Diz:
Porque, tão cedo, infeliz
Cahes no abysmo eterno!... eterno!
—Entendeu?
—Não, senhor.
—Veja se entende agora:
Eras pura, quando lagrimas
Tu me déste, e me pediste...
Tu choraste aqui, choravas...
Mas porque? prophetisavas
Este abysmo em que cahiste?
—Entendeu?
—Nada... Ora diga-me os versos tem alguma cousa com a historia que ficou suspensa?
—Não, senhor; pertencem a outra, que nasceu aqui n'esta casa, e que é toda minha...
—Esta casa parece-me uma casa de novella... Estou a vêr se aqui arranjo tambem alguma historia para contar a minha tia, que está resando o quadragesimo responso a Santo Antonio por minha causa, se é que já me não resou por alma... Então o senhor não conta ao menos a primeira historia completa?
—Hei-de contar.
—Quando? Eu vou-me embora logo.
—Não vai. Já aqui esteve o padre, e disse que não sahiriamos d'aqui hoje, porque augmentou de noite a neve.
—Deixal-a; mas a minha familia, se eu não appareço, nem dou parte de mim, julga-me morto, e é capaz de me fazer officio de corpo ausente.
—Não se assuste, que o padre hontem á noite mesmo fez partir para a sua aldêa um criado com a certeza de que o senhor ficava vivo, e mais o seu furão.
—A proposito, sabe se já dariam de almoçar ao meu furão.
—É natural que sim... Ahi vem o snr. abbade; perguntemos-lhe... Snr. padre Joaquim, pergunta alli o nosso amigo se o furão ja almoçou.
—Comeu quatro ovos, e está agora brincando com minha cunhada, que é muito amiga de bichos.
—E como passou ella?—perguntou Valladares.
—Penso que melhor... Ergueu-se muito cedo: a creada disse que a vira chorar toda a noite; mas agora fui, com grande espanto meu, encontral-a com o furão no regaço, a sorrir-se como quem é muito creança e muito feliz... Sabe o senhor que...
Não sei bem o que o padre disse ao ouvido do estudante. Desconfio, pela resposta, que o resto do segredo era o receio de que ella endoudecesse.
Tudo isto, apurava-me o desejo de saber o que era a demencia de Côrte-Real, e a tisica de Amelia.
X.
Índice de conteúdo
Almoçamos.
D. Amelia esteve comnosco alguns minutos, ouvindo não sei que palavras a meia voz, do meu amigo, inintelligiveis para mim, supposto que ahi se fallasse duas ou tres vezes n'uma D. Miquelina. Tudo mysterios!
O padre foi dizer missa. D. Amelia foi com elle. Fiquei com Valladares, tremendo de frio, ao pé d'uma bacia de brazas. O attencioso levita teve a delicadeza de nos não convidar a participarmos da sua missa, que n'aquelle dia, com tal frio, faria hereges espiritos devotos.
—Ahi vai agora a continuação da historia—disse o academico, engulindo o fumo de quatro cigarros successivos—A familia d'esta senhora é muito realista, muito fanatica, arde em odio contra os impios, que são todos, menos os sectarios de D. Miguel, e alguns, senão todos, de D. Sebastião. A familia de Côrte-Real é ultra-liberal, odeia os realistas com aquelle odio saturado na emigração, e não admitte honra, intelligencia, nem merecimento em homem que não fosse capaz de cortar as orelhas a um miguelista, se elle estiver por isso. Já vê que as duas familias detestam-se. De parte a parte no momento em que as relações de Amelia com Côrte-Real fossem percebidas, imagine o meu amigo que não hiria!
—Então elles namoravam-se?
—Pois eu não lhe disse já que sim?
vox faucibus hoesitXII.
Índice de conteúdo
CONCLUSÃO.
Índice de conteúdo
morro por caprichoUMA PAIXÃO BEM EMPREGADA.
Índice de conteúdo
UMA PAIXÃO BEM EMPREGADA.
Índice de conteúdo
I.
Índice de conteúdo
Penedo da SaudadePaço do CondemaDE ABYSMO EM ABYSMO.
Índice de conteúdo
mutatis mutandisWerthers