Mayne Reid

Os náufragos de Borneo

 

SAGA Egmont

I

Posição horrorosa

Flutuava uma vez um escaler ao sabor das vagas em pleno oceano Indico.

Dizemos em pleno oceano, porque no horizonte não se avistava o menor indicio de terra. Pela fórma e tamanho do escaler conhecia-se que pertencera a um navio mercante. Balouçava-se ao acaso na vastidão do mar dos tropicos, sob os raios dum sol abrasador, que lentamente declinava no brilhante azul do ceu.

Não tinha mastro nem vélas, e os remos pendiam abandonados, sem que mão alguma se désse ao incommodo de os levantar.

Mas, ao contrario do que se poderia imaginar, não estava vazio. Sete creaturas humanas nelle se achavam reunidas, seis vivas e uma já morta!

Entre as primeiras, quatro eram homens feitos, e destes tres pertenciam á raça branca. A pelle do quarto denotava origem asiatica.

Um dos brancos, individuo de estatura avantajada, trigueiro e barbudo, tanto podia ser europeu como americano. Comtudo, a regularidade classica das linhas do rosto, um pouco longo, fazia-o suppor mais americano do que europeu, e segundo todas as probabilidades filho de Nova York. Effectivamente não se enganaria quem tal suppuzesse. Na côr do cabello, no rosto e nas feições formava notavel contraste com o branco sentado mais perto delle.

Tinha este o cabello ruivo; o rosto, primitivamente corado, tomara um tom amarello em consequencia de continuada exposição ao sol dos tropicos.

Denotava ser oriundo do norte da Europa, e effectivamente era irlandez.

O terceiro branco, magro, esguio, de rosto quasi imberbe, faces lividas e olhos encovados nas orbitas onde se revolviam com feroz expressão, era um desses typos indecisos que igualmente se podem encontrar entre os inglezes, os irlandezes, os escossezes e os americanos. No trajo indicava não passar de simples marinheiro.

Quanto ao homem de côr, a avaliar pelo nariz achatado, as maçãs do rosto salientes, os olhos obliquos e os cabellos pretos como a aza do corvo, não podia haver duvida a respeito da sua nacionalidade. Era um malaio.

As restantes creaturas vivas constavam de duas creanças de raça branca, uma menina de doze annos e um rapaz de quatorze. Tinham quasi a mesma estatura e havia entre elles grande semelhança. Com effeito eram irmãos.

O quarto individuo, que jazia morto no fundo do barco, pertencia tambem á raça branca, e como o terceiro de que falamos, trajava de simples marinheiro. Não havia muito que o abandonara o alento vital, e os vivos, a ajuizar pelo aspecto, não deviam tardar muito em ir fazer-lhe companhia no outro mundo. Descorados e de rosto contraido, pareciam prestes a morrer de fome.

As duas creanças estavam agachadas á pôpa, com os magros bracinhos enlaçados; o homem de estatura elevada, sentado num dos bancos da embarcação, olhava machinalmente para o marinheiro morto que lhe jazia aos pés. Os outros tres homens tinham tambem os olhos fitos no morto, porém cada qual com expressão diversa.

Apesar do seu padecimento, o irlandez mostrava-se sensibilizado com a perda do velho companheiro de bordo. O malaio, com a impassibilidade propria da sua raça, parecia dizer: eis a sorte que me espera. Mas das sombrias pupillas do outro branco dardejava um olhar de gula, proprio de cannibal.

Descripta a scena, é necessario explicar as circumstancias que a tinham motivado.

O homem de barba escura era o capitão Redwood, patrão dum navio mercante, que navegava no archipelago indico. O irlandez era o carpinteiro do navio; o malaio, o piloto e os dois restantes faziam parte da marinhagem. Finalmente, os pequenos Henrique e Helena eram filhos do capitão que, viuvo e sem parentes chegados a quem pudesse confial-os, se vira na necessidade de os trazer comsigo para as Indias Orientais.

Em viagem de Manilha, capital das Philippinas, para a colonia hollandeza de Macassar, nas ilhas Celébes, o navio, apanhado por um tufão, naufragara nos mares vizinhos. A equipagem salvara-se no escaler de que já fizemos menção.

Apesar de não morrerem logo afogados, nem por isso deixaram os marinheiros, na sua maioria, de ter por sepultura o seio das ondas, depois de longos soffrimentos causados pela fome, pela sêde e por toda a especie de fadigas. Haviam succumbido uns após outros. Só seis sobreviviam, mas esses seis não eram mais que esqueletos cuja existencia miseravel parecia estar no fim.

Deve parecer extranho que as creanças agachadas á pôpa, tendo em vista a sua tenra idade, principalmente a menina, supportassem aquelles terriveis soffrimentos como os mais rudes marinheiros da tripulação. Não admira. Está averiguado que o homem feito perde as forças e succumbe mais depressa, por falta de alimento, que a creança, ainda a de idade mais tenra.

O capitão Redwood devia á sua forte organização o ter resistido, mas tambem por certo lhe incutira animo e forças a presença dos dois filhinhos.

A affeição que lhes votava, os receios que o assaltavam acerca da futura sorte das creanças, e igualmente a idéia do dever haviam-no feito reagir contra o abatimento physico e moral.

Podem contribuir para a conservação da existencia os sentimentos do coração. No irlandez tinham elles produzido esse maravilhoso effeito. Apesar de simples carpinteiro a bordo do navio de Redwood, votava ao capitão um affecto quasi fraternal. Era um dos homens mais antigos e de mais confiança da equipagem e longos annos de serviços haviam robustecido entre elle e o seu chefe uma verdadeira amizade. Este sentimento chegara a abranger as duas tenras creaturas que, de mãos entrelaçadas, estavam á pôpa do barco.

Quanto ao malaio, as privações não lhe tinham impresso no rosto tão profundos vestigios como no dos europeus, fosse porque de facto a sua organização resistisse mais aos soffrimentos, fosse porque a côr da pelle não se prestasse tanto á manifestação desses soffrimentos. Em todo o caso mostrava-se vigoroso e capaz de manejar o remo desembaraçadamente. Se todos estavam destinados a perecer no barco, não restava duvida de que havia de ser elle a ultima victima.

O homem de olhos encovados, pelo contrario, parecia destinado a ser a primeira.

Por sobre este grupo consternador, imagem completa da mais lugubre miseria, brilhava o ardentissimo sol dos tropicos. Em roda, e tão longe quanto a vista podia alcançar, extendia-se tranquillo o ocoeano, liso como um espelho e scintillante aos raios do astro do dia como se fosse de metal derretido.

Por baixo, atravez da agua transparente e azul como a saphira, illuminada a grande profundidade pelos raios de ouro, entrevia-se outro firmamento, outro ceu povoado de extranhas creaturas, Não eram porém aves; dir-se-iam dragões, animais fantasticos, entre os quais se distinguiam o piloto, a remora e um tubarão-martelo.

No meio desta immensidade a embarcação não era mais que um ponto. Separada dos monstros formidaveis que povôam estes mares por alguns pés apenas de agua limpida atravez da qual elles podiam saltar com a rapidez do raio, estava isolada e perdida. Nada se avistava, nem terra, nem rochedos, nem siquer um navio, nada que pudesse restituir um vislumbre de esperança aos pobres naufragos!

Em volta, por cima e por baixo, tudo brilhava, tudo resplandecia, em contraste com o gelido terror, cada vez mais temeroso, que lhes opprimia o coração.

Immersos em funebre silencio, os naufragos relanceavam de quando em quando um rapido olhar para o cadaver que jazia no fundo do escaler.

II

A sepultura do marujo

Alguns dentre elles calculavam quanto tempo poderia decorrer até que tambem ficassem prostrados sem vida, e olhavam-se uns para os outros, como a dizer:

— Está tudo acabado! nada ha que fazer, nada que esperar!…

Num desses momentos o capitão Redwood e o irlandez, impressionados com o brilho que observavam nos olhos do marinheiro restante, trocaram um olhar significativo. Os modos extranhos do marinheiro desde a vespera que despertavam ao mesmo tempo no espirito do capitão e no do irlandez graves receios a respeito do seu estado mental. A morte do que jazia no fundo da embarcação — o nono que morria após o naufragio — tornara-o um pouco mais tranquillo. Conservara-se sentado no seu banco, sereno, os cotovellos apoiados nos joelhos e as faces nas palmas das mãos. Mas a selvajaria que se manifestava em seu olhar parecia ter augmentado desde que se puzera a contemplar o cadaver do companheiro.

Após um momento de reflexão, o capitão fez um signal ao carpinteiro e disse em voz baixa, de modo que não despertasse a attenção do louco.

— Murtagh, é inutil conservar aqui este cadaver por mais tempo; demos-lhe a sepultura que Deus concede aos marinheiros.

— Sim, capitão Redwood, tem razão, redarguiu o irlandez; será o nono que lançaremos ao mar! Toda a tripulação do velho navio já lá vae, excepto nós tres, os pequenos e o malaio. Se o senhor capitão não vivesse ainda, eu diria que os bons vão adeante, porque esse patife parece que ha de ser o ultimo…

Receando o effeito destas imprudentes palavras, não no malaio, mas no marinheiro louco, que aliás parecia não as ter entendido nem siquer ouvido, o capitão interrompeu-o com um gesto, e depois, baixando a voz, disse-lhe:

— Levante-o pelos hombros que eu o levanto pelos pés, e deixemol-o cair muito devagar na agua sem imprimir nenhum balanço ao barco. — Saloo, não se levante; não precisamos da sua ajuda.

Estas ultimas palavras foram dirigidas ao malaio na sua propria lingua, afim de que só elle as pudesse compreender.

Como o leitor deve ter adivinhado, foi com receio de occasionar alguma crise violenta no louco que o capitão recommendou a Saloo, sentado junto delle, que não se mexesse. O taciturno indio piscou os olhos em signal de assentimento, sem parecer dar atenção ao que se passava.

Então, levantando-se sem fazerem ruido, o capitão e o carpinteiro tomaram o cadaver nos braços. Apesar de muito debilitados, o fardo pareceu-lhes leve; o morto era um verdadeiro esqueleto. Encostaram-se por um momento á borda da embarcação, ergueram os olhos ao céu como numa prece mental e fizeram devotamente o signal da cruz. Depois levantaram o corpo, extenderam os braços para fóra do barco e deixaram lentamente cair o morto na agua.

Na face liquida formaram-se momentaneamente algumas pequenas rugas, semelhantes ás que produziria um leve pedaço de madeira que mergulhasse. Apesar de ter sido quasi nullo o ruido da quéda, não deixou de produzir effeito tão prompto como violento. O marinheiro, cuja intervenção se procurara evitar, ergueu-se com um grito estridente, que se prolongou ao longe pela serena amplidão dos mares.

Dum salto que fez pender o fragil barco de um modo assustador, correu para o lugar donde o cadaver fôra precipitado, extendendo os braços por cima da cabeça como se quizesse mergulhar após elle para o trazer para cima.

Mas o que elle viu o deteve por um momento. O cadaver afundava-se oscillando vagarosamente. A camisa de algodão azul ia perdendo o tom vivo, á medida que o corpo ia descendo, e uma creatura saida da sombria profundeza do Oceano avançava apressada ao encontro do corpo.

Era um tubarão dos que chamam martelo, esse horrendo e terrivel habitante do mar das Indias. O monstro, cujos olhos enormes dardejavam um fulvo brilho por baixo de duas protuberancias em fórma de faces — protuberancias que lhe dão a singular semelhança com um martelo de ferreiro — nadava em linha recta para a sua presa. De repente, uma especie de chuva de perolas azuladas foi expellida de dentro da agua, encobrindo ao mesmo tempo o peixe vivo e o marinheiro morto. Atravez desta nuvem irisada, podia-se distinguir um pallido clarão phosphorescente, semelhante ao relampago que rasga o nublado ceu. Pouco depois appareceram flocos de espuma e afinal tudo recaiu na anterior tranquillidade.

Foi um espectaculo aterrador, se bem que poucos segundos durasse, e quando a improvisada neblina se dissipou os naufragos sondaram a profundidade transparente, mas nada viram.

Os restos mortais do pobre marinheiro tinham desapparecido, levados para alguma sombria e mysteriosa caverna do fundo do oceano.

III

O marinheiro louco

O capitão Redwood e o irlandez ficaram dolorosamente impressionados com o horrivel espectaculo que acabavam de presenciar. Até as creanças se ergueram em sobresalto e olharam com assombro para a agua. Nem o impassivel malaio, aliás bem acostumado a scenas tragicas, pôde olhar para as aguas agitadas sem sentir horror.

Deixaram-se todos cair outra vez nos bancos. Só o marinheiro louco ficou em pé, contemplando as vagas, como se nellas procurasse vestigios do que acabara de se passar.

Com olhar fixo e persistente parecia querer penetrar no mais fundo do oceano. Se restassem aos companheiros algumas duvidas a respeito da loucura do infeliz, o seu aspecto naquelle momento de todo lh’as desfaria. Passado um instante, soltando um grito mais selvatico e vehemente que o primeiro, saltou para um dos bancos da embarcação, e tomou a postura de quem se vae lançar á agua. Não havia que duvidar da sua intenção. O capitão, Murtagh e o malaio levantaram-se ao mesmo tempo para o agarrarem.

Era já tarde.

Antes que tivessem tempo de lhe deitar a mão, o insensato já conseguira realizar o seu projecto. Nenhum se sentiu com forças para mergulhar após elle e tentar salva-lo. Segundo todas as probabilidades, taes esforços seriam infructiferos. Talvez até que o frenesi, que levara o louco a precipitar-se na agua, actuando ainda no seu espirito, o incitasse a arrastar outra victima para o abismo.

Contidos por esta idéia, conservavam-se todos de pé, esperando que o marinheiro reapparecesse.

Com effeito tornou a apparecer, mas a grande distancia.

A brisa fôra-se pouco a pouco levantando e fizera avançar a embarcação. Quando se tornou a descobrir a cabeça do marinheiro acima das vagas franjadas de espuma, o infeliz estaria a uns cem metros a barlavento do escaler. Não se achava tão longe que não se lhe pudessem distinguir perfeitamente as feições, cuja apparencia mudara como por encanto.

Á expressão desvairada da loucura succedera a do medo, ou, melhor, do terror. A immersão na agua profunda e fria exercera acção efficaz no cerebro febricitante do pobre insensato e operara nelle subita reação. O tom aterrado com que bradava agora por soccorro demonstrava claramente que comprehendia o perigo da situação que elle mesmo creara.

Os seus gritos foram ouvidos. Murtagh e o malaio deitaram-se aos remos, ao mesmo tempo que o capitão corria á pôpa e lançava mão ao leme. Num instante virou de bordo o escaler e começou a dirigir-se para o nadador, que da sua parte nadava para elle tão depressa quanto as forças lh’o permittiam.

IV

O albatrós

Parecia facil recolhel-o a bordo. O unico ataque a recear era o do tubarão. Calculava-se, porém, que o monstro, occupado ainda em devorar a presa recente, não procurasse novas victimas.

É verdade que podia muito bem succeder que naquellas paragens houvesse outro tubarão ou muitos até; mas só tinham descoberto aquelle nas proximidades do escaler.

Em todo o caso, apesar da fraqueza dos tripulantes e da difficuldade com que remavam contra o vento, approximavam-se do infeliz nadador, se bem que muito lenta e difficilmente.

Haviam já percorrido metade da distancia; apenas meia amarra os separava do marinheiro, que luctava heroicamente com as vagas. Não se via nem tubarão, nem peixe de especie alguma. Sómente no ceu pairava a grande altura uma ave de prodigiosas dimensões, cujas azas recurvas como a lamina de uma cimitarra, denunciavam logo um albatrós.

Era o grande albatrós dos mares da India, que attinge quasi as dimensões do condor da America do Sul e cuja envergadura excede em tamanho a envergadura das maiores aguias.

Os naufragos deitaram á ave um olhar indifferente, porque o que os preocupava era o tubarão.

Continuaram por isso a examinar a liquida planicie, procurando devassar-lhe a azulada profundidade.

Não avistavam monstro algum; tudo parecia favoravel, e a despeito dos gritos lastimosos do nadador, que mal tinha forças para se sustentar á tona d'agua, os tripulantes do escaler contavam salval-o.

Só lhes faltava percorrer um quarto de amarra; impellido pelos remos, o escaler continuava a avançar.

Mais cinco minutos e alcançariam o companheiro e mettel-o-iam dentro do barco.

— Pobre rapaz, disse o capitão Redwood, parece completamente restabelecido da sua loucura, e talvez possamos salval-o.

O irlandez ia abrir a boca para responder com algumas palavras de esperança, quando reboôu um grito de Saloo, o qual parou de remar como se as forças lhe faltassem de repente.

Tinha dado causa ao espanto e ao grito do malaio uma sombra que os envolvera de relance, como se alguma coisa atravessasse rapidamente o espaço por cima da embarcação. Nem o capitão nem Murtagh haviam feito reparo naquilo, mas ao ouvirem o grito de Saloo olharam para a frente. E viram o albatrós voando no espaço, não com a mesma indolencia de até ali, mas com a rapidez da aguia que cae sobre a presa. Não baixava em linha recta, mas seguindo uma parabola alongada, como o aerolitho arremessado sobre a face da terra.

O passaro gigantesco, com um ruido de azas semelhante ao ranger de um cabrestante, seguia uma direcção bem definida, e via-s eclaramente que trazia em mira a cabeça do nadador.

Extranho alarido, formado de diversas vozes, elevou-se sobre o oceano. Era um grito de angustiosa surpresa, expellido pelos tripulantes da canôa, um uivo de terror, escapado ao marinheiro prestes a afogar-se, e um rouco grasnido do albatrós que parecia uma ironica manifestação de triumpho.

Quasi ao mesmo tempo ouviu-se um baque abafado; o bico acerado e potentissimo da ave penetrara no craneo do marinheiro, ferindo-o de morte com tanta segurança como a bala de um revolver.

O corpo sem vida mergulhou immediatamente.

Fôra tão rapido o vôo do albatrós e passara-se o drama em tão poucos instantes, que o capitão mal teve tempo de deitar mão á carabina.

Era já tarde para salvar o companheiro, mas não para o vingar. O tiro partiu. Ferido no peito, o albatrós foi cair uns trezentos metros do lugar onde a victima desapparecera.

— Tarde! tarde!… exclamou o capitão, largando a arma no fundo do barco.

O marinheiro não tornou a apparecer á flôr d’agua, ou se tornou, os companheiros não o viram.

Desesperados, os naufragos largaram os remos e deixaram o escaler seguir a direcção que lhe imprimia a brisa que mansamente continuava a soprar.

V

A ultima esperança

Até o dia em que o nono marinheiro morreu de inanição e o decimo foi ferido pelo albatrós, haviam os naufragos remado de quando em quando, isto é, haviam luctado pela vida ameaçada pela voragem do oceano. Daquelle dia em deante, prostrados pela fadiga e vencidos pelo desanimo, deixaram os remos ao abandono. Na verdade, de que servia imporem a si mesmos uma fadiga já inutil? Não se avistava terra nenhuma, e os infelizes ignoravam se haveria alguma proxima. E se por acaso succedesse navegar um navio naquella altura, não teriam igual probabilidade de o encontrar, quer remassem dum modo fatigante, quer permanecessem na inacção?

Por isso, em virtude deste raciocinio, deixaram pender os remos na agua, e sentados nos seus respectivos lugares, conservaram-se indifferentes a tudo e curvados sob o peso do desespero. Só o malaio se conservava attento, como se o desanimo ainda o não houvesse abatido, e com os olhos negros e scintillantes não cessava de interrogar o espaço.

Terminou finalmente aquelle dia longo e ardente, no qual pereceram os dois marinheiros, sem que se desse mudança alguma na triste situação dos tripulantes.

O sol de fogo mergulhou no seio das ondas e o seu desapparecimento foi seguido do curto crepusculo dos tropicos.

Quando as sombras da noite envolveram os naufragos, todos se ajoelharam, e o pae, collocado entre seus filhos, dirigiu uma prece Áquelle que tem nas mãos a vida de todos os homens.

As duas creanças, e do mesmo modo Murtagh, responderam amen, fazendo o signal da cruz.

O malaio, que era mahometano, tambem da sua parte não se esqueceu de dirigir supplicas a Allah.

Era o que faziam os tripulantes pela manhan e á noite, desde que haviam deixado o navio perdido, entregando-se á fragil embarcação que os protegia dos perigos do mar.

Talvez que naquella noite a oração fosse mais fervorosa que do costume, pois sentiam que seu fim estava cada vez mais proximo e que caminhavam lenta mas infallivelmente para a morte.

— Já não resta esperança alguma, não é verdade, querido pae? perguntou de subito a joven Helena.

— A esperança nunca se perde de todo! respondeu o capitão apontando para o ceu com uma expressão de desoladora eloquencia.

De feito, só no ceu é que estava a sua ultima esperança. As duas creanças levantaram-se e apertaram nos braços o pobre pae, que depoz em cada uma daquellas frontes pallidas e juvenis um beijo que podia significar o adeus supremo.

Naquella noite deu-se uma circumstancia rara nas regiões onde se achavam: o ceu cobriu-se de nuvens.

Tanto podia ser um bom como um mau presagio. Se se desencadeasse uma tempestade, a pobre embarcação correria perigo de ser submersa pelas ondas; mas se a tempestade fosse acompanhada de chuva, poderiam talvez apanhar um pouco de agua no fundo do barco, o que era talvez a salvação para individuos que estavam a morrer de sêde.

Finalmente, a esperada tempestade desencadeou-se, mas sem ser acompanhada de chuva.

No dia seguinte muito cedo começou a soprar uma brisa fresca.

Era o primeiro bom vento que os naufragos apanhavam depois que estavam no escaler, pois soprava exactamente na direcção que elles tinham intenção de seguir.

Com o refrescar da brisa, que lhes fazia o effeito de gelo na fronte a arder em febre, o capitão sentiu renascer um pouco a esperança. Succedeu o mesmo ao malaio e a Murtagh.

— Se tivessemos ao menos uma vela… disse o capitão suspirando.

— Uma vela, capitão? E isto para que serve? replicou Saloo em mau inglez, apontando para um encerado que jazia no fundo do escaler. Por que não havemos de fazer uma vela deste encerado?

— Effectivamente, observou o irlandez.

— Sim, Murtagh, volveu o malaio, ajude-me; vamos fazer um mastro com um remo; não nos levará muito tempo a pol-o ao alto.

— Muito bem, Saloo! exclamou Murtagh lançando mão dum dos remos, ao mesmo tempo que o malaio levantava o encerado e o sacudia para lhe desfazer as dobras.

Com a dextreza dum experimentado marinheiro, Murtagh bem depressa firmou o remo entre duas cavernas do barco e o amarrou solidamente a uma das grossas taboas que serviam de bancos. Com auxilio do capitão o encerado foi desdobrado e amarrado por uma ponta á parte superior do remo, formando assim uma vela tosca.

No mesmo instante o improvisado apparelho apanhou vento, bojou, e ao seu impulso o barco fendeu rapidamente a vaga, deixando após si luminoso sulco na superficie phosphorescente do mar.