Tradução de
Monteiro Lobato
SAGA Egmont
Lágrimas de homem
Translated by Monteiro Lobato
Original title: Sorrell and Son
Original language: English
Os personagens e a linguagem usados nesta obra não refletem a opinião da editora. A obra é publicada enquanto documento histórico que descreve as percepções humanas vigentes no momento de sua escrita.
Cover image: Shutterstock
Copyright © 1925, 2021 SAGA Egmont
All rights reserved
ISBN: 9788726873160
1st ebook edition
Format: EPUB 3.0
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This work is republished as a historical document. It contains contemporary use of language.
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M ala velha e de correias ressequidas. Sorrell enchera-a demais e agora fazia força para fecha-la. Se a correia rebentasse…
— Kit, venha sentar-se em cima.
O pequeno estava escarranchado numa cadeira á janela, com a atenção dividida entre seu pai e um futebol de moleques na rua — rua Lavander.
Christopher, um menino moreno de onze anos, atendeu e sentou-se sobre a mala, o rosto, até então serio, subitamente iluminado de um sorriso. Ao dobrar o joelho pôs em evidencia o lustroso da calça.
— Cuidado! avisou Sorrell.
Os cabelos negros do pai confundiram-se com os cabelos castanhos do filho; e ali acurvado sobre a mala, no seu terno de sarja azul marinho tambem lustroso, rosto muito atento e sem cor, aquele homem alto e magro dava a impressão duma criatura gasta e surrada.
— Uma correia foi. Agora a outra. Devagar…
Sorrell, já meio sem folego, falava aos sacões, enquanto procurava afivelar a segunda correia. Se se rompe… A fechadura era só aparencia. Seu resfolegar fazia-se audivel.
— Arre!
Estava de joelhos e como erguesse os olhos para a janela, por onde aparecia uma nesga de ceu por sobre o telhado fronteiro, sua posição sugeria o acaçapamento duma criatura que viesse de escapar duma pata gigantesca. Nos ultimos tres anos, depois da desmobilização, a vida tinha-se-lhe apresentado como um rolo compressor que o reduzira a uma coisinha furtiva, arquejante, tonta, medrosa, ressentida e atolada na lama. Bem; acabava de conseguir uma pequena vitoria: fechar aquela mala rebelde. Iam esgueirar-se para longe da sombra temerosa do rolo; qualquer coisa surgira a ajuda-lo — a ajuda-lo a salvar o seu ultimo terno feito sob medida, o seu filho Kit e o pouco mais que remanescia do bom tempo.
Uf! Sorrell passou a mão pelos bigodes curtos, com os olhos na mala.
— Pois é isso, meu velho.
Disse-o sorrindo e Kit concordou, irradiando outro sorriso. Deixar aquele horrendo quarto, naquela horrenda rua era para o menino uma gloriosa aventura. Estavam de viagem para o interior.
— O letreiro agora, papai.
— Sim. “Sorrell & Filho, passageiros, Staunton”.
— E como é para levar isto á estação?
Sorrell ergueu-se, espanejando os joelhos. Cada noite dobrava cuidadosamente aquela calça e a punha entre jornais sob o colchão.
— Já falei com Mr. Sawkins. Vem busca-la amanhã cedo.
Porque Sorrell ainda mantinha o vinco das calças e não chegara ao ponto em que um homem olha com desatenção o transporte da bagagem. Ainda havia coisas que não fazia. Era um cavalheiro. A sociedade tentava lança-lo para a massa comum dos “desempregados”, mas Sorrell pendurava-se, resistia, recusava-se a cair. Porisso ia o carrinho de Mr. Barrow transportar a sua bagagem.
— A que horas sai o trem, papai?
— Dez e vinte.
— E a que horas chega a Staunton?
— Lá pelas tres.
— E onde vamos ficar?
— Oh… arranjarei um quarto, antes de assentar as coisas com Mr. Verity. Ele pode querer que moremos lá mesmo, em cima da loja.
Havia momentos em que Sorrell se acanhava da presença do menino. A pose que adotara diante do pequeno Christopher datava de antes da guerra e tinha sobrevivido a varias humilhações, á fome, á penuria e ao melodramatico desaparecimento da mãe do menino. Sorrell voltou-se e olhou-se ao espelho do toucador. Alisou os cabelos com a mão. “Sobre a loja.” Sim, essa expressão custara-lhe a sair. “Capitão Sorrell M. C.” Para Christopher, ele queria permanecer isso, e pois teve vontade de explicar que a loja de Mr. Verity não era uma loja vulgar. Mr. Verity conduzia um comercio artistico — “antiguidades” — um negocio elevado, perfumado de odores historicos, não com cheiro de queijo e cebolas. E Mr. Verity, tambem, não era nenhum vendeiro vulgar — sim um tipo de romance, velho celibatario, com predileção para os homens finos quando necessitava de ajudantes. E um sentimental, sim — um sentimental patriotico. Estivera em correspondencia com a Associação dos Ex-Oficiais e por intermedio dela é que o convidara a trabalhar com ele.
Ia agora a Staunton para verificar se se harmonizariam.
Sorrell arrumou o laço da gravata e pensou na sua situação em Staunton com o filho. Devia ser franco, ou conservar o menino na ilusão de que pertenciam a um mundo diferente do comum? Podia dizer-lhe que ia a negocios com Mr. Verity e que hoje em dia as lojas de antiguidades estavam muito em moda.
Gritos na rua vieram perturbar-lhe a meditação. Alguem tinha feito um goal e alguem protestava, alegando nulidade.
— Diabo de meninos barulhentos…
— Papai, murmurou Christopher, terei de ir á escola em Staunton?
— Sem duvida. Espero que haja lá alguma boa. Verei isso depois de arrumar meu negocio com Mr. Verity.
— Mas será escola de gente fina, papai?
— Oh, sim, deve ser.
Houve uma pausa na aventura, porque naquela ultima tarde em Londres nada tinham a fazer e nos dias quentes a rua Lavander 1 não cheirava á plantinha desse nome, sim a um misto de repolho cozido, peixe, estrume de cavalo e sebo rançoso. Era uma rua sufocante. A roupa e o corpo dos seus moradores como que tresandavam.
O menino estava com o imaginado “cheiro do interior” no nariz.
— Vamos sair.
— Para onde?
— Passear pela beira do rio.
Sairam, misturando-se por um momento à malta de moleques que chutavam uma bola de futebol feita de papel. Kit levou um tranco mas reagiu com alguma vivacidade, fazendo um daqueles vociferadores cair na sarjeta, mas sem que desse por isso, tão absorto estava nos passes da bola.
Sorrell notou que seu filho corara, sinal de que se sentia muito superior àqueles moleques da rua Lavander. Não queria nem que o tocassem.
— Ficaremos livres disto amanhã, meu filho.
— Que bom!
Sorrell ainda estava pensando na escola para o menino quando parou na ponte, de Hungerford e encostou-se á guarda de ferro. Tinha que ser escola publica, coisa que tanto ele como o filho detestavam por diferentes razões. O pai, por orgulho; o filho, porque significava contacto com crianças do comum e ele não era do comum. Sentia as nauseas morais dum menino que aprendera a tomar banho, a usar lenço e a não gritar “está roubando” durante o calor dos jogos.
Sorrell meditava, sonhava, e Christopher tinha os olhos no movimento do rio — numa embarcação de recreio, a vapor, num homem conduzindo uma barcaça numa lancha da policia de rumo ás arcarias cinzentas da ponte Waterloo. Para Sorrell a cena era profundamente familiar, e no entanto amargamente estranha. A atmosfera nevoenta, através da qual se coava a luz mortiça do sol, era a mesma das outras tardes, mas quão diferente! Seus olhos interiores olhavam através dos olhos da carne. Londres sempre lhe parecera mais bonita ali, vista da curva do rio. Gostava do tom violaceo das luzes, do difuso domo da catedral de S. Paulo, semelhante á metade duma bolha magica; gostava das velhas torres, do vermelho surrado da cervejaria Lion, da opulencia dos hoteis Cecil e Savoy, das verdes arvores dos jardins de Charing Cross.
Lembrava-se de que havia jantado e dansado no Savoy.
Grandes dias! O uniforme, e mulheres que pareciam mais que mulheres, naquelas noites sequiosas de vida, quando chegava do “front”, de licença. Odaliscas!
Mulheres! Como andava farto de mulheres!
Recordou-se da noite em que levara a esposa ao Savoy. Fazia já dois anos que ela o abandonara, evidentemente por considera-lo um “fracasso”. Não foi preciso que o dissesse. E todo aquele desmoronamento depois da guerra, a maré vazante dos loucos entusiasmos, as mulheres voltando-se para os ricaços que tinham permanecido longe da luta, o estonteamento, a amarga sensação do errado, do sangue derramado em proveito dum feroz materialismo avido de dinheiro.
Sorrell olhava para o rosto do menino.
— Sim, a vida é um avança, pensou ele, mas um avança organizado. O essencial é não perder o pé e lutar, e não deixar-se pisar. Felizmente ele só tinha aquele filho.
Kit, de boné na mão, estava sorrindo para qualquer coisa, todo frescor e vitalidade. Para ele a vida era uma aventura em inicio. Via o rio e a cidade no esplendor de sua força e misterio. O Cecil e o Savoy eram-lhe ainda edens de maravilhoso interior desconhecido. Sorrell, amargado pela crueza da luta pela existencia, sentiu por ele um subito acesso de ternura.
— Seja lá como for, disse consigo, hei de ensinar-lhe a agir no eterno avança da vida melhor do que o ensinaram a mim. Afinal de contas, somos nós hoje mais honestos em nosso egoismo. O problema não é amar ao proximo, mas não deixa-lo pisar na gente. Cooperação no toma-lá-dá-cá, organização do agarrar. E sempre com qualquer especie de arma na mão. O indefeso está perdido.
De pé ali ao lado do filho, Sorrell sentiu-se completamente indefeso. Que era ele, senão um cabide de dois braços com mãos na ponta, e um cabide fragil, mal trajado? Pensou em seus ferimentos — ferimentos no corpo e na alma.
Seus olhos encontraram os de Kit e sorriram.
— Papai, ha rio lá em Staunton?
— Um pequeno, sim.
O nicho em casa de Mr. Verity talvez tambem fosse minusculo, mas era pelo menos um refugio no horror do precipicio social.
Sorrell e o filho chegaram a Staunton mais ou menos ás tres da tarde.
No meio do barulho de latas de leite vazias, Sorrell dirigiu-se ao homem da estação que estava removendo sua mala do carro bagageiro, mas ou não foi ouvido ou o bruto não se dignou a dar tento ás suas palavras.
— Olhe, cuidado, hein? As correias estão ressecadas…
O carregador tirou a mala e com brutalidade deixou-a cair na plataforma — e o que Sorrell temia aconteceu: as correias arrebentaram; a mala abriu-se, houve extravazamento.
— Eu não disse?
Aquilo entristeceu Sorrell. Mau agouro. Curvou-se para apanhar um pé de sapato, uma escova de roupa e a lata de fumo, e tambem para acomodar uma manga de camisa que ficara de fora. O carregador, arrependido dos maus modos, baixou-se para ajuda-lo.
— Vou ver um pedaço de corda. Essas correias devem estar podres.
Christopher olhava, enquanto o pai e o carregador mexiam naquilo. O incidente tocara o menino, como se não fosse a mala, mas sim seu pai que se tivesse aberto ali em publico, traindo o que de desarvorado lhe ia por dentro. Pobre papai! Mas mesmo no enternecimento o menino conservava o orgulho.
Sorrell aproveitava-se da contrição do carregador para outros fins. Antes de chegar a Staunton ele havia contado o dinheiro do bolso — treze xelins e cinco vintens.
— Sabe de algum comodo por aqui, decente, porém não muito caro?
O carregador estava amarrando a mala com uma corda.
— Vai ficar aqui? Que especie de acomodação quer?
— Pretendo ficar. Um quarto com duas camas, para mim e o menino. Não sou exigente.
— Tenho uma tia que aluga comodos, disse o carregador. Ha um vago em cima. Rua Fletcher. Menos de cem metros daqui.
— E poderá dar-nos comida?
— Dar comida?
— Sim.
— Pode. Olhe: eu largo do serviço nestes dez minutos. Espere-me, que o levo lá.
— Obrigado, disse Sorrell, dando-lhe os cinco vintens.
— E levarei isto ás costas, concluiu o carregador.
Na rua Fletcher n.° 7 aceitaram os novos hospedes e os acomodaram num espaçoso quarto do sotão. Havia uma janela ampla com vista para as torres da catedral e as arvores do precinto fechado — o Close; e, entre a catedral e a janela, toda a sorte de telhados e chaminés, de todos os tons vermelhos e sepias. Era um bom comodo aquele, limpo, com coberta de fantasia na cama, amplo linoleo no centro e um menor diante do lavatorio. A comoda havia perdido um pé e a maior parte do verniz, e quando uma gaveta de cima ia ser aberta era necessario escorar a de baixo com o joelho, para que aquilo não desabasse.
A dona da casa perguntou a Sorrell se queria chá, e ele respondeu, depois de consultar o relogio do pulso:
— Tenho que sair agora. Pode ser ás cinco e meia?
— Perfeitamente, disse a mulher. Com um ovo tambem, não é?
— Sim; dois ovos. E pode arranjar-me agora um pouco de agua quente?
A agua quente foi trazida num velho jarro de folha. Sorrell lavou-se, escovou-se, penteou-se, limpou o pó dos sapatos e mirou-se ao espelho. Isso de primeiras impressões é coisa importante; ele queria causar boa impressão a Mr. Verity. Seu terno azul, apesar de muito batido, era de bom corte; e as calças, bem vincadas.
— Vou dar um pulo á casa de Mr. Verity, disse ele ao menino. Enquanto isso, desfaça a mala e arrume tudo.
Christopher, sempre á janela, regalava-se na novidade e frescura de Staunton.
— Sim, papai.
— Tomaremos chá quando eu voltar e depois sairemos a passeio. Esta acomodação aqui é provisoria.
— Muito melhor que a da rua Lavander, observou o menino.
A loja de Mr. Verity ficava na praça do Mercado, e ao sair da rua Fletcher Sorrell entrou pela rua Canon, onde pediu informações a um carteiro. O homem respondeu de dedo apontado: “Na sua frente, lá”. Sorrell parecia não ter pressa. Estava gozando a excitação da novidade. Logo adiante deu com a rua Alta, de casas vermelhas, brancas e cinzentas. Viu a fachada amarela do Angel Hotel e avistou o relogio do Mercado, o seu teto holandês e a estatua de Guilherme de Orange num nicho da parede central. A praça do Mercado era uma grande área soalheira, onde a rua Alta despejava. Rodeava essa praça um casario ainda do tempo da rainha Ana. O mercado vinha da era dos Tudors. Notou uma casa baixa, revestida de vinha, e outra coberta por viçosa trepadeida. Arquitetura estranha para ele — exquisitos as janelas, os porticos, os torreões, os relevos abrasonados.
Sorrell parou diante do Angel Hotel, encantado com as vistas da velha Staunton. Bom ponto ali para ficar a ouvir os sinos. E a sentir a vida sem o furor dos grandes centros. E a lidar com coisas velhas, porcelanas e vidros, pratos de Sheffield, criações artisticas de homens que não tinham pressa. O velho Verity obviamente vivia absorvido numa atmosfera de mognos, castanheiros e maples. Devia ter uma alma forrada de brocados.
Sorrell entrou na praça do Mercado e indagou dum policia onde ficava a loja de Mr. Verity.
— E’ ali, aquela…
Sorrell olhou. Sentiu qualquer coisa de estranho na casa indicada. Era um predio de cor vermelha, cornija branca e letreiro: “John Verity — Antiquario”. Mas a loja estava fechada — portas e janelas.
Sorrell correu os olhos pelas casas vizinhas. Abertas todas, não havia razão patente para estar fechada a de Mr. Verity.
Alcançou-a e parou na porta lateral, onde viu uma argola de campainha. Puxou-a. Apareceu uma mulher de olhos vermelhos.
— Está Mr. Verity?
Os olhos da mulher piscaram.
— Mr. Verity morreu esta manhã.
Sorrell abriu a boca.
— Que?
— Sim, morreu subitamente… Deve ser do coração. Caiu da escada, oh, meu Deus…
A mulher começou a chorar enquanto a palidez de Sorrell crescia.
— Estou chegando agora, disse ele. Ia ser seu ajudante… Morreu então?
— Tudo tão repentino, disse a mulher. Se ele combinou com o senhor alguma coisa está tudo desmanchado. Sinto muito. Veio de muito longe?
— De Londres.
— Creio que perdeu a viagem. E’ bastante doloroso, mas é isso. Queira desculpar-me, sim?
E fechou a porta, deixando Sorrell plantado ali na rua, de olhos muito abertos.
Seu primeiro sentimento foi de rancor contra o antiquario por ter morrido de modo tão inoportuno, mas antes de sair da praça já havia compreendido o absurdo daquilo. Em vez de colera passou a sentir um vazio no estomago e um tremor na espinha.
Depois, tremor no corpo inteiro. Sentiu os joelhos tão frouxos que teve de sentar-se a um banco sob uma arvore. Estava tonto, mais aniquilado do que nunca. por aquele horrivel desapontamento, o ultimo da longa serie que o havia arrasado. De modo automatico levou a mão ao bolso em procura do cachimbo, mas depois de riscar o fosforo teve dificuldade em acende-lo.
Aquela sensação de nausea, tão sua conhecida, pois vinha sempre depois dos desastres, surgiu novamente. Que cansaço d’alma! Que desejo de deitar-se no chão, confessar a derrota e deixar que a lama do esquecimento o recobrisse! Tinha os sentidos embotados e tudo naquele velho burgo já não era a mesma coisa de minutos antes. Todas as belezas que sentira estavam agora transformadas em pavores. Tudo vago, cinzento. Seu desespero enchia de sombras o mundo.
Pensou em Christopher, a espera-lo num sotãozinho para o chá.
Estremeceu á ideia de apresentar-se ao menino com a cara de cachorro surrado com que devia estar.
Todas as sordidas pequenas trivialidades da vida rodeavam-no, qual moscas importunas. De dinheiro, só treze xelins no bolso; e tinha de pagar á mulher a hospedagem do dia; e tinha de comprar as passagens de volta para Londres; e havia a maldita mala para consertar. Se não voltasse para Londres, que fazer de si naquele mundo?
Sorrell sentia-se á beira do panico.
Ergueu-se. “Quando estiver no apogeu do desanimo, faça qualquer coisa”. Era um dos pensamentos de vida pratica que trouxera da França. Lembrou-se de que conquistara a sua medalha militar desse modo, “fazendo alguma coisa” quando o medo tentava paralisa-lo.
Encaminhou-se para a rua Fletcher e depois de subir a escada deteve-se diante da porta do sotão. Ainda estava tremulo. Ouviu a voz da mulher lidando lá embaixo. Curvou-se sobre o corrimão da escada e gritou:
— Estamos à espera do chá, madame.
O tom de sua propria voz o surpreendeu. Ressoava! Saira-lhe vigoroso, talvez por influição de algum elemento inconciente, mais forte que os concientes. Sorrell abriu a porta do quarto.
Encontrou o menino á janela. Já havia desfeito a mala e arrumado por ali os pertences — a camisola e o pijama sobre a cama, as escovas, a navalha, o pente e tres velhos cachimbos sobre o toucador.
Pai e filho encararam-se.
— Então, meu velho, vamos ao chá?
Kit olhou para o pai dum modo solene.
— Mr. Verity morreu, disse este; morreu de repente esta manhã e portanto… adeus Staunton! Que tal o chá agora?
O rosto do menino contraiu-se de leve. Seus labios moveram-se. Era como se estivesse vendo qualquer coisa em seu pai, qualquer coisa bela e lamentavel, uma coragem, algo que lhe deu vontade de romper em choro.
— Que pena, papai! murmurou com tremura na voz.
— Temos agora de nos arrumar como for possivel, disse Sorrell e de subito, numa especie de furia, agarrou o menino e beijou-o.
Depois do chá sairam e sentaram-se na catedral, e erraram pelo Close, á sombra dos olmos e tilias. Tudo muito em silencio, com um sol caricioso a iluminar a grama. Cisnes cruzavam á frente do palacio do Bispo. Rebrilhos na agua e nesgas de velhos muros vermelhos entrevistos por entre a folhagem das arvores. Casas do bispado, com fortalezas de segurança, mostravam, alem das grades, relanços de seus jardins. Gralhas revoavam em redor das torres, quebrando de gritos aquela tranquilidade verde.
O ocaso punha na rendilha das comas reflexos vermelhos e cor de ouro. Sorrell e o filho sentaram-se num banco, separados da agua por um gramado em rampa e um chorão já a amarelar-se. Sorrell tinha a sensação de que quem vivesse proximo ao sombrio esplendor daquelas torres e arvores jamais saberia o que fosse pobreza, fome ou inferneiras da vida. Tudo ali parecia solido e firme, incrivelmente seguro.
Ali estavam no mesmo banco aquelas duas criaturas surradas, mas o sentimento do panico abandonara Sorrell depois que desnudou a alma diante do filho.
Puseram-se a conversar.
— Não vou mais incomodar-me com o vinco das calças, meu filho. Desisto de guardar as aparencias. O primeiro trabalho que aparecer, pego-o, seja lá o que for.
E espantou-se ao ver como o menino o compreendeu. Compreendeu-o dum modo quasi feminino, terno e apesar disso varonil, da melhor varonilidade que ele conhecera na guerra.
— Por minha causa, papai.
— Capitão Sorrell, M. C.!…
— Mas para mim o senhor será sempre o capitão Sorrell, M. C., papai. Ainda que vire varredor de rua…
— Verdade?
— Verdade!
Sorrell puxou a cabeça do menino para o seu ombro.
— Parece, meu filho, que nos iremos conhecer um ao outro melhor do que nunca — graças ao pobre Mr. Verity. Fiquei tão abalado ao pensar que você poderia envergonhar-se de mim.
Kit sorriu.
— Caro papai, eu não seria capaz disso…
— Pense naquela pobre mala. Que sentiria ela quando se rompeu e derramou o que havia escondido dentro? Pois comigo se deu hoje o mesmo, Kit. Você pôde dar uma olhada para dentro de mim. Ontem — que surrado gentleman eu parecia!… Mas tudo está acabado.
Christopher meditava algum pensamento profundo.
— Eu não me importo. Contento-me com pão e manteiga.
— Sem um pouco de geleia?
— Sem nada.
— Bem, tudo está bem, porque tanto eu como você sabemos em que chão pisamos.
Morria atrás deles o sol e entre aquelas arvores as sombras se espessavam. Os Sorrells levantaram-se e sairam juntos, unidos por uma subita compreensão e pela mais franca e terna simpatia.
— Vou agora, meu filho, dizer as coisas como são; chega de faz-de-conta, Kit.
— E eu tambem direi tudo a você, papai — tudo!
— Nada de segredos?
— Nada de segredos!
Foi esse o começo da grande camaradagem entre os dois, e pela primeira vez em meses Sorrell sentiu uma felicidade que lhe causou surpresa. O desapontamento sofrido com a morte do velho antiquario desapareceu de sua alma. A aliança realizada com o filho lhe alijou do coração o senso da derrota. Sua coragem voltou. E ali naquele parque sentiu-se imensamente aproximado do filho, de corpo e alma. “Se eu não tivesse este filho”… pensava ele.
— Olhe…
Tinham entrado numa senda calçada de pedra, que seguia por trás do casario dum dos lados da praça do Mercado. Pedras tumulares e sepulturas de tijolo começaram a aparecer. Um alto vedo de cedrinho tapava a maioria das janelas do andar terreo, mas os olhos de Kit fixaram-se numa larga, em arco, bem visivel acima da sebe. Janela brilhantemente iluminada, cheia de cores — laranja, verde, azul, cereja. Uma figura de preto movia-se lá.
— Que é aquilo? indagou o menino.
Sorrell sorriu. Estavam, através dos velhos tumulos de Staunton, olhando para uma vitrina de modista da cidade e parecia que a modista recebera um sortimento de blusas de seda. No momento as desempacotava e pendurava na vitrina, onde brilhavam como joias no escrinio.
— Roupas, Kit.
— Parecem ramos de flores, disse o menino.
Atravessaram um portão de ferro e foram ter á rua Fletcher. Recolheram-se. Sorrell sentou-se a fumar enquanto Christopher se despia e pulava para a cama.
Depois que o menino adormeceu, Sorrell pousou nele os olhos e murmurou consigo:
— Sim, meu emprego é este.
Despiu-se muito calmamente, em silencio, para não acordar o filho e deitou-se-lhe ao lado, pensando em como solver os problemas do dia seguinte.
A o colocar duas fatias de bacon no prato de Christopher, Sorrell ponderou consigo que estavam fazendo aquela refeição a credito, e a não ser que algum trabalho lhe aparecesse em Staunton ele podia ser levado a visitar o “signo das tres bolas de ouro”.
Ao fim da refeição acendeu o cachimbo e correu os olhos pelas paginas de anuncio do Staunton Angus. Encontrou um “procurase” de chofer; outro, dum lavrador que queria um vaqueiro; varias donas de casa procuravam cozinheiras e arrumadeiras. Mas Sorrell conhecia suas limitações. Não servia para guiar carros, nem para tirar leite de vacas, nem para cozinhar ou arrumar. Quando pensava em seu caso, via que bem pouca coisa podia fazer na vida. Antes da guerra sentara-se a uma secretaria e ajudara a conduzir um negocio, mas esse negocio morrera em 1917 e desde então Sorrell se tornara o mais desamparado dos mortais — um gentleman forçado a não fazer coisa nenhuma.
Num canto da pagina encontrou alguma coisa que talvez lhe interessasse — uma Agencia de Empregos de uma Miss Hargreaves, rua Alta n.° 13. Sorrell rasgou o anuncio e passou o jornal ao filho.
— Vou sair.
O menino entendeu.
O n. ° 13 da rua Alta era uma papelaria, com metade da vitrina cheia de romances baratos. Defronte ficava o Angel Hotel, de modo que Miss Hargreaves, da manhã á noite vivia na dourada presença da angelical insignia do estabelecimento. Sorrell entrou na loja. Muito escura, das que nos dias sem sol tinham de conservar a luz acesa. Nenhum freguês ali, e ao ve-lo entrar a miope moça do balcão moyeu-.se instintivamente para a pilha de jornais do dia.
— Daily Mail? perguntou.
Era o que esperava que ele pedisse, e surpreendeu-se de ve-lo enunciar outras palavras.
— Julguei que isto aqui fosse uma agencia de empregos..
— E’ sim, disse a moça, volvendo os olhos na direção dum gradeado onde aparecia uma cabeça de mulher.
— Pode falar ali com Miss Hargreaves, murmurou.
Ao ve-lo aproximar-se Miss Hargreaves levantou a cabeça. Mulher quarentona, magra e tesa, de olhos escuros e ar duro.
— Bom dia.
Ele era um estranho, e para aquela mulher todos os estranhos a interessavam como novidade.
— Eu queria saber se… principiou Sorrell.
— Está procurando alguma criada?
— Não; o que eu quero é…
Mas não pôde concluir; foi interrompido por uma ondada de sedas e perfumes: uma criatura de movimentos largos e faceis, que dava a impressão de figura de romance. Sorrell olhou-a por sobre os ombros e viu uma massa de cabelos fulvos, um rosto belo, de boca vermelha e olhos azues. Havia qualquer coisa de felino naquele rosto, carregado de energia sensual. Foi como se uma golfada de vento invadisse a loja escura. Miss Hargreaves tornara-se toda olhos, para a criatura recem-chegada, e sorria, como que intimamente excitada.
— Bom dia, cara Flo. Como passa?
— Estarei com cara de doente?
Embora tão diversas, havia uma evidente simpatia a ligar as duas mulheres, uma das quais, a de cabelos fulvos, atentava em Sorrell. Pôs-se de lado, arredia.
— Esse senhor primeiro. Não vim a negocio.
Intimamente Sorrell mandou-a para o diabo. Sentia-se de olhos nele, e se fôra. seguir a linha de menor resistencia fugiria dali. Ter de tratar de seu caso diante de tal criatura era coisa que o embaraçava terrivelmente. “Para o diabo! pensou consigo. Estou ou não resolvido a começar vida nova?”
Miss Hargreaves voltava automaticamente as folhas dum livro, á espera de que ele falasse.
— Como é que ia dizendo?
— Ando á procura de emprego.
— Oh… Para si? Lamento muito. Aqui só cuidamos de criados.
— Perfeitamente, disse Sorrell, reteso como um gato amedrontado. Isso mesmo é o que quero, um lugar de valet, ou de porteiro, ou qualquer coisa assim.
Sentiu imediatamente que as duas mulheres o desprezaram, sobretudo a criatura loura de olhos azues, dona do mundo. Por que não se ia ela embora e o não deixava ali cuidando da sua vida?
Miss Hargreaves fingia correr os olhos pelo indice do livro.
— Creio que não tenho nada que lhe sirva, absolutamente nada.
— Sei…
— Por que não vai á Bolsa do Trabalho?
— Irei sim. Obrigado e desculpe o incomodo. Passe bem.
Sorrell deu abruptamente as costas á dama loura e encaminhou-se para a saida, mas antes de por o pé na soleira uma voz o deteve.
— Um momento, faça o favor…
Voltou-se e viu a dama loura saindo da loja; recuou para deixa-la passar, certo de que a sua situação de nenhum modo a interessaria, mas a mulher entreparou numa estante giratoria de cartões postais e enquanto pegava um ao acaso encarou-o com os seus felinos olhos azues.
— Serio? perguntou.
Sorrell não entendeu. O sorriso da criatura perturbava-o.
— Se está falando serio, apareça no Angel, nestes quinze minutos. Ha lá um emprego.
Disse e passou rente dele, quasi o esbarrando, e Sorrell viu-a cruzar a rua, atravessar o portão do Angel Hotel e tomar á esquerda. Sumiu-se lá dentro sem olhar para trás — e Sorrell ficou pensando porque o deixara ela sob a impressão de esmagado contra a parede. Semelhante criatura sugeria-lhe uma força imensa, uma brutal e irradiante vitalidade.
Sorrell voltou-se á Miss do gradeado.
— Desculpe-me, mas poderia dizer-me quem é esta senhora?
— Mrs. Palfrey, a dona do Angel.
— Ah! E a senhora tem ideia de que emprego pode ser?
— Querem lá um homem para a bagagem, sapatos e mais coisas…
Sorrell encarou Miss Hargreaves.
— Então por que…
— Porque não sabia da vaga. Se isso lhe serve, bom proveito, disse ela secamente.
Sorrell estava parado no passeio, olhando para o Angel.
O exterior do predio agradava-lhe. Pintura de apenas um ano e cornijas bem proporcionadas. Caixilhos pintados de marron, e ao centro uma sacada de ferro relembrativa de popa de embarcação. O anjo de ouro parecia ter descido daquela sacada. E não podia haver duvida quanto ás suas opiniões politicas. Era um solido anjo “tory” que durante gerações apontara o ceu á gente de Staunton.
A imaginação de Sorrell fe-lo ver os coches e carruagens de dantes, que haviam transposto aqueles portões, levando hospedes á historica hospedaria. Notou a grande janela semicircular, sustentada sobre colunas jonicas pintadas de branco e com cortinas de tafetá verde. Junto ao peitoril havia as classicas jardineiras para geranios, embora naquele momento não viçasse ali nenhum.
Sorrell subiu a rua até á praça do Mercado, ainda indeciso. Por um momento deteve o olhar sobre as janelas fechadas da loja de Mr. Verity, pensando no transtorno que tão importuna morte lhe causara. Em que situação tinha ficado! Caido— caido, sim, bem no fundo do abismo social.
Sentou-se num dos bancos do jardim, a olhar para os cisnes, imponentes e descuidosos seres que viviam como lhes agradava.
— Bom, refletiu ele, se estou no fundo, tenho pelo menos a satisfação de saber que não posso continuar a cair.
Pensou em Christopher.
— Prometi-lhe que me empregaria. Qualquer emprego que eu obtenha será uma escada para meu filho. Fico, embaixo, mas faço-o subir pelos meus ombros…
Levantou-se e encaminhou-se para o Angel. Entrou. Iria ficar conhecendo muito bem aquela entrada, e iria odia-la, e á passadeira de oleado do chão, e ás escadarias que levavam para o escuro lá em cima. Havia á direita uma sala de espera, com janelas para o patio. Do outro lado ficavam o escritorio, o corredor para a cozinha, o “Cubby Hole” e a porta dos fundos do bar.
Sorrell deteve-se na entrada, de costas para um mapa dos arredores de Staunton. Dois ou tres hospedes estavam na sala de espera, lendo jornais e fumando. Uma mulher vermelhaça, de blusa de couro, voltava as paginas dum guia Michelin. Sorrell notou certo desleixo por ali. Cinzeiros cheios de pontas de cigarros e fosforos queimados. Marcas de copos nas mesinhas. Uma cadeira bem precisada do estofador. Não havia negar, entretanto, uni certo ar de distinção.
— Bom dia, senhor.
— Bom dia, respondeu Sorrell.
Saudara-o um homem em mangas de camisa, de barba por fazer, cabeça enterrada nos ombros sem um pescoço de intermedio. A estatura baixa acentuava-lhe o retaco do corpo e a gordura, tão excessica que o simples enunciar daquela saudação quasi o pusera sem folego. Não era muito idoso, mas a sua obesidade fazia Sorrell pensar em certos cães velhos que não podem mover-se de tão gordos.
— Que deseja?
— Mrs. Palfrey disse-me que aparecesse.. E’ a proposito de um…
—A proposito de que?
— Dum emprego aqui.
— Ah, já sei…
Os miolos dentro daquela cabeça estufada agiam lentamente e os olhos não denunciavam nenhuma expressão. O homem moveu-se para a porta onde em letras negras se liam as palavras “The Cubby Hole”, e entreabriu-a.
— Flo!
— Helo!
— Alguem quer ver você, o homem para o lugar de Tom.
— Que entre.
Sorrell adivinhou que aquela pobre criatura era apenas uma velha casca de homem — e marido de Flo Palfrey.
Sorrell entrou de chapeu na mão. Junto á janela aberta para o patio, um grande divã cheio de almofadas carmezins, com a mulher loura no meio, ocupada num trabalho de agulha.
Não mandou que Sorrel se sentasse.
— Que aconteceu com você? indagou ela abruptamente.
Sorrell respondeu no mesmo tom:
— Isto não vem ao caso.
Os olhos da mulher pareciam examinar a sua magreza, a palidez de seu rosto solene, os seus bigodes aparados, os seus cabelos bem penteados. A rapida reação daquele homem á sua insolencia não lhe desagradou.
— Então aceita o emprego?
— Depende…
— Depende do seu orgulho, meu caro. Gentleman e ex-oficial, já sei.
Mrs. Palfrey pretendeu voltar a atenção ao trabalho de agulha, mas olhava de relance, disfarçadamente. A enorme vitalidade daquela criatura e o brilho da sua boniteza faziam Sorrell sentir-se qual inexperiente e acanhado rapaz. Qual a razão de te-lo convidado a aparecer ali? Piedade? Bom coração?
— Quero trabalhar, disse ele.
— Casado?
— Não. Mas tenho um menino.
Mrs. Palfrey olhou-o compreensivamente.
— Que o fez vir a Staunton?
— Ofereceram-me um lugar na loja de Mr. Verity. Mas quando cheguei hontem, já o encontrei morto.
A mulher refletiu um momento de olhos no trabalho.
— Deve ter sido um grande desastre na sua vida.
— Isso é comigo.
Sorrell teve a impressão de que aquela mulher se divertia em ver um homem encurralado no canto da gaiola.
— E referencias?
— Referencias poderão ser dadas pela Associação dos .Ex-Oficiais.
Meu nome é Sorrell, capitão Sorrell.
— Tem que abandonar esse capitão, pelo menos temporariamente.
— De acordo. E qual o serviço? A mulher demorou para especificar o serviço, como a experimentar a sua capacidade de resistencia.
— O senhor deve estar bastante cru. E aqui não ha recusar serviço. Se mandamos um homem engraxar sapatos…
— Ponto numero 1. Engraxarei sapatos.
— E tem que carregar malas.
— Carregarei malas.
— E manter a limpeza do quintal e da garage. Entende alguma coisa de bilhares?
— Sim, jogo.
— Otimo; então lidará tambem com o bar; deverá esfregar o assoalho todas as manhãs e ajudar a servir bebidas.
— Perfeitamente.
A mulher sentiu que o homem se retesava á proporção que ia engulindo cada um daqueles detalhes. Seu rosto palido contrastava com o seu ar de desafio. Cada unhada que recebia mais lhe acentuava a rigidez. Sorrell nem piscava.
— Nada mais?
— Oh, sim — o mais que receba ordens para fazer.
— Perfeitamente.
— E quando falar comigo, dirá “madame”.
Foi de brutal curiosidade o olhar que ela lhe deu ao dizer estas palavras. Sorrell estava, como um gladiador na arena, tombado, e aquela mulher esperava ouvi-lo pedir misericordia.
— Muito bem, madame. Cabe-me agora perguntar quanto receberei por esses serviços?
— Trinta xelins por semana, casa e comida.
— Só?
— E as gorgetas. Não se esqueça das gorgetas. Quando um empregado se mostra gentil, as gorgetas afluem… Trata-se dum emprego excelente, de que um homem pode viver.
Sorrell revirava o chapeu entre os dedos.
— E meu filho?
— Não estou empregando nenhum filho e não queremos crianças aqui. Pode aloja-lo em qualquer parte na cidade e po-lo na escola. Que idade tem?
— Onze anos.
— Muito bem, Sorrell. Isso é lá consigo. Posso preencher este lugar com a maior facilidade; em meia hora encontro dez pessoas que o queiram.
Mrs. Palfrey viu brilhar os dentes daquele homem sob o bigode aparado e compreendeu o que lhe ia n’alma. Ele a odiava. Seu impeto devia ser de esbofetea-la, e a impotencia de o fazer enchia-a de gosto. Flo gostava de lanhar com as unhas os homens, arrastando-os aos limites da exasperação, mas de muito tempo não encontrava uma vitima como aquela.
— Aceito o lugar, disse Sorrell. Quando começo?
A dama voltara-se no sofá para premir um botão de campainha. Sorrell ouviu lá nos fundos o sonido, e viu-a ficar imovel como á espera de alguem. Depois, como acordando, perguntou:
— Que é que disse?
Tudo aquilo estudado!
— Perguntei, madame, quando iria começar.
— Hoje mesmo. Tem uma hora para resolver a situação do seu menino.
— Obrigado, disse Sorrell afastando-se; mas a mulher o deteve ao ver entrar na sala o marido.
— Tomei este homem. Vai fazer o serviço do Tom.
Mr. Palfrey, estertorante e todo olhos, era a imagem muda do consentimento.
— Muito bem, minha cara.
— E’ isso, Sorrell. Pode ir — por uma hora.
Cinco minutos depois Sorrell chegava ao seu quarto na rua Fletcher, onde encontrou o filho á janela, ainda no exame dos telhados de Staunton.
— Arranjei emprego, Kit.
O menino recebeu a nova com um sorriso irradiante. Sorrell encheu-se de coragem e concluiu:
— De criado no Angel Hotel.