Tradução de Monteiro Lobato
SAGA Egmont
Diamante Negro
Translated by Monteiro Lobato
Original title: Black Beauty
Original language: English
Os personagens e a linguagem usados nesta obra não refletem a opinião da editora. A obra é publicada enquanto documento histórico que descreve as percepções humanas vigentes no momento de sua escrita.
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Copyright © 1877, 2021 SAGA Egmont
All rights reserved
ISBN: 9788726873368
1st ebook edition
Format: EPUB 3.0
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This work is republished as a historical document. It contains contemporary use of language.
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Capítulo I
O primeiro lugar de que me lembro era um campo – um pasto muito grande e bonito, com um lago margeado de árvores sombrias. À beira do lago cresciam taboas e lírios-do-brejo, de flores cheirosas e alvas como a neve. Havia uma cerca; de um lado ficavam terras de cultura; do outro, a casa do meu dono, para lá de um portão que abria para a estrada. O campo ia subindo, e na parte mais alta estendia-se um bosque de pinheiros; esse campo era limitado em certo ponto por um ribeirão de barrancas escarpadas.
Comecei minha vida mamando o leite de minha mãe porque não sabia ou não podia ainda alimentar-me de ervas como ela. Passava os dias correndo e pulando ao seu lado e de noite deitava-me juntinho ao seu corpo. Nas horas de calor íamos para a beira do lago e ficávamos de pé à sombra fresca das árvores; quando fazia frio tínhamos um telheiro de abrigo na fímbria do bosque.
Passados uns tempos aprendi a comer capim, e já minha mãe podia ser levada ao trabalho não sei onde, só voltando ao cair da noite. Eu não vivia sozinho. Éramos sete naquele campo, mais ou menos da mesma idade – sete potrinhos, alguns já bastante desenvolvidos. Meu grande encanto consistia em correr com eles no galope; também nos mordíamos uns aos outros e nos escoiceávamos com brincalhona brutalidade.
Um dia, depois de muita disparada desse gênero, minha mãe chamou-me e falou:
– Escute bem o que vou dizer. Os potros deste campo são boas criaturas, mas muito sem modos. Bem mostram serem filhos de cavalos de puxar carroça; não possuem boas maneiras. Mas você é animal de raça fina; seu pai goza de grande fama, e seu avô venceu dois grandes prêmios nas célebres corridas de Newmarket; sua avó era de gênio dócil, e a mim ninguém ainda viu brincar de coice, nem de morder. Você deve seguir o mesmo caminho e perder os maus costumes que anda a adquirir. Trate de agir em tudo como os homens mandarem e com a maior boa vontade; levante bem os pés quando no trote e nunca morda, nem dê coices. Coice, nem por brincadeira. Nada há que desmoralize tanto um cavalo.
Nunca me esqueci desses conselhos de minha mãe, uma senhora estimadíssima de todos. Seu nome era Duquesa, mas o nosso dono a tratava de “minha favorita”, o que é uma expressão de carinho.
Excelente homem, o meu dono. Tratava-nos bem, dava-nos boas rações, bons cômodos para dormir e nos fazia festas – festas de tanto coração e tão carinhosas como as usadas para com os seus próprios filhos. Todos o estimávamos muito, e minha mãe mais que ninguém. Quando o via aparecer no portão, relinchava e disparava ao seu encontro; ele dava-lhe palmadas no pescoço, dizendo: “Minha velha favorita, então como vai o pretinho?” O pretinho era eu, porque meu pêlo tinha um lindo tom de veludo negro. E como sempre que minha mãe corria a festejar o dono eu a seguia, dava– me ele às vezes um pedaço de pão, às vezes uma cenoura, que trazia de casa. Todos os cavalos o procuravam e festejavam, mas creio que minha mãe e eu éramos os prediletos, talvez por ser ela quem o levava à cidade nos dias de feira, a puxar um cabriolé.
Havia por lá um rapaz que todos os dias vinha ao nosso pasto colher amoras silvestres. Fartava-se à vontade e depois “divertia– se” com os potrinhos. Seu divertimento consistia em espantá-los com pedradas, de modo a fazê-los correr em disparada louca. Nós não nos incomodávamos grandemente com aquilo porque tínhamos boas pernas; mas às vezes algum calhau nos alcançava em mau ponto e nos feria.
Certa vez o dono o apanhou nessa brincadeira. Ah! Pulou a cerca, furioso da vida, e veio agarrar o nosso atropelador pela orelha. Deu-lhe uns tapas muito bem dados.
– Seu grande patife! – gritava. – Em vez de cuidar da obrigação põe-se aqui a maltratar os meus potrinhos. Vou acertar suas contas e pô-lo para sempre fora das minhas terras. Não quero mais nem um minuto enxergar essa cara.
Desde esse dia nunca mais vimos o Ricardo. O nosso tratador chamava-se Daniel. Era um velho tão bondoso como o dono, e graças a isso a nossa vida ali corria na mais completa felicidade.
Capítulo II
E u ainda não completara dois anos quando aconteceu um fato que jamais me saiu da memória. Foi no começo da primavera. Durante a noite havia caído alguma neve, e de manhã um nevoeiro pairava, qual véu de gaze, sobre a natureza. Eu e meus companheiros estávamos pastando junto ao lago; nisso ouvimos ao longe latidos de cães. O mais velho do grupo, e o mais sabido, ergueu a cabeça, empinou as orelhas e disse:
– Aí vêm os cães de caça! – e seguiu no trote para o ponto mais alto daqueles campos, de onde se avistavam as redondezas numa grande extensão. Minha mãe e um velho cavalo de sela estavam presentes e sabiam o que aquilo significava.
– Levantaram uma lebre – explicou minha mãe –, e como ela corre nesta direção, iremos assistir à caçada.
Pouco depois, os cães surgiram num campo de trigo que avistávamos dali. Vinham numa fúria doida, num au-au-au sem fim. Atrás, os cavaleiros a galope, alguns vestidos de casacos verdes. O velho cavalo de sela relinchou excitado, e nós, os potrinhos, sentimo-nos tomados de uma inquietação estranha. Queríamos galopar também, representar um papel na festa. Ao alcançar a várzea os caçadores se detiveram, enquanto os cães corriam por toda a parte farejando as moitas.
– Perderam o rasto – explicou o cavalo de sela. – E possível que a lebre escape.
– Que lebre? – perguntei.
– Uma lebre qualquer, talvez uma das que moram no nosso bosque de pinheiros. Qualquer lebre serve de caça para os cães e os caçadores.
Logo depois, a cachorrada recomeçou o coro de au-aus e, de novo reunidos, retomaram a corrida na direção do nosso pasto, precisamente pela parte mais alta de um dos barrancos do ribeirão.
– Parece que vamos afinal ver a lebre – murmurou minha mãe.
Nesse momento, uma lebre assustadíssima saltou à nossa frente, rumo ao bosque. Os cães seguiram-na; atrás vinham os caçadores novamente a galope. A lebre deu com a cerca e em vão tentou transpô-la; em seguida, quebrou na direção da estrada. Era tarde. Os cães lançaram-se em cima. Ouvimos um grito de dor – o último do pobre animalzinho. Fora apanhado. Um dos caçadores galopou em sua direção e espantou os cães a chicotadas antes que eles a estraçalhassem. Ergueu pelas pernas a lebre morta, toda sangrentazinha – e notei que a satisfação do grupo de caçadores era grande.
Fiquei tão admirado com aquilo que nem notei a tragédia que se estava passando à beira do ribeirão. De repente, voltei a cabeça e vi uma cena dolorosa: dois cavalos caídos, um lutando contra a correnteza, outro debatendo-se sobre o capim. Da água vinha saindo, coberto de lama, um homem. Outro jazia imóvel ao lado do cavalo a debater-se.
– Deve estar com o pescoço quebrado – disse minha mãe.
– Bem feito – comentou um dos potrinhos, e eu pensei o mesmo; mas minha mãe discordou.
– Oh, não! – disse ela. – Vocês não devem falar assim. Apesar de velha, e já sabida em muitas coisas, nunca pude descobrir porque os homens gostam tanto desse estúpido divertimento. Estragam os cavalos, pisoteiam as plantações, tudo por causa de uma simples lebre, ou de um veado, que podiam perfeitamente apanhar por um sistema qualquer mais simples. Mas nós somos cavalos, e eles, homens; por isso não nos entendemos uns aos outros.
Eu ouvia as palavras de minha mãe sem tirar os olhos do que se passava. Os demais caçadores vieram rodear o que caíra. O nosso dono abaixou-se para examiná-lo. Tentou erguê-lo. Sua cabeça, porém, pendeu para trás e os braços mostraram-se inertes. Todos os presentes assumiram ar grave. Cessou o palavrório, e até os cachorros se aquietaram, como se compreendessem ter acontecido algo fora do comum. O moço foi levado dali nos braços para a vivenda do nosso dono. Soube depois que se chamava John Gordon, filho único do barão Gordon e orgulho da famlia.
Em seguida, o grupo se dispersou; seguiram uns em busca do médico e do veterinário, e outros a avisar o pai do moço. Quando Mr. Bond, o veterinário, chegou, o cavalo caído ainda gemia; examinou-o em várias partes do corpo e abanou a cabeça; estava perdido, havia quebrado uma perna. Um dos assistentes correu à casa do nosso dono e voltou de lá com uma carabina. Apontou a arma para a cabeça do cavalo caído. Um tiro estrondou – buml Em seguida, tudo recaiu num silêncio trágico. O cavalo cessara de agitar-se. Morrera.
Minha mãe ficou muito perturbada, pois conhecia muito aquele belo animal cujo nome era Rob Roy, um cavalo de ótimas qualidades, sem manha nenhuma. E tal foi sua reação que nunca mais se dirigiu para aquele ponto do pasto.
Um dia depois, o toque dos sinos da igreja nos atraiu a atenção. Fui espiar. Notei movimento na casa do nosso dono, da qual vi sair um esquisito carro preto, coberto de panos pretos e puxado por cavalos também pretos. Atrás vinham numerosas carruagens do tipo comum, e toda a gente vestia-se de preto. O sino dobrava, dobrava. Era o jovem Gordon, tão lindo moço, que ia seguindo dentro de um caixão para o cemitério. O coitado nunca mais teria o gosto de andar a cavalo.
O que foi feito de Rob Roy nunca vim a saber; só sei que tudo isso aconteceu por causa de uma simples lebrezinha.
Capítulo III
F ui crescendo e fiquei um belo animal de pêlo muito fino e macio, de um negro reluzente; tinha uma das patas branca, e uma estrela também branca na testa. Todos me achavam lindo, e meu dono dizia que antes dos quatro anos não me passaria adiante. Sua teoria era que os rapazes não devem trabalhar como os homens feitos, e que também os potros não devem ser tratados como cavalos antes que a formação do corpo esteja completa.
Quando fiz quatro anos, o barão Gordon veio ver-me; examinou-me com atenção – os olhos, a boca, os dentes, as pernas, apalpando aqui e ali; fez-me depois andar a passo, a trote e a galope. Suponho que se agradou de tudo porque disse: “Depois de domado vai ficar um animal excelente”. Meu dono declarou que ele mesmo se encarregaria da domação, de medo que me deixassem tímido ou me maltratassem – e não perdeu tempo, visto como no dia seguinte dava começo à tarefa.
É possível que nem toda a gente saiba que história é essa de “domar”, e por isso explico. Domar é ensinar um cavalo a trazer sela sobre o lombo, a suportar um freio na boca e a carregar sobre tal sela um homem, uma mulher ou uma criança, que devem ser obedecidos docilmente. É tudo isso. O cavalo tem ainda de aprender a suportar uma coalheira, um rabicho, uma retranca e a ficar muito quieto enquanto o estão arreando; deve, depois, deixar-se atrelar aos varais de uma carroça, ou à lança de um cab1 ou outro veículo qualquer, e trotar puxando esses carros, ora depressa, ora devagar, conforme a vontade do homem que segura as rédeas. O pior de tudo é que quando o cavalo está arreado tem que desistir de movimentos espontâneos – não pode pular de alegria, nem deitar para descanso. Como se vê, isto de domação é algo muito sério para um cavalo.
Eu já estava acostumado a ser puxado pelo cabresto, mas tinha de habituar-me ao bridão e ao freio – e para que a isso me habituasse deu-me ele muitos extras de rações de aveia e me fez muitos mimos. Que coisa estúpida o tal freio! Quem nunca o usou não pode imaginar que incômodo é. Um pedaço de ferro duríssimo, metido à força na boca, atravessado entre os dentes, sobre a língua; esse ferro é mantido por uma barbela e várias correias, de modo que, por mais que faça, o animal não pode por si mesmo livrar-se do horror. Como é desagradável! Eu não podia compreender como minha mãe e todos os outros já domados podiam passar com aquilo na boca o dia inteiro. Mas afinal, graças à aveia e aos mimos do meu dono, fui-me acostumando a trazer bridão e freio.
Depois surgiu o resto. Veio a sela, que é um dispositivo muito menos incômodo que o freio. Meu dono colocou-a com muito cuidado sobre meu lombo, enquanto o velho Daniel me mantinha a cabeça presa, segurando-me pelo freio; depois apertou umas correias, a que chamam cilhas; apertou-as por debaixo do ventre, isso com palmadas amigas e sempre falando com carinho. Deu-me mais aveia e fez-me andar em círculo. No dia seguinte repetiu a manobra, e assim toda a semana, de modo que já era com prazer que eu esperava a hora da sela – por causa da aveia. Certa manhã, finalmente, montou-me e fez-me passear pelo pasto com aquele peso sobre o lombo. Estranhei muito, como é natural, mas não deixei de sentir um certo orgulho de estar agindo como via fazer aos velhos cavalos, e por fim acostumei-me com a sela.
Outra coisa muito desagradável foi a colocação das ferraduras, que a princípio me incomodaram terrivelmente. Fui levado a uma oficina de ferrador, o qual me ergueu as patas e, com um ferro de corte agudo, me aparou o casco. Não doeu nada e por isso deixei que o fizesse. Depois escolheu um ferro recurvo, a que chamam ferradura, e adaptou-o ao casco aparado, pregando-o com o que chamam cravos – uns pregos cabeçudos. Estranhei muito quando saí da oficina com quatro ferros nos pés; quase que perdia o jeito de andar; mas em pouco tempo me acostumei também a mais essa.
Minha educação não parou aí. Meu dono queria ajeitar-me ao tiro de carros e foi me ensinando coisas novas. Recebi uma coalheira ao pescoço e um freio com tapa-olhos de couro, que só me deixavam enxergar o que estava na frente, e também uni tal rabicho, que passava incomodamente por baixo da raiz da minha cauda. Nunca senti tanta vontade de aplicar uma boa parelha de coices como quando me aplicaram esse rabicho; mas contive-me, lembrando-me dos conselhos de minha mãe e também da bondade do meu dono. Por fim, acostumei-me e fiz o trabalho de tiro dos carros tão perfeitamente como os outros.
Tenho um incidente a contar, ocorrido nesse tempo. Meu dono mandou-me por quinze dias a uma propriedade vizinha, cujo pasto era limitado pela linha férrea, e onde fiquei entre vacas e ovelhas. Logo depois da minha chegada, estava eu muito sossegado a pastar junto à linha quando ouvi a pouca distância um som estranho que se aproximava – e não tardou que um longo trem passasse, puxado por imponente locomotiva das que jorram para o ar linda fumaça branca. Levei um grande susto e fugi em disparada para o ponto mais afastado, de onde pude ver o trem desaparecer numa curva ao longe. Nesse mesmo dia outros trens passaram, às vezes dando gritos agudos. Assustei-me como da primeira vez, embora notasse que as vacas e as ovelhas nenhuma atenção davam aos monstros; limitavam-se a erguer a cabeça e a olhar para eles calmamente.
Cheguei a perder o apetite, de tanto medo; mas como o espetáculo se repetisse todos os dias e os monstros andassem sempre pelo mesmo caminho, jamais invadindo o nosso pasto, fui perdendo o medo e acabei ligando tanta importância àquilo quanto as vacas.
Diversas vezes na minha vida vi cavalos assustarem-se com a passagem de trens; comigo, entretanto, não se dá isso; é com a maior calma que os vejo, e isso graças àquela precaução de meu dono de fazer-me passar quinze dias em tal pasto.
Meu dono muitas vezes me punha no carro ao lado de minha mãe, que era sábia e prudente, e podia guiar-me muito melhor que qualquer cavalo desconhecido. Dizia-me ela que quanto melhor me comportasse, melhor me tratariam, e que era preciso fàzer o possível para agradar aos homens. Mas estabelecia distinções.
– Há muitas espécies de homens, uns bons e cuidadosos como o nosso dono, e aos quais os cavalos devem orgulhar-se de servir; outros, porém, são maus, duros, cruéis, e não deviam ter o direito de possuir cavalo ou cão. Há ainda os tolos, inaptos, ignorantes, descuidados, que não pensam no que fazem – e esses são os piores senhores que os cavalos podem ter, porque lhes causam menos mal por maldade que por estupidez. Muito desejo que meu filho sempre ande em boas mãos; mas um cavalo nunca sabe a quem vai servir. Tudo vem do acaso. Seja como for, meu conselho é que um cavalinho como você deve trabalhar sempre com a melhor boa vontade e da melhor maneira, independente da qualidade do homem a quem serve. Assim irá ganhando bom nome e acabará melhorando de sorte.
Capítulo IV
E u vivia na cocheira, onde o meu tratador me escovava o pêlo todos os dias para conservá-lo reluzente como seda. Em começos de maio, um dos homens do barão Gordon veio buscar-me. O meu dono despediu-se de mim com um conselho:
– Meu Negro, seja sempre um bom cavalo e proceda como seus pais. Adeus.
Não pude responder com palavras, mas encostei-lhe o focinho na mão; ele acariciou-me com palmadas no pescoço e lá me fui para a minha nova morada, na qual iria passar vários anos.
A propriedade do barão Gordon recebia ingresso por um largo portão de ferro, com uma casinha de guarda ao lado; estendia-se depois uma alameda de grandes árvores velhas, e havia novo portão com outra casa de guarda, desta vez abrindo para os jardins que rodeavam a vivenda. Perto ficavam o pomar, os currais, as estrebarias e os depósitos de carros, arreios, instrumentos agrícolas, mil coisas. Só me interessa descrever as estrebarias, e devo dizer que eram espaçosas, divididas em quatro seções e com vidraças móveis; agradáveis e bem-arejadas.
O primeiro compartimento, de forma quadrada, tinha ao fundo uma porta, e no centro, os cochos; os cavalos ali não ficavam presos pelo cabresto, de modo que era um lugar particularmente apreciado por todos nós. Nada como ter os movimentos livres.
No dia da minha chegada fui posto nesse compartimentos gostei, pois nunca havia habitado recinto tão limpo e espaçoso. Às paredes de meia altura terminavam com grades de ferro, através das quais eu podia ver o que se passava fora. O tratador recebeu-me com palmadas amigas, falou-me com carinho e deu-me uma boa ração de aveia. Em seguida, retirou-se.
Depois de comida a aveia, corri os olhos ao redor. No compartimento contíguo vi um cavalo zaino, de porte pequeno e bastante gordo; tinha a crina comprida e a cauda espessa, cabeça bem-dese– nhada e focinho gracioso. Acheguei-me à grade e falei-lhe:
– Então, como vai? Qual o seu nome?
O cavalinho, que estava no cabresto, voltou-se e respondeu:
– Meu nome é Flying. Tenho fama de bonito e costumo carregar as damas, bem como puxar o faetonte leve da baronesa. As meninas da casa e o Tiago, todos gostam muito de mim. E você? Vai ficar morando aí?
Declarei que sim e ele fez votos para que eu tivesse bom gênio, pois detestava vizinhos que dão coices e mordem.
Nesse momento, vi no compartimento ao lado uma nova cara; orelhas deitadas para trás e olhos mal-humorados. Tratava-se de uma égua alazã de pescoço finamente elegante. Olhou-me e resmungou:
– Ah, foi então você que roubou o meu cômodo, hein? Parece incrível que por causa de um potrinho da sua marca venham a incomodar uma senhora respeitável como eu!
– Queira desculpar-me – murmurei meio confuso. – Não roubei nada a ninguém. O tratador que me trouxe pôs-me aqui sem consultar minha opinião, Quanto a ser um potrinho, como a senhora diz, fique sabendo que já completei quatro anos e estou crescido. Não sou briguento, jamais tive problemas com quem quer que seja e pretendo viver em paz.
– Está bem – disse ela. – Eu também não pretendo ter problemas com um bebê da sua marca. Tinha graça…
Nada repliquei. À tarde, depois que ela saiu, Flying me disse:
– É a Wasp, 2 e tem esse nome por causa do gênio azedo. Gosta muito de morder. Quando morava nesse compartimento e tinha os movimentos livres, trabalhava muito de dentes. Um dia pregou no braço do Tiago uma tremenda mordida que fez sangue. Miss Flora e Miss Jessie, que são grandes amigas minhas, nunca tiveram a coragem de entrar aqui, de medo. Costumavam trazer-me gulodices: maçãs, cenouras, pão; mas desde que Wasp passou a morar aí nunca mais ousaram mimar-me, para não irritar a má vizinha. Agora tenho esperança de que a coisa mude, já que você garante que não morde.
Respondi que de fato só empregava os dentes em esmoer ervas, feno ou aveia, e que nem sequer podia imaginar que gosto pode sentir um cavalo em morder outras criaturas.
– Suponho que Wasp não sinta nenhum gosto nisso – explicou o cavalinho. – Apenas um mau costume que adquiriu e não largará mais. Confessou-me que ninguém a trata com carinho e por isso vinga-se, mordendo. Parece que ^ pobre foi muito maltratada antes de vir para aqui. Agora a coisa mudou. Tiago e José tudo fazem para agradá-la, e o nosso dono também. Nada de chicote, nem gritos, e é possível que ela acabe melhorando de gênio.
Fez uma pausa e prosseguiu, com expressão de sagacidade nos olhos:
– Eu já tenho dez anos, conheço um pouco a vida e posso garantir que não há por estas redondezas melhor lugar para cavalos do que este. John é um cocheiro excelente, que já está aqui há quatorze anos. Tiago é a bondade em pessoa, de modo que se Wasp não ficou nesse seu compartimento, que é o melhor de todos, a culpa foi dela unicamente. Agora queixa-se…
Capítulo V
O nome dò cocheiro era John Manly, e ele morava ali perto com a mulher e um filhinho.
No dia seguinte à minha chegada, veio buscar-me para a esco– vação diária. O barão apareceu, mostrando-se satisfeito com o meu aspecto.
– John – disse ele –, eu pretendia experimentar este cavalo hoje, mas não posso. Fica você encarregado disso. Monte-o, dê uma volta pelo moinho e atravesse o rio. Já basta para lhe apreciarmos as qualidades.
Assim foi. Depois do almoço, John reapareceu e pôs-me o freio, tendo o cuidado de ajustar as correias para que não me apertassem mais que o necessário; depois experimentou uma sela; vendo que não tinha o tamanho adequado foi buscar outra, que me assentou muito bem. Montou. Fôs-me primeiro a passo, depois a trote e finalmente a galopão; quando alcançamos campo aberto, fustigou-me de leve com o chicote – sinal de galope – e galopei esplendidamente.
– Aí, danado! – exclamou John quando colheu as rédeas. – Aposto que você gosta de caçadas, não é assim? Está no ponto para correr com a matilha.
De volta ao parque, encontramos lá o barão e a baronesa. John saltou em terra.
– Então, que tal? – quis saber o dono.
– Muito bom, senhor barão. Veloz como um veado e muito dócil de queixo. É cavalo de primeira. Foi negócio. Lá perto do moinho cruzei uma carroça de cacarecos, coisa que sempre espanta os cavalos. Pois este não se assustou coisa nenhuma; olhou e foi passando. No bosque, lá adiante, andava gente à caça dos coelhos; justamente quando eu ia passando estrondou um tiro bem perto; ele entre– parou um instantinho só, de orelhas empinadas, mas nem sequer mudou de passo. É cavalo que nunca sofreu um mau-trato. Esteve em boas mãos.
– Isso é ótimo! – disse o barão. – Pode ir. Amanhã quero montá-lo.