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Toque de coragem, n.º 16 - agosto 2016
Título original: The Viking’s Touch
Publicado originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), acontecimentos ou situações são pura coincidência.
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I.S.B.N.: 978-84-687-8598-1
Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.
Página de título
Créditos
Sumário
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Epílogo
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Nortúmbria – 889 DC
AS CHAMAS do teto subiam a aproximadamente 10 metros de altura rumo ao céu. O calor era tão intenso que os espectadores tiveram de se afastar mais para trás. Consternados, observavam, sem poder fazer nada, enquanto o castelo era consumido. As paredes chamejavam produzindo labaredas cor de laranja e escarlate, colorindo a noite. A madeira queimada gerava um cheiro acre que saía pela porta em tufos de nuvens escuras e assustadoras. Ninguém disse uma só palavra. Os únicos sons eram da madeira crepitando e o rugido do fogo.
Wulfgar estava imóvel, como se um encantamento o tivesse transformado em pedra, olhando o fogo destruir o lugar que um dia chamara de lar, uma pira chamejante daquelas que ele mais amava.
A luz das chamas foi se extinguindo, colorindo o rosto dele de vermelho e realçando os olhos que lhe conferiam um aspecto terrível. Todos os pensamentos e ideias estavam enterrados e sobrepujados pelo pesar e pelo ódio, intensos demais para ser tolerados.
Os companheiros de espadas de Wulfgar estavam um pouco afastados do restante das pessoas, em um silêncio sepulcral, observando a vasta escuridão remanescente.
O TEMPO tinha perdido todo o significado. Sem se preocupar com o cansaço nem com o frio, Wulfgar permaneceu no mesmo lugar até que a luz do raiar do dia se infiltrou pelas árvores, iluminando as ruínas negras e fumegantes do que, um dia, fora seu lar.
Ele não percebeu o ruído dos cascos de um cavalo e o estalar da sela quando o cavaleiro desmontou e postou-se ao seu lado. Só então percebeu a presença de outro homem, como se estivesse voltando de um sonho longo e aos poucos fosse tomando consciência da realidade.
Os olhos azuis que se cruzaram pareciam pertencer à mesma pessoa. O rosto, vincado pelo tempo, também se assemelhava bastante ao de Wulfgar. No entanto, o cabelo do homem mais velho estava mais grisalho. Os dois tinham alturas iguais, a mesma postura e o corpo forte, e a mesma aura de poder. Permaneceram em silêncio por alguns minutos. Wulfgar foi o primeiro a desviar o olhar.
– Eu deveria ter estado aqui – disse ele, meneando a cabeça.
– Não teria feito diferença.
– Falhei quando eles mais precisavam de mim.
– Não havia como prever o que aconteceu.
– Ela implorou para que eu não fosse, mas não dei atenção. Tentei me convencer de que partia por ela e pela criança. – A voz de Wulfgar falhou. – Foi o meu egoísmo que causou isso a eles.
– Você não poderia tê-los salvado, como não poderia ter feito nada por mais ninguém que morreu.
– Eu poderia ter tentado.
– Mas o resultado seria o mesmo. A epidemia não faz distinção; mata tanto os nobres quanto os mais humildes.
– Isso também não ajuda.
– Não, só o tempo ajuda.
– Será?
Wulfgar fez uma pausa.
– O que você vai fazer agora?
– Não sei.
– Você poderia voltar para Ravenswood e ficar um tempo. – A frase foi dita de maneira casual, mas havia alguma coisa subliminar. – Sempre haverá um lugar para você.
– Meu lugar era aqui – respondeu Wulfgar –, mas não há retorno agora.
O pai apertou os lábios e deixou o olhar se perder além das ruínas.
– Então você vai se unir a Guthrum?
– Guthrum está ficando velho e seu tempo de lutar já passou. Não acredito que ele viva por muito tempo.
– Então, o que pretende?
– Não sei. Alguma outra coisa.
– Não precisa decidir agora. Espere um pouco. Pense bem.
– Ah, como é mesmo que você dizia sempre? As decisões que tomamos nos definem. – Wulfgar sorriu como se estivesse fazendo troça consigo mesmo. – Bem, minha decisão se transformou em cinzas e sou o culpado. – Virou-se para encarar o pai. – Se houver algum futuro para mim, não será aqui.
Ânglia Oriental – Seis anos mais tarde
EM PÉ na proa do navio, Wulfgar olhou para a praia de areias claras e as dunas mais adiante. O lugar era deserto, a não ser pelas gaivotas que voavam com as correntes de ar. As nuvens escuras ainda estavam próximas, um resquício da tempestade da noite anterior.
O vento enchia as velas da embarcação e as ondas, que quebravam na praia, levando restos de madeira que comprovavam a tempestade.
– Aqui está bom – disse ele. – Vamos atracar.
– Sabe onde estamos, milorde? – perguntou Hermund, postando-se ao lado dele.
– Provavelmente estamos na costa anglicana, mas é difícil ter certeza.
– Bem, está quieto demais, milorde.
Os únicos sons vinham das rajadas de vento.
– Mesmo assim, enviaremos um grupo de homens para verificar.
– Milorde está certo.
Assim que a ordem foi dada, a quilha do navio encostou-se à areia. Wulfgar e uma meia dúzia de marinheiros desembarcaram e, com dificuldade, passaram a rebentação e chegaram em terra firme. Correram pela praia e subiram nas dunas. De lá de cima vislumbraram uma planície acarpetada pela relva com uma vegetação esparsa de arbustos amarelos. Mais ao longe havia linhas de árvores cultivadas.
– Aqui está bom – anunciou Wulfgar.
Hermund perscrutou a paisagem, contraindo o rosto vincado; os olhos de águia não perdiam nenhum detalhe. Aos 33 anos de idade, ele era seis anos mais velho do que seu companheiro e já tinha mechas acinzentadas nos cabelos castanhos, mas tratava Wulfgar com uma deferência que os posicionava no mundo.
– Aye, milorde. Esses campos devem pertencer a alguém.
– Deixaremos soldados vigiando.
– Os habitantes locais devem ser amigáveis, claro.
– Pode ser – respondeu Wulfgar. – Mas meu plano não é ficar tempo suficiente para conhecê-los. Temos um encontro marcado.
– Rollo não vai se esquivar. Ele precisa de guerreiros e quer os melhores.
– Ele os terá se pagar uma boa quantia pelo privilégio.
– Naturalmente. – Hermund sorriu.
Os dois voltaram em direção ao navio, que já estava sendo puxado para a praia pelos outros homens.
– Nós fizemos tudo certo nesses últimos seis anos – Hermund continuou. – Se a sorte estiver do nosso lado, teremos renda suficiente para nos aposentar logo.
Wulfgar não respondeu. Não que não estivesse prestando a atenção, pois tinha ouvido muito bem e reconheceu a verdade daquelas palavras. Sob seu comando estavam guerreiros cuja reputação chegava antes deles: qualquer preço que dissessem seria pago sem contestação. Além disso, a sorte também sempre esteve do lado deles. O líder podia dizer que tinha muita sorte na vida, pois sempre saíra ileso dos conflitos. Ele não tinha medo de morrer. Houve um tempo em que ele procurava onde lutar. Mesmo assim, a morte lhe rondava o tempo inteiro, atormentando-o no calor do combate, mas permanecendo sempre fora de alcance. Ele já tinha se conformado com isso, observando com certo cinismo sua fortuna crescer.
Sem saber por onde andavam os pensamentos de Wulfgar, Hermund avaliou os estragos no navio.
– Velas rasgadas, remo rachado… Mas, no geral, não sofremos muito. Apenas três homens se feriram.
– Aye, podia ter sido pior.
– Em algumas batalhas, achei que viraríamos comida para os peixes.
– Se não arrumarmos os estragos, é o que vai acontecer – disse Wulfgar. – Organize os homens para começarem o trabalho, enquanto vou verificar como estão os feridos.
Minutos depois, ouviram-se os gritos de Hermund:
– Thrand! Beorn! Asulf! Baixem as velas! Dag e Frodi, ajudem-nos a soltar os cabos. Os outros, venham aqui…
Logo havia marinheiros correndo por toda parte.
Wulfgar observou-os durante um tempo e subiu para ver os feridos. Durante a tempestade um dos homens tinha caído e se contundira, outro tinha um corte no braço que precisaria ser costurado. Um terceiro tinha quebrado as costelas. No entanto, como estavam em terra firme, seria mais fácil cuidar dos ferimentos. Wulfgar garantiu que daria um jeito.
Depois de vistoriar os feridos, ele voltou para se reunir aos outros. Teriam longos dias de trabalho pela frente, mas isso não o preocupava. Trabalhar duro significava não pensar muito e focar a atenção no presente. O tempo curava a dor, mas não a memória. Para isso, só mesmo o trabalho.
UMA HORA mais tarde, um dos vigias chamou a atenção de Wulfgar:
– Cavaleiros se aproximando, milorde.
Wulfgar olhou na direção da praia, apertando os olhos contra o vento. Não demorou a ver o grupo de seis cavaleiros parando os cavalos a alguns metros para observar o navio.
– Droga!
Wulfgar não chegou a blasfemar, mas Hermund entendeu como um alerta.
– O que pretende fazer, milorde?
– Vai depender deles. Vamos esperar para descobrir o que pretendem. Pode ser apenas curiosidade.
– É, talvez.
– Não estamos procurando briga – disse Wulfgar, enquanto avaliava os estranhos. – Diga aos homens para manterem as armas por perto, mas que não as usem sem a minha ordem.
– É o que farei. – Hermund olhou para os cavaleiros de novo. – Pelo menos, são apenas seis.
– É o que parece.
– Entendi.
Os cavaleiros começaram a cavalgar devagar. Quando estavam mais próximos, Wulfgar viu que estavam todos armados. Mas notou que as espadas continuavam embainhadas. Se estivessem em apenas seis mesmo, não iriam causar problemas, especialmente porque, até então, não sabiam com quem lidariam.
Os cavaleiros puxaram as rédeas dos cavalos perto de um dos homens da tripulação. O líder, corpulento e com uns 30 anos de idade, inclinou-se para frente na sela e olhou ao redor com uma expressão impassível, assimilando todos os detalhes. A tripulação parou o que fazia e fez-se silêncio. Por vários minutos os dois grupos avaliaram-se uns aos outros.
– Se não estou enganado, eles podem fazer parte de um batalhão – murmurou Hermund.
– Eu pensei a mesma coisa. – Wulfgar meneou ligeiramente a cabeça. – Mas onde estão os outros e quantos seriam?
O líder do estranho grupo foi o primeiro a quebrar o silêncio.
– Quem é o líder dessa ralé?
– Sou eu. – Wulfgar se aproximou. – O que quer?
– Vocês estão invadindo propriedade alheia – respondeu o estranho com desprezo.
– A enseada não pertence a ninguém – respondeu Hermund.
– Essa parte onde estamos, sim.
– Infelizmente a tempestade de ontem fez muitos estragos no meu navio – explicou Wulfgar. – Precisamos consertá-los.
– Bem, vão resolver isso em outro lugar. Vocês não são bem-vindos aqui, viking.
– O conserto vai durar alguns dias e partiremos quando terminar. – Wulfgar respirou fundo para não perder a calma.
– É melhor partirem agora, se pretendem preservar suas vidas. Lorde Ingvar não gosta de invasores, principalmente piratas.
– Ah, que falta de sorte.
– Falta de sorte a sua. – O estranho esboçou um sorriso de menosprezo e os outros cinco fizeram o mesmo.
– Isso é o que veremos.
– Pelo que entendi, vocês não vão partir.
– É mais ou menos isso – respondeu Wulfgar, meneando a cabeça.
– Bem, não diga que não lhe avisei – disse o estranho, virando a cabeça do cavalo para trás e indo embora com seus companheiros.
– Ótimo – disse Hermund. – Imagino que vamos receber outra visita em breve. Eles trarão reforços.
– Eles podem ter blefado – comentou Thrand.
– De jeito nenhum – afirmou Hermund. – Ele não teria ameaçado se não tivesse cobertura.
– Hermund está certo – disse Wulfgar.
– Devemos nos preparar para lutar, milorde?
– Sim.
Os homens ao redor deles trocaram olhares cheios de expectativa.
– Não vejo a hora de silenciar aquele falastrão – disse Thrand com mão na empunhadura de sua adaga.
– Não cante vitória ainda – disse Hermund. – Não sabemos quantos amigos ele tem.
– Mesmo assim – respondeu Wulfgar. – É por isso que precisamos estar prontos. Preparem as armas.
ANWYN CONDUZIA sua montaria em um passo regular, enquanto olhava para o horizonte. O mar cinzento formava uma mancha mais escura contra o céu. As ondas quebravam na enseada, e mesmo a distância ela podia ouvir o rumor da rebentação ao longo da orla. Soprava uma brisa fria e salgada, rescendendo a terra úmida, um lembrete do temporal da noite anterior. Apesar disso, era bom estar ao ar livre. Era bom ter a escolha de sair, pelo menos.
– O céu está se abrindo, milady.
Ela olhou para a criada, que cavalgava ao seu lado, e sorriu.
– Assim espero, Jodis. – Em silêncio, ela imaginou se as nuvens não estariam na verdade se acumulando, em vez de se dissipando. Mas dizer isso seria destruir o estado de espírito otimista de sua acompanhante.
Aquela moça a acompanhara quando, cinco anos antes, Anwyn fora enviada pelo pai para casar-se com o conde Torstein. Durante esse tempo do qual ela não gostava de se lembrar, Jodis fora mais amiga e confidente do que criada pessoal. E ambas com 20 anos na época, embora Jodis fosse mais alta e mais robusta, elas tinham afinidades próprias da idade e da geração. Agora ela gesticulava na direção do homem mais velho e do menino que cavalgavam um pouco à frente delas.
– Eyvind se revelou um prodígio na equitação – observou a criada.
– Sim, é verdade.
– Ele era uma criança tão reservada, mas tornou-se mais confiante desde que… – Jodis calou-se e emendou: – Tornou-se mais confiante agora.
– Tem razão. Pode falar, ele tornou-se mais confiante desde que o pai morreu. – Os olhos verdes de Anwyn mal disfarçavam a emoção. – Ultimamente ele está saindo da concha.
– Sem dúvida – assentiu Jodis.
– Ina teve uma participação importante nisso. Ele é um bom mentor para o garoto. – Anwyn sorriu. – Eyvind se espelha nele. Tudo o que ele diz é só “Ina disse isto, Ina disse aquilo…”.
– Sim! Acho que, se Ina dissesse a ele para enfiar a cabeça na estrumeira do chiqueiro, Eyvind obedeceria correndo!
– Obedeceria mesmo. Apesar de seus modos um tanto rudes, Ina é uma figura paterna para Eyvind, mais do que Torstein foi alguma vez na vida.
– Vocês dois estão livres agora, milady. Torstein não pode mais lhe fazer mal.
– Ele não…
Jodis percebeu a inflexão na voz dela e compreendeu imediatamente.
– Mas lorde Ingvar pode…
– A reputação dele é bem conhecida.
Jodis estremeceu.
– E merecida também, segundo as provas que temos.
– Não temos provas concretas; ele é esperto demais para isso. O sumiço de cabeças de gado ou um incêndio em um feixe de feno podem facilmente ser atribuídos a outras causas.
– São muitos contratempos inexplicáveis.
– Muitos, e ainda assim eu não ousaria acusá-lo abertamente. De qualquer modo, são os homens dele que executam esses atos, não ele propriamente. E, assim, ele pode alegar inocência. Ele acha que fazendo pressão eu vou acabar deixando passar.
– Como ele ainda tem coragem de encarar a senhora?
– A falsidade é natural para ele. O homem é um predador. Basta passar dez minutos perto dele para descobrir isso.
A criada ergueu o rosto abruptamente.
– Ele não tomou liberdades, não é, milady?
– Não, ele não é tolo a esse ponto. Ele esconde a crueldade atrás de modos gentis e palavras doces. Eu jamais me submeterei, ou meu filho, ou meu povo, às garras dele.
– Não a culpo por isso. No entanto, ele se torna cada dia mais inoportuno.
Anwyn suspirou.
– E eu não sei disso?
O rosto de lorde Ingvar agigantou-se na mente de Anwyn. Com suas feições quase aristocráticas, emolduradas por cabelos loiros, muitos poderiam considerá-lo bonito, não fosse pelos lábios finos demais e os olhos castanhos esquivos, que a faziam lembrar-se de um felino caçador. Um pouco mais alto que a média e esbelto, ele tinha inclusive o porte de um felino predador. A última conversa que haviam tido ainda estava gravada em sua memória…
– Pense, Anwyn. As terras de Beranhold são adjacentes às suas. O que poderia ser mais prático ou mais sensato do que unificar nossas propriedades? Assim você ficaria sob minha proteção.
– Eu agradeço, milorde, mas já estou bem protegida.
– Ah, sim. Torstein tomou conta de você muito bem, não é? Não o condeno por isso; eu faria exatamente a mesma coisa.
Um súbito arrepio percorreu os braços de Anwyn.
– Tenho certeza disso.
A voz dele se tornou mais suave, quase terna.
– Você não preferiria que um homem arcasse com as responsabilidades por você?
– Eu posso arcar com minhas responsabilidades, tranquilamente.
– Que você é corajosa e determinada, disso eu não tenho dúvida. Mas a viuvez é uma condição triste, solitária, ainda mais para uma mulher tão adorável. – Ele estendeu a mão e tocou-lhe a trança. – Você não sente falta de ter um homem em sua cama… especialmente um homem que aprecie a beleza e saiba agradar uma mulher?
O estômago dela se contraiu.
– Não estou preparada para me casar de novo.
– Você diz isso agora, mas eu sei ser paciente.
– Não nutra esperanças em relação a mim, milorde.
– Quando eu quero uma coisa, não desisto facilmente…
Anwyn estremeceu de leve com a lembrança do diálogo.
– Eu recusei a corte dele há muito tempo – continuou ela –, mas não se passa uma semana sem que ele faça uma visita, sob algum pretexto.
– Ele está apaixonado.
– Apaixonado por terras e riqueza, isso sim.
Jodis balançou a cabeça.
– Uma mulher sozinha fica vulnerável. A senhora não vai conseguir mantê-lo afastado para sempre, a menos que…
– A menos que o quê?
– A menos que encontre outro marido.
– Não tenho vontade de me casar novamente.
– Se a senhora não se casar, seu pai escolherá um noivo.
– Ele já me intimou a fazer isso – disse Anwyn. – Quero dizer, meu irmão me intimou, na última vez que veio aqui. Não fazia nem três meses que Torstein tinha morrido! Osric é igual ao meu pai na determinação de aumentar a riqueza e os bens da família.
– Ambos são determinados, milady, e veem a senhora como a chave para um futuro de sucesso.
– Outro casamento para mim, outro degrau na escada do poder para eles. Um conde nórdico rico, foi o que Osric disse. – Anwyn fez uma careta. – Mas eu não vou tolerar que eles arranjem outro marido para mim.
– Provavelmente a senhora não terá escolha, milady. Seu pai é poderoso e ambicioso.
– Ele já alcançou as ambições dele à minha custa.
– Mas a senhora é jovem e bonita, e muitos homens desejariam desposá-la.
– Pode ser, mas a simples ideia de outro casamento é repugnante para mim.
– Eu não estava pensando em um marido como o conde Torstein – disse Jodis. – Estava pensando em um homem bom, gentil.
– Um homem bom e gentil? Bem, isso é algo em que se pensar…
Antes que elas pudessem continuar a conversa, o menino as interrompeu.
– Mamãe, posso ir a meio galope, agora? – Ele e seu mentor haviam feito seus cavalos pararem, para esperá-las. Os olhos verdes do menino brilhavam de ansiedade. – Ina disse que eu posso, se a senhora deixar.
Anwyn olhou por sobre a cabeça do filho para o homem que o acompanhava. Apesar dos 50 anos de idade, o velho guerreiro ainda era um homem em plena forma, forte e vigoroso. A barba e os cabelos grisalhos denotavam mais experiência e perspicácia do que idade avançada; os olhos escuros estavam sempre atentos, e ele tinha um ar de serenidade e autoridade. Nos dias que se seguiram à morte de Torstein, ele fora um aliado de valor inestimável, um amigo em quem ela aprendera a confiar.
– Está bem, mas só até as dunas. – Ela fez uma pausa. – E tenha cuidado! Nada de correr!
Sem precisar de mais incentivo, Eyvind virou o pônei e o atiçou com os calcanhares. O robusto cavalinho disparou a meio galope, seguido de perto por Ina, que controlava os passos mais longos de seu cavalo para não ultrapassá-lo. Anwyn sorriu e olhou para Jodis.
– Que tal?
Logo depois, elas também galopavam em suas montarias, seguindo Ina e Eyvind. A distância até as dunas era de cerca de 400 metros, mas o passo mais rápido era estimulante, e Anwyn conteve a tentação de deixar o cavalo desenvolver sua velocidade máxima. Era tão bom poder cavalgar outra vez, sem restrições, sentir o vento no rosto, sentir-se quase livre.
Quando eles finalmente pararam, ela ria, divertida, sentindo-se leve e feliz. Inclinou-se para frente e afagou a cabeça do cavalo. Eyvind olhou para ela, esperançoso.
– Podemos cavalgar ao longo da praia, mamãe?
Anwyn sabia que ele estava pensando em galopar ao longo da orla, mas não tinha coragem de recusar. Além do mais, ela não tinha pressa alguma de voltar.
– Por que não?
Eles cavalgaram em fila através das dunas, deixando que os cavalos escolhessem o melhor caminho, e finalmente chegaram à enseada do outro lado. Ina e Eyvind pararam abruptamente.
– Mamãe, olhe!
Anwyn olhou na direção que ele apontava e surpreendeu-se ao avistar um navio atracado na praia e a tripulação concentrada diante dele. Devia haver no mínimo setenta pessoas ali.
– Um navio de guerra – murmurou Ina.
A inquietação substituiu o estado de espírito descontraído de Anwyn.
– Mas o que eles estão fazendo aqui?
– Imagino que esteja danificado. Está vendo a vela estendida ali?
Anwyn assentiu.
– Sim, isso certamente explicaria a presença deles aqui. – Olhando mais atentamente, ela examinou os tripulantes. Embora, aparentemente, estivessem concentrados na vela estendida na areia, ela reparou que todos os homens estavam armados com espada ou machado e que os escudos e lanças estavam logo ali, ao alcance da mão. Ela não foi a única a notar esse detalhe.
– São profissionais – disse Ina.
– Mas não parecem agressivos – retrucou ela.
– Não. Mas aqueles, sim. – Ina apontou para o batalhão que se aproximava, vindo do outro lado da enseada. – São os guerreiros de Ingvar, milady.
– Tem certeza?
– Absoluta. Aquele ali à frente é Grymar.
– Mas eles não têm negócios a tratar aqui. Esta enseada é contígua às minhas terras.
– As quais eles devem ter atravessado para chegar aqui – concluiu Ina.
– Como ele se atreve…?
– Nem mesmo Grymar teria tamanha audácia sem o consentimento de alguém mais poderoso.
– Ele recebe ordens diretamente de Ingvar.
– Exato, milady.
As implicações eram perturbadoras. Sob a intendência de Ina, os homens de seu falecido marido patrulhavam e protegiam Drakensburgh, e não precisavam da ajuda de Ingvar. O fato de ele enviar um exército armado para sua propriedade possuía ramificações que não a agradavam nem um pouco. Era como se ele já estivesse vestindo a carapuça de lorde protetor, um papel que Anwyn não tinha intenção de outorgar a ele.
– Isto não me parece um bom presságio – disse Anwyn.
Ina acenou com a cabeça.
– Nada em que Grymar esteja envolvido é um bom presságio. Aquele ali cortaria a garganta da própria avó só por diversão.
– Isso deve ser apenas exibição. Ele não pode estar seriamente pretendendo lutar. – Ela hesitou. – Será…?
– A minha intuição diz que é exatamente isso que ele pretende, milady.
WULFGAR VIU o exército se aproximando, mentalmente calculando quantos homens eram. Um músculo se moveu em seu maxilar. Devia haver uns cinquenta soldados. O seu grupo era mais numeroso, e ele tinha absoluta confiança na valentia e eficiência deles, mas qualquer confronto seria, provavelmente, sangrento e muito prejudicial. No entanto, como o navio estava impossibilitado de navegar, não havia escolha. Ele olhou para Hermund.
– Convoque os homens.
– Sim, milorde.
Eles se apresentaram ao líder, alinhados e atentos.
– Deixem que eles comecem – instruiu Wulfgar. – Mas, se eles atacarem, façam com que se arrependam.
As palavras foram acolhidas com sorrisos cruéis, enquanto cada um dos homens observava com olhar sagaz e avaliador o exército inimigo que avançava. Rapidamente, eles seguraram as tiras dos escudos e os cabos das espadas.
ANWYN SENTIU-SE desconfortável e apreensiva. Mesmo àquela distância, não restava mais dúvidas do que estava prestes a acontecer. Ela virou-se para Ina.
– Recuso-me a permitir derramamento de sangue em minhas terras, nem que seja a vontade de uma dúzia de Ingvar.
– O que você vai fazer?
– Vou impedi-los, claro.
– Um objetivo louvável, milady, mas note que, juntos, eles são mais de cem homens…
– Eu sei. Acontece que esta enseada está em minha propriedade, não na deles.
– É verdade, mas não vejo como…
– Temos direitos, Ina.
– Oh, bem… naturalmente, isso faz toda a diferença.
– Exatamente. – Anwyn virou-se na sela. – Jodis, fique aqui e tome conta de Eyvind. Ina, venha comigo.
Ela incitou o cavalo e galopou ao longo da faixa de areia. No primeiro momento, Ina ficou olhando, incrédulo. Mas logo em seguida pegou as rédeas e foi atrás dela.
HERMUND FRANZIU a testa ao ver o exército se aproximando.
– Será que, sem saber, viemos parar em um ponto de encontro?
– Pode ser. – Wulfgar seguiu a direção do olhar do amigo.
– Parece que chutamos um ninho de vespas, não é?
– Como, em nome de Nidhogg, é possível que aquele falastrão tenha tantos amigos? – murmurou Thrand.
Beorn meneou a cabeça.
– Dá o que pensar, não?
Wulfgar não respondeu, mentalmente calculando a distância entre eles e os guerreiros em marcha. Setenta metros… cinquenta… quarenta. Ele viu quando a linha de lanças mudou da posição vertical para a posição frontal.
– Aqui vamos nós! – exclamou Hermund.
Ao lado dele, Wulfgar desembainhou a espada.
– Isso, rapazes…
Ele calou-se ao perceber um movimento com o canto do olho. Era um cavalo que se aproximava a galope. Momentos depois a pessoa que montava puxou as rédeas e o cavalo parou, bem entre os dois grupos de homens. No instante seguinte, uma voz feminina soou:
– Parem com isso imediatamente! Todos vocês!
Os guerreiros que vinham por terra pararam. Todos os olhares se concentraram na mulher. Wulfgar registrou mentalmente uma figura esguia em um vestido azul-escuro, parcialmente coberto por uma capa cinza sobre a qual caía uma grossa trança ruiva, como um rio de fogo. Então a mulher virou-se em sua direção, e por um momento ele se esqueceu de respirar.
– Pelo sangue de Thor – murmurou Thrand.
Beorn olhava boquiaberto.
– Eu estou vendo o que acho que estou vendo?
– Não, você está sonhando.
– Então não me acorde, por favor.
Wulfgar conseguia compreender o pensamento, embora a mulher à sua frente fosse claramente um ser real, e não um sonho. Antes que ele pudesse levar adiante a reflexão, a mulher tornou a falar.
– Não haverá derramamento de sangue aqui!
Hermund apoiou-se em sua lança e suas feições escarpadas se suavizaram em um largo sorriso.
– Bem, só Frig sabe onde estamos, mas valeu a pena vir parar aqui, mesmo que só para isto…
Os olhos de Wulfgar brilharam e ele relaxou os dedos sobre o cabo da espada.
– Você nunca disse algo mais verdadeiro, meu amigo. – Porém, mesmo enquanto dizia as palavras, a mente dele zunia. Quem era aquela moça? Por que ela se intrometera? Que tipo de mulher se atreveria a ficar entre dois exércitos adversários? Não só ficar entre eles, mas dar ordens e esperar ser obedecida? A curiosidade de Wulfgar só aumentava.
IGNORANDO A atenção coletiva focada sobre sua pessoa, Anwyn virou-se para confrontar Grymar.
– O que pensa que está fazendo?
Ele acenou com a cabeça na direção da tripulação do navio, a cerca de 20 metros de distância. – Meus homens e eu estávamos prestes a nos livrar desses intrusos desprezíveis, milady.
– Por ordem de quem?
– De lorde Ingvar.
– Estas terras são minhas – retrucou Anwyn. – Lorde Ingvar não tem nada que dar palpites nesta jurisdição.
O rosto de Grymar ficou vermelho.
– Ele quer lhe oferecer sua proteção, milady.
– É muita gentileza da parte dele, mas eu já tenho proteção. – Ela gesticulou na direção de Ina. – Dispenso a vossa ajuda.
– Esse velhote? Isso aí não consegue nem empunhar uma arma…
– Experimente, seu pateta, para ver do que sou capaz – resmungou Ina.
– Eu não tiraria vantagem de alguém tão mais fraco que eu.
– Seria tolice tentar – disse Anwyn –, até porque tenho outros quarenta homens aguardando atrás das dunas.
Um músculo se contraiu no rosto de Ina, mas Grymar não percebeu, enquanto olhava para o local que Anwyn tinha indicado. As dunas estavam desertas e em silêncio, o único movimento sendo o do vento na vegetação rasteira da areia. Ele a olhou desconfiado.
– Não há ninguém ali.
Ina arqueou uma sobrancelha.
– Está sugerindo que milady é mentirosa?
Grymar ficou ainda mais vermelho.
– Eu não disse isso. Só falei que não estou vendo ninguém.
– Porque eles estão escondidos.
– Não importa. Essa ralé aí na praia é de invasores.
– E você também é – replicou Ina, sem vacilar. – Mas, se você e seus homens se retirarem agora, vamos relevar… desta vez.
Grymar fuzilou o homem mais velho com os olhos.
– Lorde Ingvar não vai gostar nada disso.
– Oh, não me diga. Que catástrofe…
Anwyn lançou um olhar de advertência a Ina. Não podia se arriscar a fazer de Ingvar um inimigo. Ele era forte e potencialmente perigoso. Tinha de dar um jeito de mantê-lo a distância e ao mesmo tempo deixar claro que não toleraria aquele tipo de interferência em seus assuntos.
– Lorde Ingvar sempre foi um bom vizinho – disse ela. – Ele não aprovaria o que está acontecendo aqui.
Ina assentiu.
– Tem razão, milady. Eu diria que Grymar tomou esta iniciativa, por excesso de zelo.
Anwyn aproveitou a oportunidade.
– Exatamente. É a única explicação. Sem dúvida, lorde Ingvar vai ficar furioso quando souber.
O semblante de Grymar assumiu uma expressão contrariada. Ele conhecia muito bem as ambições de seu patrão para saber que ele não ficaria satisfeito com qualquer coisa que pudesse causar conflito com lady Anwyn. E, pior que isso, a situação se revertera de tal maneira que dava a impressão de que toda a culpa era dele.
– Lamento se a ofendi, milady.
Ela o fitou com altivez.
– O senhor de fato me ofendeu. Espero que leve seus homens embora imediatamente.
Grymar lançou um último olhar atroz para Ina e para os tripulantes do navio e em seguida puxou as rédeas de seu cavalo e virou-se para gritar ordens aos seus homens. Momentos depois, o grupo se afastava da praia. Ao vê-los se distanciarem, Anwyn respirou fundo, aliviada.
– Até que enfim – murmurou.
Ina fez uma careta.
– Até que enfim, de fato.
– Eles não vão voltar.
– Não – concordou Ina. – Mas aquele outro grupo continua aqui. – Ele indicou os tripulantes do navio com um movimento da cabeça. – E agora todos estão olhando para nós.
O CORAÇÃO de Anwyn disparou ao relancear o olhar para o grupo dos invasores. Por um breve instante duvidou ter tomado a decisão certa, pois imaginou que teria de lidar com raptores e senhores de escravos. Bem, havia tomado uma decisão e tinha ido muito longe para não seguir até o final.
Virando o cavalo, ela se aproximou de onde estavam os guerreiros. Eles a aguardavam quietos. Quando os estudou melhor, concluiu que Ina tinha razão. Aqueles guerreiros eram profissionais e mantiveram o silêncio vitorioso que só aqueles que não têm nada a perder possuem. No entanto, não havia hostilidade na expressão do rosto deles, mas uma gama de diferentes emoções, que iam desde um interesse exacerbado à diversão, algo bem mais desconcertante do que a intenção de lutar.
Anwyn ergueu o nariz e respirou fundo. Então, sob os olhares de todos, ela os avaliou.
– Qual de vocês é o líder?
Do meio deles, um dos guerreiros deu um passo à frente.
– Sou eu.
Os dois estavam a poucos metros de distância, o suficiente para avaliar bem um ao outro. Anwyn viu que ele era dono de um físico poderoso, vestido em uma blusa de cota de malha sobre uma túnica de couro e calça. Com uma das mãos ele segurava uma espada; sem dúvida, havia também uma adaga escondida no cinto. O braço direito estava protegido por um escudo de madeira com as bordas de ferro. A parte superior do rosto dele estava escondida pelas proteções laterais do elmo, cuja crista remetia a um lobo de caça. Mesmo semicoberto era possível notar as linhas fortes do maxilar e da boca.
Como se não estivesse se importando em ser examinado tão detalhadamente, ele deu o escudo para outro guerreiro e tirou o elmo também. Quando ele se virou novamente, Anwyn prendeu a respiração por um instante. O rosto dele era tão perfeito e lindo que parecia ter sido esculpido. Os olhos azuis vívidos prenderam o olhar dela. Anwyn reconheceu o brilho de diversão que havia detectado antes. Ela ergueu o queixo mais um pouco.
– O senhor tem um nome?
– E qual é o seu, milady?
– Perguntei primeiro.
– Lorde Wulfgar, ao seu dispor – disse ele, esboçando um sorriso.
– Meu nome é Anwyn, lady de Drakensburgh.
– Peço que perdoe nossa invasão, milady. A tempestade de ontem à noite danificou meu navio e procuramos uma enseada segura para executar os reparos.
– Enseada segura? Não é bem assim.
– Acredito que não seja mesmo. A situação podia ter sido muito pior se milady não tivesse interferido. – Wulfgar fez uma pausa antes de prosseguir: – Por que agiu assim?
– Não quero derramamento de sangue aqui sem uma boa causa.
– Acredito que seus vizinhos não compartilhem da mesma opinião.
– Eles não têm o direito de se pronunciar. – Anwyn o encarou de novo. – Talvez as suspeitas deles não tenham fundamento.
– Não pretendemos lutar, se é isso que a preocupa. Temos de tratar de negócios e, assim que terminarmos os reparos no navio, iremos embora.
– Entendo. Posso perguntar para onde vão?
– Vamos nos encontrar com Rollo.
– Rollo? Mas ele é um pirata notório.
– Isso mesmo.
Anwyn empalideceu.
– Então, vocês são mercenários.
– Correto.
Admitir ser um mercenário tão francamente a deixou inquieta, principalmente porque era impossível interpretar o que havia por trás da maneira cortês como ele se portava.
– Mas, enquanto consertamos nosso navio, os outros assuntos são irrelevantes.
– Entendo…
– Posso contar com sua permissão para continuar aqui e executar o concerto?
Ela respirou fundo antes de responder.
– Acredito não ter opção, já que seu navio não está em condições de partir.
– Podemos sair remando, mas, se encontrarmos uma onda mais forte, afundaremos.
– Quanto tempo levará para consertar o estrago?
– Com sorte, apenas alguns dias.
Anwyn ficou aliviada e meneou a cabeça.
– Está bem. Pode ficar para consertar o barco.
– Obrigado. – Depois de uma pausa, ele falou: – Gostaria de pedir mais uma coisa.
– E o que seria?
– Se tivéssemos uma fornalha e um galpão de carpintaria…
– Está me pedindo duas coisas.
– É verdade. Como sou um mercenário, acredito que não ficará surpresa se eu tentar barganhar. – Ele sorriu, embora hesitante.
Anwyn teve dúvidas se seria prudente confiar nele ou se aqueles favores não seriam algum tipo de truque. Bem, de um jeito ou de outro, a única maneira de se livrar do problema era ajudá-lo.
– Temos as duas coisas. Mande alguns homens a Drakensburgh amanhã e mostraremos nossas edificações. – Ela apontou para as dunas. – O castelo fica naquela direção, cerca de 20 quilômetros a oeste.
– Agradeço novamente, milady.
Anwyn assentiu com a cabeça e virou o cavalo. Depois, voltou com Ina para onde Jodis e Eyvind os aguardavam. Wulfgar se surpreendeu, pois estivera tão preocupado com tudo que não tinha percebido a presença de outras duas pessoas na ponta da praia, distante demais para que ele visse mais detalhes, o que aguçou sua curiosidade. Quem seriam? Qual a conexão que tinham com Anwyn? Ele continuou observando enquanto o pequeno grupo trocava algumas palavras e em seguida partia pelas dunas.
– UMA MULHER muito bonita – comentou Hermund, quando o grupo sumiu de vista. – E corajosa também.
– Aye, é verdade – concordou Wulfgar.
– Pensei que o estúpido Grymar iria explodir – continuou Hermund. – Eu gostaria de ser uma mosca na parede para ver o que acontecerá quando ele voltar.
– Eu também queria.
– Pelo visto o soberano dele não parece ser muito melhor.
– Ingvar? Não faz diferença. Não vamos nos encontrar mesmo.
– Pequenas clemências?
– Você é quem está dizendo.
– Bem, agora que a paz prevaleceu, podemos começar a consertar o navio.
Wulfgar meneou a cabeça. Depois de se desarmar e tirar a cota de malha, ele se juntou aos outros. Mesmo com as mãos ocupadas, pensou no que havia acontecido e sorriu para si mesmo. Hermund tinha razão. A moça era muito corajosa. Nunca havia conhecido alguém igual. Anwyn. Seria difícil esquecer aquele nome ou rosto. Era provável que nenhum homem pudesse esquecê-la. O que mais lhe chamara a atenção tinham sido os olhos dela, verdes como o mar no verão e profundos o suficiente para provocar uma vontade inexplicável de mergulhar…
De repente, a memória de um par de olhos azuis surgiu na mente dele, olhos brilhantes e marejados. O rosto não era tão nítido, mas houve uma época em que lhe ocupava a mente noite e dia. Freya e seus cabelos dourados, gentis, calma… dona de uma beleza que o tinha cativado na juventude por pelo menos alguns anos. Pensando bem, não tinha sido um bom marido. Na certa o marido de Anwyn era inteligente o suficiente para reconhecer a esposa que tinha, uma mulher sagaz, além de corajosa e muito bonita. De repente, algo lhe ocorreu… Onde estava o marido dela? Se ela decidira enfrentar a situação sozinha, talvez ele estivesse fora… em uma guerra, sem dúvida. Não seria algo inusitado. Ele mesmo já havia feito isso.
Wulfgar suspirou. Tarde demais para lamentações ou remorso, mesmo já tendo sofrido de ambos. As decisões que tomamos nos definem, relembrou Wulfgar. Era verdade, tanto que ele passou a vagar pelos mares com um grupo de mercenários lutando e festejando, vivendo um dia de cada vez. Considerando no geral, não era uma vida ruim. Mesmo que pensasse em mudar, qual seria a alternativa?
Havia também grandes chances de sua sorte terminar, ou os deuses se cansariam dele e a morte o encontraria em um campo de batalha. A hora e lugar onde morreria não era tão importante, contanto que morresse empunhando uma espada e garantisse um lugar no salão de Odin. O que mais importava era o momento presente.
O ENCONTRO daquela tarde também afetara Anwyn, tanto que ela continuou pensando horas depois de ter voltado. Àquela altura Ingvar já saberia do ocorrido e sem dúvida estaria muito contrariado. Provavelmente ele viria visitá-la em breve. Como se isso não fosse suficiente, havia um batalhão de mercenários bem treinados acampado em suas terras. Agora que tinha um tempo livre para refletir, duvidou que tivesse tomado a decisão certa. Ela suspirou. Tarde demais. Se eles decidissem tirar vantagem, ela estaria presa entre o fogo e a fogueira. Se bem que não tinha achado o líder tão ameaçador. Ao contrário. Ele tinha um rosto bonito, mas a lembrança era perturbadora. Era a primeira vez que encontrava um homem como aquele. Ele tinha todas as características de um guerreiro, além de exalar uma aura de força. Mesmo assim, não se sentiu em perigo, o que sempre acontecia quando estava com Ingvar ou Torstein.
A sensação que tivera quando tinha partido tinha sido bem diferente, quase como se alguma coisa tivesse se perdido. Fora difícil e perturbador ser a responsável.
Sem conseguir dormir, ela saiu da cama, enrolou-se em uma manta para se proteger do vento noturno frio e foi ao quarto ao lado, onde seu filho dormia. Ficou ali olhando para ele durante um bom tempo. O menino tinha sido a única coisa boa de seu casamento. O parto tinha sido longo e difícil, mas Eyvind fez tudo valer a pena. Ele era a razão de viver de Anwyn, a razão pela qual ela se submetera à vontade de Torstein. Um vento mais forte, vindo da janela, a fez estremecer e puxar a manta sobre os ombros. Torstein estava morto e seu filho, a salvo. Inclinando-se para frente, ela o beijou na testa. Eyvind se mexeu, mas não acordou. Olhando-o ali deitado, ela se sentiu muito protetora. Enquanto estivesse respirando, nada aconteceria a seu filho. Tomaria conta dos interesses dele até que atingisse a maturidade. Nada mais importava agora. Não seria fácil, pois a família dela era ambiciosa e Jodis tinha razão ao dizer que uma mulher sozinha era muito vulnerável.
Voltando para a cama, Anwyn se encolheu e puxou o cobertor para bem perto do rosto. Estava exausta. Fechou os olhos e permitiu que o corpo relaxasse, repassando os eventos do dia na mente. Aos poucos a cama ficou mais quentinha e ela acabou adormecendo. No entanto, teve os mesmos sonhos…
Ela ouviu uma porta se abrindo em algum lugar, passos duros na sala externa, uma mão afastando a cortina, que dividia os ambientes, revelando a silhueta de seu marido, que se parecia com um urso, à luz fraca. Torstein tinha 40 anos, o dobro da idade dela. Mesmo tendo uma altura média, ele era atracado, dando a impressão de ter uma força extrema. O alto da cabeça dele era calvo. O pouco cabelo restante era trançado em fios longos que se assemelhavam a vários rabos de rato. O bigode e a barba eram vastos e grisalhos e escondiam os lábios finos e os traços do rosto. Os olhos pequenos e pretos estavam sempre atentos e, naquele momento, fitavam-na com um brilho malicioso.
Depois de atravessar o espaço entre a cortina e a cama, ele jogou a capa no chão, desafivelou o cinto, tirou a túnica e atirou-a sobre a cama. Ao tirar a camisa, ele revelou o tórax coberto de pelos negros. Anwyn se encolheu, percebendo a cama afundar com o peso dele. Depois de tirar as calças, ele tentou alcançá-la. Ela fazia de tudo para escapar, mas as mãos fortes dele a puxaram de volta, forçando-a a sentir aquele hálito fétido bem de perto.
Enojada, ela virava o rosto.
– Torstein, é tarde e estou cansada.
– Você tem de cumprir sua obrigação.
Tateando por baixo do cobertor, ele levantou a camisola, desnudando-se até a cintura. A barriga peluda roçou na dela e o rosto gordo e vermelho ficou a centímetros de distância, levando-a a tremer.
– Achei que a tivesse ensinado a ser obediente – continuou ele –, mas acho que me enganei.
Anwyn comprimiu os lábios para dar a resposta merecida, mas sabia que era melhor responder o que era esperado:
– Milorde não se enganou.
– Não? Vamos ver… vamos?
ANWYN ACORDOU de repente, assustada, suando e com o coração em descompasso, acuada em um dos cantos do quarto. Nada se movia. Ela olhou para a cama e viu que estava vazia. Estava sozinha. Aos poucos ela foi se acalmando e a respiração voltou ao normal ao se conscientizar de que estivera sonhando. Torstein nunca mais voltaria. Conforme os minutos se passavam, o medo era substituído por um alívio tão intenso que a deixou trêmula. Ela engoliu em seco e deitou a cabeça sobre os travesseiros novamente, esperando o coração voltar ao ritmo normal. Torstein nunca mais voltaria. Agora Ingvar aguardava, ganhando tempo.
– Nunca – murmurou. – Não enquanto eu estiver respirando.
E pensar que, em um tempo remoto, sonhara em se casar e ser amada por um homem. Ela sorriu com amargura. Como tinha sido inocente, acreditando que as duas coisas eram possíveis. As fantasias de menina tinham desaparecido havia muito tempo. Se existisse amor entre marido e mulher neste mundo, devia ser para os outros, não para ela.