Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.
Núñez de Balboa, 56
28001 Madrid
© 2004 Joan Wolf
© 2014 Harlequin Ibérica, S.A.
Missão de amor, n.º 176 - Fevereiro 2014
Título original: White Horses
Publicada originalmente por Mira Books, Ontario, Canadá
Publicado em português em 2009
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), feitos ou situações são pura coincidência.
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I.S.B.N.: 978-84-687-5025-5
Editor responsável: Luis Pugni
Conversão ebook: MT Color & Diseño
Este livro é dedicado a Mike.
Londres, vinte e cinco de Fevereiro de 1813
O sol começava a abrir caminho através da névoa quando, vestido à civil, o coronel Leo Standish, conde de Branford, atravessou a porta principal do edifício de cavalaria, sede do ministério da guerra. Apresentava um ligeiro coxear, lembrança do ferimento que sofrera em Burgos, vários meses antes.
O conde de Branford entrou numa divisão funcional pintada de verde-escuro onde havia uma secretária, uma biblioteca e uma grande mesa sobre a qual estava desdobrado um mapa. Dois homens estavam sentados de cada lado da secretária e, quando o conde entrou, ambos se levantaram.
– Meu senhor – disse John Herries, comandante da armada britânica. – Obrigado por ter vindo. Acho que não conhece o senhor Nathan Rothschild.
– É verdade. Como está, senhor Rothschild?
O conde aproximou-se com a mão estendida. É claro que já ouvira falar de Rothschild, o filho de uma das famílias mais importantes de Londres cujos membros estavam repartidos por toda a Europa.
Aquele homem baixo e calvo estava vestido com uma casaca negra, gola branca e calças de pele. Apertou a mão do conde com força.
– É uma honra conhecê-lo, meu senhor – disse.
Os olhos de um azul-esverdeado do conde viraram-se de Rothschild para Herries.
– De que se trata, Herries? – perguntou.
– Quer sentar-se, meu senhor? – pediu-lhe o comandante. – Temos uma tarefa para si e eu gostaria de lhe explicar tudo ao pormenor.
O conde franziu o sobrolho.
– Uma tarefa? Não tenho tempo para nenhuma tarefa, Herries. Na próxima semana voltarei para o meu regimento.
– Se me permitir que explique, meu senhor...
– Está bem então – disse o conde, sentando os seus mais de dois metros de estatura numa das cadeiras. – Explique.
– Tenho a certeza de que está ao corrente das dificuldades que o duque de Wellington está a ter com os recursos – começou a dizer Herries.
O conde assentiu.
– Precisa de alimentar e pagar às tropas, mas as autoridades espanholas e portuguesas já não aceitam dinheiro em papel. Precisa de moedas de ouro – continuou a explicar Herries. – O senhor Rothschild conseguiu comprar na Holanda vários milhões de napoleões de ouro recém-cunhados.
O conde esboçou um breve sorriso.
– Muito bem, senhor Rothschild.
Rothschild devolveu-lhe o sorriso.
– O nosso problema, senhor – continuou a explicar Herries, – é que precisamos de uma via segura para transportar o ouro até às nossas tropas destacadas em Portugal.
– Ainda está na Holanda? – perguntou o conde.
– Sim e precisamos de atravessar França para chegar até Wellington, que está em Portugal. Para não mencionar que, assim que o governo francês tiver notícias de que todas aquelas moedas de ouro foram vendidas a Rothschild, vigiará o território com cem olhos para descobrir qualquer coisa que se pareça com um correio inglês.
O conde arqueou o sobrolho.
– E esse trabalho que tem para mim não terá nada a ver com o transporte dessas moedas, pois não?
– Receio que sim, meu senhor – reconheceu Herries, antes de se virar para o outro homem. – Acho que deixarei que o senhor Rothschild explique.
O homem olhou com uma expressão suplicante para aquele homem alto e de cabelo abundante.
– Tive uma ou outra experiência neste tipo de assuntos, meu senhor. Talvez saiba que a minha família transportou dinheiro pela Europa durante os anos do regime de Napoleão. Um dos meios mais seguros que encontrámos para o fazer foi através de um circo francês, o Circo Equestre. O dono, François Robichon, era instrutor hípico de Luís XVI, e não sente nenhum carinho pela revolução nem por Napoleão. O circo pode viajar por todo o lado sem que ninguém faça perguntas e Pierre transportou dinheiro para nós com sucesso em inúmeras ocasiões.
– Duas das carruagens do circo têm pisos falsos onde pode guardar-se o ouro – apontou Herries.
O conde assentiu.
– Parece uma ideia excelente, porém, que relação tenho eu com tudo isso?
Herries observou o jovem que estava sentado à sua frente. Nunca antes vira o conde de Branford e, ao encontrar-se com ele pessoalmente, a missão que antes lhe parecia razoável era agora altamente improvável. Voltou a olhar para Nathan Rothschild.
Nathan continuou a falar:
– Infelizmente, François morreu há vários meses e agora é a sua filha quem dirige o circo. Tenho as minhas dúvidas em relação a confiar semelhante quantia de dinheiro aos cuidados de uma jovem. Quero que conte com uma escolta britânica para me certificar de que o dinheiro chega sem problemas a Portugal.
– E eu quero que conte com escolta britânica para me certificar de que é honrada. Não queremos ver os dedinhos de ninguém a mexer nas sacas de ouro – afirmou Herries com brusquidão.
Naquele momento, o conde levantou ambas as sobrancelhas.
– Uma escolta britânica atrairia sem dúvida a atenção dos franceses sobre o circo, justamente o que se pretende evitar.
– Não se fingirmos que a escolta faz parte do circo – respondeu Rothschild imediatamente.
Fez-se um instante de silêncio.
– E querem que essa escolta seja eu? – perguntou finalmente o conde.
Herries revolveu-se na cadeira. O conde não mudou de posição, porém, nos seus olhos havia um reflexo perigoso. Herries pigarreou.
– É verdade, meu senhor.
– Posso perguntar quem teve a ideia de me infiltrar num circo? – perguntou o conde.
O sentido de humor das suas palavras contrastava com o seu olhar.
Herries foi incapaz de enfrentar aqueles olhos azuis-esverdeados.
– Lorde Castlereagh mencionou o seu nome, meu senhor. Como pode compreender, está ansioso para que o ouro chegue ao seu destino a salvo e o mais rapidamente possível. Wellington precisa dele para financiar a sua próxima campanha e a sua subsequente entrada em França.
Silêncio. Finalmente, o conde perguntou com uma cortesia inquietante:
– É suposto eu... actuar?
– É claro que não, meu senhor – responderam horrorizados os dois homens ao mesmo tempo.
O conde cruzou as suas mãos longas e bem tratadas sobre o colo.
– Então, como vamos explicar a minha repentina entrada num circo? Falo francês, mas não como um nativo do país. E não sou propriamente do tipo de pessoas que conseguem passar despercebidas – acrescentou com ironia.
– Pensámos nesse problema, meu senhor, e encontrámos uma solução – garantiu Herries. – Fingirá ser o marido de Gabrielle Robichon.
Dessa vez, as sobrancelhas do conde praticamente desapareceram sob a madeixa de cabelo loiro que lhe caiu sobre a testa.
– Como?
– É a única forma de o ocultar, meu senhor – implorou Herries. – A família da menina Robichon terá de conhecer a verdade, mas os restantes artistas do circo pensarão que estão casados.
– Estou a ver – disse o conde, arrastando as palavras. – Tenho de fingir que sou o marido da proprietária de um circo.
Herries e Rothschild trocaram um olhar. Nenhum dos dois se atreveu a responder.
Fez-se um longo silêncio.
– Suponho que terei de o fazer – disse finalmente o conde. – É essencial que o dinheiro chegue à armada.
Então, Herries foi consciente de que estivera a conter a respiração. Deixou-a escapar muito devagar.
– Obrigado, meu senhor – disse Rothschild. – Tenho consciência de que será um trabalho desagradável, mas pensamos que é necessário.
– E a jovem está disposta a fingir que sou o seu marido?
Rothschild assentiu vigorosamente com a cabeça.
– Está de acordo.
– O que ganha ela? – perguntou o conde. – Pagar-lhe-ão por transportar o ouro?
– É claro que lhe pagarei – garantiu Rothschild com dignidade. – Mas também o faz porque sabe que o seu pai teria gostado que o fizesse. François Robichon era um monárquico convicto.
O conde entrelaçou os dedos.
– Onde devo encontrar-me com esse circo?
– Acho que seria uma boa ideia que se encontrasse com Gabrielle em Bruxelas, pois será aí que dirão que se casaram. Depois poderão regressar juntos ao circo.
– Muito bem – disse o conde, levantando-se. – Imagino que quererão que comece o mais rápido possível.
– Sim, meu senhor. Gabrielle estará à sua espera no Hotel Royale.
– Tenho de usar algum nome em particular?
– O seu próprio, meu senhor – garantiu Herries. – Não acho que alguém o reconheça.
O conde subiu uma das mangas.
– Muito bem. Encontrar-me-ei com essa tal Gabrielle e irei com ela para o circo, onde fingirei ser o seu marido. E o ouro?
– Carregá-lo-ão nas carruagens do circo antes da sua chegada, meu senhor. Quanto mais cedo começarem a viagem, melhor.
– Quanto tempo demorará a chegar a Portugal?
– Se levarem o ouro até Biarritz, a armada irá buscá-lo e atravessará os Pirenéus com ele para chegar até Wellington – disse Rothschild. – A viagem de Lille até Biarritz levará aproximadamente um mês, meu senhor. O circo terá de fazer algumas paragens para actuar, pois se não o fizesse levantaria suspeitas.
Os lábios bem definidos do conde curvaram-se num sorriso.
– As coisas que tenho de fazer pela minha pátria – disse. – Muito bem. Partirei para Bruxelas amanhã.
– Obrigado, meu senhor – disseram os dois homens em uníssono.
Quando o conde partiu, fechando a porta depois de sair, Herries e Rothschild olharam um para o outro.
– Castlereagh não podia ter escolhido alguém que se destacasse menos? – perguntou Rothschild.
Herries abanou a cabeça.
– Queria lorde Branford. Disse que se alguém conseguia transportar o dinheiro era ele.
– Espero que não se tenha enganado, Herries – disse Rothschild. – Espero que não se tenha enganado...
Já na rua, o conde subiu para a sela, deu uma gorjeta ao rapaz que estivera a segurar nas rédeas e açulou os cavalos, conduzindo-os através das ruas da cidade em direcção a Grosvenor Square, onde ficava a sua casa. Parou a carruagem à entrada das cavalariças, entregou o cavalo a um dos moços de estrebaria e entrou na sua casa pela porta de trás.
Surpreendeu-se ao encontrar a sua irmã de dezoito anos no corredor que havia à frente da biblioteca.
– Ah, estás aqui, Leo! – exclamou Dolly. – A mamã e eu viemos falar contigo.
– Ah, sim? – perguntou ele. – E de quem foi a ideia?
– Minha. Vem até à sala reunir-te connosco.
– Não posso ficar muito tempo. Tenho coisas para fazer. Parto amanhã para a península.
– Amanhã? – repetiu Dolly com uma tristeza evidente. – Já? – perguntou, baixando o olhar para a sua perna ferida.
– Estou muito bem. Não há razão para que fique em Inglaterra quando o meu regimento precisa de mim.
– Mas há uma razão – lamentou-se Dolly. – Queria que me ajudasses com a minha apresentação à sociedade. Pensei que podias ser o meu acompanhante quando fizesse a minha apresentação no Almack’s.
– Louvado seja Deus – disse o conde. – O que te fez pensar em semelhante ideia?
– Bom, há outra coisa que podes fazer por mim. Vem falar com a mamã.
Dolly agarrou no seu irmão pelo braço, passaram à frente da magnífica escada circular que abrangia o hall de chão de mármore e guiou-o até à sala, que tinha uma vista magnífica para Grosvenor Square. Sentada num sofá de veludo dourado que havia à frente de uma lareira de alabastro, estava uma bonita mulher de meia-idade com o cabelo tão loiro que quase não mostrava o branco que começara a enfeitá-lo.
– Olá, Leo – cumprimentou-o com voz tranquila.
– Olá, mamã – replicou ele sem fazer nenhum sinal de querer aproximar-se. – Isto é uma surpresa.
– Dolly trouxe-me. Estamos a preparar a sua apresentação à sociedade e há algo que quer pedir-te.
Os seus olhos, que tinham o mesmo tom que os da sua mãe, viraram-se para o rosto animado da sua irmã.
– Pedir o quê? – perguntou.
Dolly olhou para ele com ar suplicante.
– Por favor, podemos utilizar a tua sala de baile para a minha apresentação à sociedade? Seria maravilhoso celebrá-la aqui em Standish House. Se a fizermos em casa de Jasper teremos de utilizar a sua sala, e não é muito grande.
Jasper Marley, lorde Rivers, era o padrasto de Dolly e de Leo. Dolly, tal como os dois irmãos mais novos de Leo e o seu meio-irmão, vivia com a sua mãe e com o seu padrasto.
Leo olhou para a sua mãe.
– Isto foi ideia de Dolly ou tua?
– Acredites ou não, foi ideia da tua irmã – respondeu ela sem perder a calma.
– Sim, é verdade – garantiu Dolly. – Acho que o papá gostaria que tivesse a melhor apresentação à sociedade possível, Leo. Acho que gostaria que usasse a sua sala de baile.
Leo observou o rosto ansioso da sua irmã.
– Tenho a certeza disso. É claro que podes usar a sala de baile. Mas eu não estarei aqui para tão grande ocasião – disse, olhando novamente para a sua mãe. – Parto amanhã para a península.
As bem arranjadas sobrancelhas da senhora levantaram-se.
– Tens realmente de regressar, Leo? Estou convencida de que já deste mais do que te correspondia nesta guerra. Já cumpriste vinte e oito anos. Está na hora de começares a pensar em casares-te e ter filhos. Tens de pensar na sucessão.
– Tenho dois irmãos mais novos, mãe – respondeu ele com firmeza. – Se me acontecesse alguma coisa, o condado permaneceria na família. E eu gosto de acabar o que iniciei. A guerra ainda não acabou.
A sua mãe olhou para ele nos olhos e enfrentou o seu olhar.
– Foste atingido por uma bala na perna. Talvez não tenhas tanta sorte da próxima vez.
– Importar-te-ias? – perguntou Leo, levantando o sobrolho.
Os olhos da sua mãe encheram-se de lágrimas.
– É claro que sim! És o meu filho.
– Que sorte a minha – replicou ele.
– Eu gostaria que não discutisses com a mamã, Leo – interveio Dolly com ansiedade. – Eu sei que não gostas de Jasper, mas já chega. Acho que a mamã e tu deviam resolver a vossa disputa antes de regressares à guerra.
– Não temos nenhuma disputa – garantiu o conde. – Não é verdade, mamã?
Ela surpreendeu-o ao responder:
– Sim, sim temos. E oxalá pudéssemos deixá-la para trás, Leo. Odeio ver como te lanças ao perigo mais uma vez.
A sua mãe levantou-se e uniu as mãos.
– Não consegues perdoar-me?
O rosto do conde era duro como a pedra.
– Há coisas que não se esquecem... Nem se perdoam. E agora, se não precisam de mais nada, tenho muitas coisas para fazer antes de partir amanhã.
Uma pontada de dor atravessou o rosto da sua mãe.
– Leo! – recriminou-o a sua irmã com dureza.
– Não sabes de que estás a falar, Dolly – respondeu ele com secura. – Vieste para me pedir que te deixe usar a sala de baile. Pois já o conseguiste. E agora, se me perdoarem, tenho coisas para fazer. Boa tarde – disse, virando-se e saindo da sala.
– Mamã, estás bem? – perguntou Dolly, correndo para o lado da sua mãe.
– Sim, perfeitamente.
As lágrimas deslizavam pelas faces de lady Rivers.
– O que se passa? – perguntou a jovem com espanto. – Como pode Leo continuar zangado por te teres casado tão pouco tempo depois do falecimento do papá?
– Leo tem as suas razões, Dolly. Não o culpo pelo seu comportamento comigo. A única coisa que desejaria é que o seu coração albergasse um pouco mais de piedade. Só isso.
Lady Rivers tirou o seu lenço e limpou as lágrimas.
– Vamos, querida – disse, tentando forçar um sorriso. – Leo não é o único que tem coisas para fazer.
Chovia quando a velha carruagem de Gabrielle Robichon parou à frente do Hotel Royale. Ela saiu e aproximou-se do condutor para falar com ele.
– Podes instalar os cavalos no estábulo que há nas traseiras do hotel, Gerard. E certifica-te de que os escovam e lhes dão feno fresco.
– Eu sei, Gabrielle – disse o condutor, que era quase tão velho como a carruagem. – Cuido destes cavalos desde antes de tu nasceres.
A jovem sorriu.
A dama que acompanhava Gabrielle apareceu naquele momento ao seu lado.
– Pelo amor de Deus, chérie, saíamos desta chuva.
– Está bem, Emma, está bem – disse Gabrielle.
As duas mulheres correram rapidamente para a porta do hotel, que um porteiro vestido de libré se apressou a abrir para que entrassem.
– A nossa bagagem está na carruagem – disse Emma ao porteiro. – Poderia encarregar-se dela?
– Sim, madame – replicou o homem. – Pedirei que a enviem para o seu quarto.
– Obrigada.
Então, as duas mulheres aproximaram-se do balcão da recepção.
– Temos uma reserva, Emma – disse Gabrielle.
O empregado que estava atrás do balcão olhou para elas e Emma disse:
– Madame Dumas e madame Rieux. Acho que têm uma reserva em nosso nome.
O homem procurou no livro.
– Sim, aqui está. Farei com que alguém as acompanhe aos seus aposentos, senhoras.
– Obrigada.
As duas mulheres seguiram um criado de libré pela escada central até um quarto do segundo andar. Emma e Gabrielle olharam para a cama com dossel, para o tapete oriental antigo e para a mesa-de-cabeceira onde havia um jarro com água e uma bacia. Quando o jovem partiu, Emma disse:
– Bom, aqui estamos nós, preparadas para embarcarmos nesta loucura.
– Não é uma loucura – respondeu Gabrielle, tirando o chapéu. – O papá transportou muitas vezes ouro para os Rothschild.
Emma tirou o seu próprio chapéu antes de ajeitar o seu cabelo vermelho.
– Talvez, mas nunca antes tiveste de fingir que eras a esposa de um inglês desconhecido.
– O senhor Rothschild insistiu. Apesar de me parecer uma estupidez. Devia saber que podia confiar em que levaríamos o seu ouro para Biarritz sem necessidade de uma escolta de um inglês que não fará mais do que atrair a atenção sobre nós.
Gabrielle parecia desgostada.
– Se o papá estivesse vivo nunca lhes teria ocorrido semelhante ideia.
– Por outro lado, será agradável ter ao nosso lado outra pessoa que se responsabilize pelo ouro além de nós – disse Emma, pondo o seu chapéu numa chapeleira. – Se alguma coisa correr mal, culpá-lo-ão a ele.
– Nada correrá mal – garantiu Gabrielle com firmeza. – Só que eu terei de fingir que esse inglês é o meu marido.
– Espero que seja um cavalheiro – disse Emma nervosamente. – Pensa, Gabrielle. Talvez tenhas de partilhar o quarto com ele!
– Não te preocupes, Emma. Não vai acontecer nada.
Gabrielle sorriu.
– Terei sempre a minha navalha de bolso à mão, acredita. Se tentar alguma coisa, utilizá-la-ei.
Emma tremeu.
– Espero que não seja necessário chegar a isso.
– Eu acho que não – afirmou a jovem com doçura. – O senhor Rothschild disse que o homem é um coronel que foi ferido recentemente. Um coronel tem de ser um cavalheiro.
– Assim espero – murmurou Emma.
– Lá em baixo há uma sala de jantar – disse Gabrielle. – Desçamos para comer alguma coisa. Estou faminta.
Emma sorriu.
– Nem sempre temos a oportunidade de comer num hotel desta categoria.
As duas mulheres tiraram os manguitos, penduraram-nos no armário e desceram à sala de jantar.
O conde chegou a Bruxelas na tarde seguinte para conhecer Gabrielle Robichon. Registou-se no hotel, onde lhe disseram que as senhoras tinham saído. Então, pediu-lhes que o avisassem quando regressassem.
Às cinco da tarde, um empregado do hotel deu-lhe o recado de que madame Rieux e madame Dumas tinham regressado e que o receberiam no quarto 203. O conde, que estava hospedado no terceiro andar, desceu um andar e bateu com os nós dos dedos à porta indicada. Abriu-lhe uma dama de meia-idade de cabelo vermelho e olhos verdes, vestida de vermelho.
– Boa tarde – disse o conde com amabilidade. – Sou o coronel Leo Standish.
– Céu Santo – murmurou a dama, olhando para ele.
Depois, recuperando a compostura, abriu a porta completamente e disse:
– Entre, coronel.
O conde entrou no quarto. Uma voz deliciosamente rouca cumprimentou-o dizendo:
– Como está, coronel? Sou Gabrielle Robichon Rieux.
Leo virou-se ligeiramente e olhou para os grandes olhos castanhos de uma das raparigas mais lindas que alguma vez vira na sua vida. Tinha o cabelo, castanho e brilhante, penteado com risco ao meio e preso num rabo-de-cavalo que lhe caía até meio das costas. O seu nariz era pequeno e delicado e os lábios carnudos e perfeitamente definidos. Tinha a mão estendida em gesto de saudação mas não sorria. Leo atravessou a divisão para a apertar. A jovem era muito bela. Não lhe chegava à altura dos ombros, porém, apertou-lhe a mão com a força de um homem.
– É casada? – perguntou ele com surpresa.
– Fui – respondeu ela sem hesitar. – Agora sou viúva.
– É muito jovem para ser viúva – disse Leo. Estava um pouco confuso. Não esperava que fosse tão bonita.
Ela encolheu os ombros num gesto muito francês.
– Esta guerra estúpida transformou muitas mulheres em viúvas. Tenho a certeza de que no seu país acontece o mesmo.
– Infelizmente é verdade. O seu marido morreu na guerra? – perguntou-lhe.
– Não. Um dos cavalos do circo bateu-lhe na cabeça.
Gabrielle falava com muita seriedade.
– Foi um acidente bastante tolo. André levantou a pata de trás do animal para a limpar e Sandi deu-lhe um coice. Algo que até ao momento nunca fizera. O azar foi que lhe bateu na cabeça.
– Lamento – disse Leo.
– Estivemos casados apenas alguns meses. Foi muito triste – garantiu Gabrielle. – E agora, permita-me apresentar-lhe a minha companheira, madame Emma Dumas.
Ele virou-se para a outra mulher e estendeu-lhe a mão.
– Como está, madame Dumas?
Apertaram a mão e depois Leo virou-se novamente para a jovem.
– Reconheço a estranheza que esta situação deve causar-lhe, madame Rieux. É muito generosa ao permitir que finja ser o seu marido.
Ela voltou a encolher os ombros.
– A verdade é que eu não o considero necessário, mas monsieur Rothschild insistiu. Sinceramente, coronel, acho que, mais do que servir-nos de ajuda, a sua presença ajudará a atrair a atenção sobre nós.
– Farei todos os possíveis por me integrar no circo, madame – respondeu ele com secura. – Transportam uma grande quantia de dinheiro que é vital para as forças britânicas. É natural que a armada queira que alguém o vigie.
Gabrielle cruzou os braços e olhou para ele de cima a baixo.
– Não é propriamente uma pessoa que se integre com facilidade – garantiu.
– Fá-lo-ei o melhor que conseguir, madame – respondeu ele, francamente incomodado.
Fez-se um pequeno silêncio. Foi ela quem finalmente o quebrou.
– Se vamos estar casados terá de me tratar pelo meu primeiro nome, Gabrielle.
– E tu deves chamar-me Leo – disse ele.
– Leo – repetiu Gabrielle.
E disse imediatamente com brusquidão:
– É demasiado tarde para partir hoje de Bruxelas. Devemos fazê-lo amanhã bem cedo. Desse modo chegaremos a Lille antes que escureça.
– O circo está agora em Lille? – perguntou Leo.
– Sim. Passámos o Inverno lá. Normalmente começamos a digressão em meados de Março, portanto desta vez começaremos um pouco antes do habitual. Mas não o suficiente para chamar a atenção, penso eu.
– Muito bem – respondeu Leo, olhando para Emma. – Posso convidá-las para jantarem comigo esta noite, senhoras?
– Obrigada – respondeu Emma com dignidade. – Será um prazer.
Gabrielle assentiu.
– Às sete em ponto na sala de jantar? – perguntou Leo.
– Perfeitamente – replicou Emma.
O conde dedicou um sorriso cortês às damas e saiu pela porta. Ainda não a fechara completamente quando ouviu Emma a dizer:
– Quem teria pensado que a nossa escolta teria este aspecto?
A porta fechou-se antes de Leo conseguir ouvir a resposta de Gabrielle.
A sala de jantar do Hotel Royale era pequena, com uma capacidade para aproximadamente trinta pessoas. Quando Gabrielle e Emma entraram, avistaram imediatamente Leo, que estava sentado a uma mesa ao lado da lareira.
– Boa noite, senhoras – disse, levantando-se para as receber.
– Boa noite – responderam as duas em uníssono.
Um empregado afastou a cadeira de Gabrielle para que se sentasse, o que a jovem fez ajeitando com cuidado a seda amarela do seu vestido de noite. Emma, que estava vestida de verde-esmeralda, também se sentou.
Gabrielle olhou para o homem que fingiria ser o seu marido durante o mês seguinte.
«André sentiria ciúmes», pensou, enquanto observava as feições perfeitas de Leo, os seus olhos azuis-esverdeados e o seu cabelo abundante e dourado. Conseguia ver a largura dos seus ombros sob o seu casaco preto de noite. Aquele homem era muito diferente de André, que era moreno, muito magro e apenas alguns centímetros mais alto do que ela.
«É suficientemente grande para levar a água e ajudar a montar a tenda», pensou.
Gabrielle observou o balanço inconsciente e arrogante da sua cabeça.
«Mas certamente pensará que essas tarefas são pouco para ele».
O empregado esperava para tomar nota do pedido e Gabrielle concentrou-se na carta. Quando finalmente escolheram, Leo olhou para ela e disse:
– Fala-me do circo. Quantas pessoas emprega e a que se dedicam?
Gabrielle cruzou as mãos sobre o seu colo de seda amarela e respondeu:
– Chama-se Circo Equestre porque trabalhamos com cavalos. Temos cinco exemplares árabes que actuam em liberdade, um veterano que montamos sem sela e dois holstein educados numa formação superior que sabem fazer o pas de deux. Também actuam a solo.
Leo levantou a mão para a interromper.
– Têm holstein treinados a esse nível? – perguntou com incredulidade.
– Sim. Dois exemplares. O meu pai conseguiu-os numa quinta austríaca e treinou-os ele mesmo.
– Treinou-os com a tua ajuda, Gabrielle – apontou Emma.
– O papá tinha os conhecimentos. Eu só fazia o que ele me dizia.
– Não sabia que contavam com cavalos dessa qualidade – disse Leo com espanto.
Gabrielle sentiu-se insultada.
– Pensavas que não passávamos de um grupo de palhaços? Pensei que saberias que o Circo Equestre é bem conhecido pelos seus cavalos.
Uma faísca de diversão brilhou nos olhos de Leo.
– Não tinha intenção de vos ofender. Perdoa-me. É que tenho um grande interesse em cavalos de educação clássica. Tive a oportunidade de ver alguns lusitanos em Portugal e achei que eram maravilhosos.
Gabrielle aceitou o seu pedido de desculpas com um gracioso movimento de cabeça.
– Portugal tem um historial magnífico de cavalos treinados com o método clássico – garantiu com um tom de voz um pouco frio. – França, é claro, também, mas a revolução destruiu-o. O meu pai estava decidido a manter viva a tradição. Todos os nossos cavalos foram treinados desse modo.
– Isso é maravilhoso. Quem monta os holstein?
– Eu. O meu irmão Mathieu acompanha-me no pas de deux.
– Estou desejoso de os ver a actuar – disse, com tal sinceridade que conseguiu acalmar Gabrielle.
Ela sorriu. Contudo, ele não lhe devolveu o sorriso.
«Muito bem, monsieur», pensou incomodada. «Se quer que isto seja apenas profissional, será apenas profissional».
– Quantos empregados há? – perguntou Leo.
– O grupo fixo é a minha família: os meus irmãos Mathieu e Albert, Gerard, que é o chefe de pista, e Emma e os seus cães. Somos cinco. Depois há os números que nos acompanham.
– E que números são esses?
– Primeiro há a banda do circo, composta por quatro membros. E depois há Luc Balzac, o nosso cavaleiro, Henri e Franz e Carlotta Martin, equilibristas da corda bamba, e os Maroni, que são quatro e são acrobatas. Sully é o nosso palhaço, Paul Gronow o malabarista...
Gabrielle inclinou ligeiramente a cabeça para um lado.
– Quantos já disse? Perdi a conta.
– Catorze mais os cinco membros permanentes – disse Leo.
– Ah, e também empregamos dois moços de estrebaria.
– Quantas dessas pessoas têm conhecimento do ouro?
– Os meus dois irmãos e eu – garantiu a jovem, sorrindo ao seu companheiro. – E Emma e Gerard. Apenas os que passam o Inverno connosco.
– E os rapazes?
– Jean e Cesar não passam o Inverno connosco. Aparecem no circo quando já está tudo montado.
– Portanto cinco pessoas. E todos os outros pensarão que estamos realmente casados?
– Sim – respondeu Gabrielle. – Suponho que é bom que sejas tão atraente. Isso tornará mais credível que me tenha casado com alguém de fora do circo.
– Obrigado – disse Leo com sarcasmo.
Ela encolheu os ombros.
– Estou apenas a dizer a verdade. Vai ser difícil explicar o teu aparecimento. E além disso terás de trabalhar. Não poderás andar às voltas e não fazer nada. Todos os que me conhecem sabem que nunca me casaria com alguém assim.
Leo limitou-se a olhar para ela.
– O que achas que poderias fazer? – perguntou-lhe ela.
– Não faço ideia – respondeu Leo com secura. – Mas não esperes que participe no espectáculo. Ajudarei com as tarefas, mas não tenciono fazer uma figura ridícula à frente de outras pessoas.
Os olhos de Gabrielle brilharam.
– As pessoas que actuam no nosso circo são artistas, Leo – disse. – Nunca me ocorreria pôr um amador na pista.
– Óptimo – respondeu ele. – Então entendemo-nos. Estou aqui para levar o ouro para Wellington. Se tiver de trabalhar, fá-lo-ei, mas não à frente do público.
– Muito bem – disse Gabrielle, apertando os lábios.
Então, serviram o primeiro prato.
«De que raios poderemos falar?», perguntou-se Leo. «O que tenho eu em comum com as pessoas do circo?»
– Parece que estamos a ser testemunhas dos últimos dias de Napoleão – disse Gabrielle com naturalidade. – A sua «Grande Armada» foi destruída na Rússia e em breve o general Wellington derrotará o seu exército em Espanha.
A guerra era um tema de conversa de que Leo conseguia sempre falar e respondeu adequadamente. Assim, a guerra e os assuntos internacionais ocuparam o resto do jantar e, quando se levantou para acompanhar as duas damas, Leo sentia-se um pouco melhor. Já que tinha de passar um mês inteiro ao lado de uma artista de circo, era um alívio comprovar que pelo menos parecia inteligente.