Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.
Núñez de Balboa, 56
28001 Madrid
A outra mulher
Título original: The Other Woman
© 2018, Daniel Silva
© 2019, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.
Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A. ou
HarperCollins Publishers Limited, UK.
Tradutor: Ana Filipa Velosa
Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.
Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A. ou HarperCollins Publishers Limited, UK.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.
Desenho da capa: HarperCollins Holland
Imagem da capa: Dreamstime.com
1ª edição: Março 2019
ISBN: 978-84-9139-296-5
Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.
Créditos
Dedicatoria
Citas
PRÓLOGO
MOSCOVO: 1974
PRIMEIRA PARTE COMBOIO NOTURNO PARA VIENA
I BUDAPESTE, HUNGRIA
2 VIENA
3 VIENA
4 WESTBAHNHOF, VIENA
5 FLORISDORF, VIENA
6 VIENA - TELAVIVE
7 AVENIDA REI SAUL, TELAVIVE
8 NARKISS STREET, JERUSALÉM
9 AVENIDA REI SAUL, TELAVIVE
10 BOSQUES DE VIENA, ÁUSTRIA
11 ANDALUZIA, ESPANHA
12 BELGRAVIA, LONDRES
13 EATON SQUARE, LONDRES
14 EATON SQUARE, LONDRES
15 EMBAIXADA BRITÂNICA, WASHINGTON
16 BAIRRO BELVEDERE, VIENA
17 THE PALISADES, WASHINGTON
18 VIENA - BERNA
19 HOTEL SCHWEIZERHOF, BERNA
20 HOTEL SCHWEIZERHOF, BERNA
21 HOTEL SCHWEIZERHOF, BERNA
SEGUNDA PARTE GIN COR-DE-ROSA NO NORMANDIE
22 BERNA
23 BERNA
24 BERNA
25 HAMPSHIRE, INGLATERRA
26 HAMPSHIRE, INGLATERRA
27 FORTE MONCKTON, HAMPSHIRE
28 BOSQUES DE VIENA, ÁUSTRIA
29 BOSQUES DE VIENA, ÁUSTRIA
30 BOSQUES DE VIENA, ÁUSTRIA
31 ANDALUZIA, ESPANHA
32 FRANKFURT - TELAVIVE - PARIS
33 TENLEYTOWN, WASHINGTON
34 ESTRASBURGO, FRANÇA
35 ALTA GALILEIA, ISRAEL
36 ALTA GALILEIA, ISRAEL
37 ALTA GALILEIA, ISRAEL
38 ALTA GALILEIA, ISRAEL
39 ALTA GALILEIA, ISRAEL
40 WORMWOOD COTTAGE, DARTMOOR
41 WORMWOOD COTTAGE, DARTMOOR
42 WORMWOOD COTTAGE, DARTMOOR
43 SLOUGH, BERKSHIRE
44 WORMWOOD COTTAGE, DARTMOOR
45 DARTMOOR - LONDRES
46 ZAHARA, ESPANHA
47 ZAHARA - SEVILHA
48 SEVILHA
49 SEVILHA
50 SEVILHA
TERCEIRA PARTE JUNTO AO RIO
51 SEVILHA - LONDRES
52 BAYSWATER ROAD, LONDRES
53 NARKISS STREET, JERUSALÉM
54 RUE SAINT-DENIS, MONTREAL
55 MONTREAL - WASHINGTON
56 FOXHALL, WASHINGTON
57 FOREST HILLS, WASHINGTON
58 TENLEYTOWN, WASHINGTON
59 WARREN STREET, WASHINGTON
60 THE PALISADES, WASHINGTON
61 QUARTEL-GENERAL DO SVR, YASENEVO
62 FOREST HILLS, WASHINGTON
63 WARREN STREET, WASHINGTON
64 YUMA STREET, WASHINGTON
65 EMBAIXADA BRITÂNICA, WASHINGTON
66 BURLEITH, WASHINGTON
67 WISCONSIN AVENUE, WASHINGTON
68 WISCONSIN AVENUE, WASHINGTON
69 WISCONSIN AVENUE, WASHINGTON
70 WISCONSIN AVENUE, WASHINGTON
71 CHESAPEAKE STREET, WASHINGTON
72 WISCONSIN AVENUE, WASHINGTON
73 WISCONSIN AVENUE, WASHINGTON
74 BURLEITH, WASHINGTON
75 TENLEYTOWN, WASHINGTON
76 FOREST HILLS, WASHINGTON
77 CHESAPEAKE STREET, WASHINGTON
78 BETHESDA, MARYLAND
79 CABIN JOHN, MARYLAND
80 CIRCUNVALAÇÃO DA CAPITAL, VIRGÍNIA
81 CABIN JOHN, MARYLAND
82 CABIN JOHN, MARYLAND
83 CABIN JOHN, MARYLAND
QUARTA PARTE A MULHER DA ANDALUZIA
84 CABIN JOHN, MARYLAND
85 TELAVIVE - JERUSALÉM
86 EATON SQUARE, LONDRES
87 TERRAS ALTAS DA ESCÓCIA
88 ZAHARA, ESPANHA
Nota do autor
Agradecimentos
Se gostou deste livro…
Mais uma vez, para a minha esposa,
Jamie, e para os meus filhos, Nicholas e Lily.
Foi-lhe dada uma nova vida quando o Centro finalmente sugeriu que ele participasse na formação e treino de uma nova geração de agentes da escola de espiões do KGB, missão que aceitou com grande entusiasmo. Demonstrou ser um excelente professor, transmitindo o que sabia com prazer, paciência e devoção. Adorava o trabalho.
Yuri Modin, My Five Cambridge Friends
E o que é que se sabe sobre os traidores, ou sobre o motivo de Judas ter feito o que fez?
Jean Rhys, Vasto Mar de Sargaços
O carro era uma limusina Zil, preta e alargada, com cortinas plissadas nas janelas de trás. Ia a acelerar do Aeroporto Sheremetyevo rumo ao centro de Moscovo, ao longo de uma faixa reservada a membros do Politburo e do Comité Central. A noite já tinha caído quando chegaram ao destino, uma praça que ostentava o nome de um escritor russo, numa parte velha da cidade conhecida como Lagos do Patriarca. A criança e os dois homens de fato cinzento caminharam por ruas estreitas e mal iluminadas, até chegarem a um oratório rodeado de plátanos moscovitas. O apartamento ficava em frente de um beco. Passaram por uma porta de madeira e enfiaram-se num elevador que os depositou num átrio sombrio. Aguardava-os um lanço de escadas. Por força do hábito, a criança contou os degraus. Eram quinze. No final da escadaria, havia outra porta; desta feita era de couro acolchoado. Aí, havia um homem bem-vestido, de pé e de bebida na mão. Alguma coisa no seu rosto desfigurado lhe era familiar. A sorrir, proferiu uma única palavra em russo. Passariam muitos anos até a criança compreender o que a palavra significava.
Nada daquilo teria acontecido — nem a busca desesperada do traidor, nem as tensas alianças, nem as mortes desnecessárias — se não fosse pelo pobre Heathcliff. Ele era a sua figura trágica, a sua promessa quebrada. No final, ele provaria ser mais um motivo de orgulho para Gabriel. Dito isto, Gabriel teria preferido que Heathcliff ainda estivesse ao seu serviço. Ativos como Heathcliff não apareciam todos os dias, às vezes apenas uma vez em toda uma carreira, raramente duas vezes. Assim era a natureza da espionagem, lamentava Gabriel. Assim era a própria vida.
Heathcliff não era o seu nome verdadeiro; fora gerado aleatoriamente por computador, pelo menos foi o que os seus responsáveis alegaram. O programa escolhera, deliberadamente, um nome de código que não tinha qualquer semelhança com o nome real, nacionalidade ou tipo de trabalho do ativo. Nesse aspeto, fora bem-sucedido. O homem ao qual o nome Heathcliff fora atribuído não era um órfão enjeitado nem um romântico empedernido. Também não era amargurado nem vingativo nem possuía uma natureza violenta. Na verdade, nada tinha em comum com o Heathcliff de Brontë, exceto a tez morena, pois a sua mãe era oriunda da antiga república soviética da Geórgia. A mesma república, assinalava ela com orgulho, do Camarada Estaline, cujo retrato continuava pendurado na sala de estar do seu apartamento de Moscovo.
Porém, Heathcliff falava e lia inglês fluentemente e era um admirador do romance vitoriano. De facto, a ideia de estudar literatura inglesa seduzira-o, antes de ter recuperado a sensatez e ter ingressado no Instituto de Línguas Estrangeiras de Moscovo, considerada a segunda universidade mais conceituada da União Soviética. O seu orientador educacional era um caçador de talentos do SVR, os Serviços Secretos Externos, e, depois da licenciatura, Heathcliff foi convidado a ingressar na academia do SVR. A sua mãe, embriagada de alegria, colocou flores e fruta fresca aos pés do retrato do Camarada Estaline.
— Ele está a ver-te — disse ela. — Um dia, vais ser um homem importante. Um homem temido. — Aos olhos da mãe, isso era o melhor que um homem podia ser.
A ambição da maioria dos cadetes era trabalhar no estrangeiro, numa rezidentura (uma delegação do SVR), onde recrutariam e coordenariam espiões inimigos. Era necessário um determinado tipo de agente para realizar este trabalho. Tinha de ser ousado, confiante, conversador, perspicaz, um sedutor nato. Infelizmente, Heathcliff não fora agraciado com nenhuma dessas qualidades. Também não possuía os atributos físicos exigidos para a realização de algumas das tarefas mais desagradáveis do SVR. Tinha, no entanto, facilidade para as línguas (para além de inglês, falava fluentemente alemão e neerlandês) e uma memória considerada excecional, até mesmo segundo os elevados padrões do SVR. Foi-lhe dada a possibilidade de escolher, uma raridade no mundo hierárquico do SVR. Poderia trabalhar em Moscovo Centro, como tradutor, ou no terreno, como estafeta. Escolheu a última opção, selando, dessa forma, o seu destino.
Não era um trabalho glamoroso, mas era vital. Com as suas quatro línguas e uma pasta cheia de passaportes falsos, deambulava pelo mundo ao serviço da pátria, um moço de recados clandestino, um carteiro secreto. Recolhia informação depositada em locais ocultos, enfiava dinheiro em cofres e, ocasionalmente, até estabelecia contacto com um verdadeiro agente pago de Moscovo Centro. Não era invulgar passar trezentas noites por ano fora da Rússia, o que o tornou inadequado para o casamento ou até mesmo para uma relação séria. O SVR providenciava-lhe conforto feminino quando estava em Moscovo (raparigas jovens e bonitas que, em circunstâncias normais, nunca olhariam para ele duas vezes), mas, quando viajava, era propenso a crises de intensa solidão.
Foi durante um desses episódios, num bar de hotel em Hamburgo, que conheceu Catherine. Estava a beber vinho branco na mesa do canto; era uma mulher atraente de trinta e poucos anos, cabelo castanho-claro, braços e pernas bronzeados. Heathcliff tinha ordens para evitar esse tipo de mulheres enquanto viajava. Invariavelmente, eram agentes secretas hostis ou prostitutas ao seu serviço. Porém, Catherine não aparentava sê-lo. E, quando olhou para Heathcliff de soslaio sobre o telemóvel e sorriu, ele sentiu uma descarga de eletricidade vinda do coração diretamente para a virilha.
— Quer fazer-me companhia? — perguntou ela. — De facto, detesto beber sozinha.
O seu nome não era Catherine, era Astrid. Pelo menos, foi esse o nome que ela lhe sussurrou ao ouvido enquanto percorria, suavemente, o interior da sua coxa com a unha. Era holandesa, o que significava que Heathcliff, que estava a fazer-se passar por um empresário russo, podia dirigir-se a ela na sua língua materna. Depois de várias bebidas, ela fez-se convidada para o quarto de Heathcliff, onde ele se sentia seguro. Acordou na manhã seguinte com uma enorme ressaca, algo que era invulgar nele, e sem qualquer recordação de se ter envolvido no ato amoroso. Nessa altura, Astrid já tinha tomado duche e estava embrulhada num roupão de banho. À luz do dia, a sua extraordinária beleza era evidente.
— Estás livre esta noite? — perguntou ela.
— Não devia.
— Porque não?
Não tinha resposta.
— Mas vais levar-me a um encontro em condições. Um jantar agradável. Talvez uma discoteca, depois.
— E a seguir?
Ela abriu o roupão, revelando um belíssimo par de seios. Por mais que tentasse, Heathcliff não conseguia lembrar-se de os ter acariciado.
Trocaram números de telefone, outro ato proibido, e separaram-se. Heatchcliff tinha duas incumbências em Hamburgo nesse dia que exigiam várias horas de «limpeza a seco[1]» para se assegurar de que não estava sob vigilância. Enquanto completava a segunda tarefa (o esvaziamento regular de uma caixa de correio secreta), recebeu uma mensagem de texto com o nome de um restaurante da moda, próximo do porto. Chegou à hora marcada e deparou-se com uma radiante Astrid já sentada à mesa, atrás de uma garrafa aberta de um Montrachet hediondamente caro. Heathcliff franziu o sobrolho; teria de pagar o vinho do seu próprio bolso. Moscovo Centro monitorizava cuidadosamente as suas despesas e repreendia-o quando excedia as suas ajudas de custo.
Astrid pareceu sentir o seu desconforto.
— Não te preocupes, é por minha conta.
— Pensei que era suposto ser eu a levar-te a um encontro em condições.
— Eu disse mesmo isso?
Foi nesse instante que Heathcliff percebeu que cometera um erro terrível. Os seus instintos disseram-lhe que se virasse e corresse, mas sabia que não valia a pena; a sua cama estava feita. Portanto, ficou no restaurante e jantou com a mulher que o traíra. A conversa entre eles foi formal e tensa (como num mau drama televisivo) e, quando a conta chegou, foi Astrid que pagou. Em dinheiro, evidentemente.
No exterior, aguardava-os um automóvel. Heathcliff não levantou quaisquer objeções quando Astrid lhe indicou calmamente que entrasse para o banco de trás. Também não protestou quando o carro se dirigiu na direção oposta ao seu hotel. Era bastante óbvio que o condutor era um profissional; não disse uma palavra, enquanto executava várias manobras exemplares concebidas para despistar a vigilância. Astrid passou o tempo a enviar e receber mensagens de texto. Não dirigiu uma única palavra a Heathcliff.
— Alguma vez…
— Fizemos amor? — perguntou ela.
— Sim.
Ela fitou o exterior pela janela.
— Ótimo — disse ele. — É melhor assim.
Quando finalmente pararam, foi numa pequena casa junto ao mar. No interior, esperava-os um homem. Dirigiu-se a Heathcliff num inglês com sotaque alemão. Disse que o seu nome era Marcus. Disse que trabalhava para um serviço de espionagem ocidental. Não especificou qual. Depois, mostrou a Heathcliff vários documentos altamente sensíveis que Astrid copiara da sua pasta trancada na noite anterior, enquanto ele se encontrava incapacitado pelas drogas que ela lhe dera. Heathcliff iria continuar a fornecer-lhes documentos como esses, disse Marcus, e muito mais. Caso contrário, Marcus e os seus colegas iriam utilizar o material que tinham em sua posse para ludibriar Moscovo Centro, convencendo-os de que Heathcliff era um espião.
Ao contrário do seu homónimo, Heathcliff não era azedo nem vingativo. Regressou a Moscovo meio milhão de dólares mais rico e aguardou a sua missão seguinte. O SVR enviou uma bela jovem ao seu apartamento de Sparrow Hills. Quase desmaiou de medo quando ela se apresentou como Ekaterina. Fez-lhe uma omeleta e mandou-a embora, sem lhe tocar.
A esperança de vida de um homem na posição de Heathcliff não era longa. A pena para a traição era a morte. Tal como todos aqueles que trabalhavam para o SVR, Heathcliff ouvira as histórias. As histórias de homens adultos a implorar por uma bala que pusesse fim ao seu sofrimento. Esta chegaria, eventualmente, à maneira russa, na nuca. O SVR referia-se a isso como vysshaya mera: a mais elevada medida de punição. Heathcliff decidiu que nunca se deixaria cair nas suas mãos. Obteve de Marcus uma ampola suicida. Bastaria tomar um pouco. Passados dez segundos, tudo terminaria.
Marcus também deu a Heathcliff um aparelho de comunicações secretas que lhe permitia transmitir relatórios via satélite com pacotes de dados encriptados. Heathcliff raramente o usava; em vez disso, preferia transmitir a informação a Marcus pessoalmente, durante as suas viagens ao estrangeiro. Sempre que possível, permitia que Marcus fotografasse o conteúdo da sua pasta, mas, na maioria das vezes, falavam. Heathcliff era um homem sem importância, mas trabalhava para homens importantes e transportava os seus segredos. Para além disso, conhecia os locais secretos russos de depósito de informações em todo o mundo, algo que levava sempre consigo na sua memória prodigiosa. Heathcliff tinha o cuidado de não revelar demasiado, demasiado depressa (para seu próprio bem e para bem da sua conta bancária em rápido crescimento). Entregava os seus segredos fragmentados, de forma a aumentar o seu valor. Meio milhão transformou-se num milhão no período de um ano. Depois, dois. E, depois, três.
A consciência de Heathcliff permanecia imperturbável (era um homem sem ideologia ou orientação política), mas o medo perseguia-o dia e noite. Medo de que Moscovo Centro soubesse da sua perfídia e estivesse a observar todos os seus movimentos. Medo de ter revelado um segredo a mais ou que um dos espiões do Centro no Ocidente hipoteticamente o denunciasse. Suplicou a Marcus, diversas vezes, para o libertar do frio. Porém, por vezes com um pouco de bálsamo calmante, outras vezes com um estalido de chicote, Marcus recusou. Heathcliff deveria continuar a espiar até que a sua vida estivesse verdadeiramente em perigo. Só nesse momento seria autorizado a desertar. Heathcliff duvidava, justificadamente, da capacidade de Marcus para avaliar o preciso momento em que a espada estivesse prestes a cair sobre a sua cabeça, mas não teve outra hipótese senão continuar. Marcus chantageara-o até o submeter à sua vontade. E iria espremê-lo até ao último segredo, antes de o libertar do seu vínculo.
Mas nem todos os segredos são iguais. Alguns são triviais, comuns, e podem ser transmitidos com pouca ou nenhuma ameaça para o mensageiro. Outros, contudo, são demasiado perigosos para entregar. Eventualmente, Heathcliff encontrou um desses segredos numa caixa de correio secreta, na distante Montreal. A caixa de correio era, na verdade, um apartamento vazio, utilizado por um russo ilegal que, há muitos anos, operava com uma identidade falsa nos Estados Unidos. Escondida no armário sob o lavatório da cozinha, havia uma pen. Heathcliff tinha ordens para recolhê-la e transportá-la de volta para Moscovo Centro, escapando assim à todo-poderosa Agência de Segurança Nacional Americana. Antes de abandonar o apartamento, inseriu a pen no seu computador portátil e descobriu que esta se encontrava aberta e os seus conteúdos não encriptados. Heathcliff leu os documentos sem qualquer constrangimento. Eram de diferentes serviços de espionagem americanos, todos com o mais elevado nível de confidencialidade possível.
Heathcliff não se atreveu a copiar os documentos. Em vez disso, fixou todos os detalhes na sua memória infalível e regressou a Moscovo Centro, onde entregou a pen ao seu agente superior, juntamente com uma reprimenda severamente formulada pelo fracasso do russo ilegal em proteger adequadamente o seu conteúdo. O agente superior, que se chamava Volkov, prometeu tratar da questão. Depois, como recompensa, ofereceu a Heathcliff uma viagem de reduzido nível de stresse até à amigável Budapeste.
— Considera-o como umas férias pagas, cortesia de Moscovo Centro. Não me interpretes mal, Konstantin, mas pareces estar a precisar de descanso.
Nessa noite, Heathcliff usou o aparelho de comunicações secretas para informar Marcus de que descobrira um segredo de tal importância que não tinha outra opção senão desertar. Para sua surpresa, Marcus não se opôs. Instruiu Heathcliff para que se livrasse do aparelho de forma a que jamais pudesse ser encontrado. Heathcliff esmagou-o em pedaços e despejou os restos num esgoto a céu aberto. Nem mesmo os cães farejadores da direção de segurança do SVR, cogitou, procurariam ali.
Uma semana depois, após visitar a mãe pela última vez, no seu minúsculo apartamento onde pendia o retrato ameaçador de um Camarada Estaline sempre vigilante, Heathcliff deixou a Rússia pela derradeira vez. Chegou a Budapeste ao final da tarde, enquanto a neve caía suavemente sobre a cidade, e apanhou um táxi para o Hotel InterContinental. O seu quarto tinha vista para o Danúbio. Trancou as duas fechaduras da porta e colocou a barra de segurança. Depois, sentou-se à secretária e esperou que o telemóvel tocasse. Ao lado deste, encontrava-se a ampola suicida de Marcus. Bastaria tomar um pouco. Dez segundos. Depois, tudo terminaria.
[1] No original «dry cleaning», uma técnica de contraespionagem que tem como objetivo detetar agentes inimigos que estejam a fazer vigilância e despistá-los. (N. T.)
A duzentos e quarenta quilómetros para noroeste, à distância de algumas curvas indolentes ao longo do rio Danúbio, uma exposição que exibia os trabalhos de Sir Peter Paul Rubens (pintor, académico, diplomata, espião) arrastava-se rumo à sua melancólica conclusão. As hordas importadas tinham chegado e partido e, ao final da tarde, apenas alguns mecenas habituais do velho museu se deslocavam hesitantemente através das suas salas rosadas. Um deles era um homem de meia-idade. Inspecionava as gigantescas telas, com os seus nus corpulentos rodopiando no meio de sumptuosos cenários históricos, sob a aba de uma boina de corte italiano, que estava puxada para baixo, tapando o sobrolho.
Nas suas costas, de pé, um homem mais novo consultava impacientemente as horas no relógio de pulso.
— Quanto tempo mais, chefe? — perguntou, em voz baixa, em hebreu. Mas o homem mais velho respondeu em alemão e suficientemente alto para que o sonolento guarda no canto conseguisse ouvir:
— Há apenas mais um que gostaria de ver antes de me ir embora, obrigado.
Entrou na sala seguinte e deteve-se diante de A Virgem e o Menino, óleo sobre tela, 137 por 111 centímetros. Conhecia intimamente o quadro; restaurara-o numa casa junto ao mar a oeste da Cornualha. Agachando-se ligeiramente, examinou a superfície iluminada obliquamente. O seu trabalho aguentara-se bem. Se pelo menos pudesse dizer o mesmo de si próprio, pensou, esfregando a flamejante área de dor na base da sua coluna. As duas vértebras fraturadas recentemente eram a menor das suas maleitas físicas. Durante a sua longa e ilustre carreira como agente dos serviços secretos israelitas, Gabriel Allon fora baleado no peito duas vezes, atacado por um cão de guarda pastor-alemão e atirado por diversos lanços de escadas abaixo na cave de Lubyanka, em Moscovo. Nem mesmo Ari Shamron, o seu lendário mentor, conseguia igualar o seu histórico de lesões corporais.
O jovem que seguia Gabriel através das salas do museu chamava-se Oren. Era o chefe do destacamento de segurança de Gabriel, um bónus indesejado de uma promoção recente. Tinham passado as trinta e seis horas anteriores em viagem, de Telavive até Paris de avião e, depois, de Paris até Viena de automóvel. Agora, caminhavam pelas salas de exposição desertas até à escadaria do museu. Começara uma tempestade de neve, com flocos grandes e suaves a caírem a direito na noite sem vento. Um visitante normal da cidade poderia ter achado a cena pitoresca, os elétricos a deslizarem ao longo de ruas polvilhadas de açúcar e ladeadas por palácios vazios e igrejas. Mas Gabriel não. Viena sempre o deprimira, e, mais do que nunca, quando nevava.
O carro aguardava na rua, com o condutor ao volante. Gabriel puxou o colarinho do seu velho casaco Barbour para junto das orelhas e informou Oren de que pretendia caminhar até ao andar seguro.
— Sozinho — acrescentou.
— Não posso deixá-lo andar a caminhar por Viena sem proteção, chefe.
— Porque não?
— Porque agora é o chefe. E se lhe acontecer alguma coisa…
— Dirás que estavas a cumprir ordens.
— Exatamente como os austríacos. — Na escuridão, o guarda-costas entregou uma pistola Jericho de 9 mm a Gabriel. — Pelo menos, leve isto consigo.
Gabriel guardou sorrateiramente a Jericho no cós das calças.
— Estarei no andar seguro daqui a trinta minutos. Informarei a Avenida Rei Saul quando chegar.
A Avenida Rei Saul era a morada dos serviços secretos israelitas. O serviço tinha um nome longo e deliberadamente enganoso que tinha muito pouco a ver com a verdadeira natureza das suas atividades. Até mesmo o chefe se referia a ele simplesmente como o Departamento.
— Trinta minutos — repetiu Oren.
— E nem mais um minuto — garantiu Gabriel.
— E se se atrasar?
— Significa que fui assassinado ou raptado pelo ISIS, pelos russos, pelo Hezbollah, pelos iranianos ou por outra pessoa qualquer que tenha podido ofender. No vosso lugar, não acalentaria grande esperança na minha sobrevivência.
— Então e nós?
— Vocês ficam bem, Oren.
— Não foi isso que quis dizer.
— Não quero que se aproximem, de forma nenhuma, do andar seguro — disse Gabriel. — Continuem em movimento até terem notícias minhas. E, lembrem-se, não tentem seguir-me. Isto é uma ordem direta.
O guarda-costas fitou Gabriel em silêncio, com uma expressão preocupada no rosto.
— O que é que foi agora, Oren?
— Tem a certeza de que não quer companhia, chefe?
Gabriel virou-se sem dizer mais nada e desapareceu na noite.
Atravessou a Burgring e começou a caminhar pelos trilhos do Volksgarten. Tinha uma estatura abaixo da média (um metro e setenta, talvez, não mais) e possuía o físico seco de um ciclista. O rosto era comprido e estreito no queixo, com maçãs do rosto largas e um nariz longo e esguio que parecia ter sido esculpido em madeira. Os olhos eram de um invulgar tom de verde; o cabelo era escuro com fios grisalhos nas têmporas. Era um rosto com muitas origens nacionais possíveis e Gabriel possuía os dotes linguísticos necessários para fazer uso disso. Falava fluentemente cinco línguas, incluindo italiano, que aprendera antes de viajar para Veneza, em meados dos anos 70, para estudar o ofício de conservação de arte. Depois disso, vivera como um restaurador taciturno, mas talentoso, chamado Mario Delvecchio, enquanto, simultaneamente, trabalhava como espião e assassino para o Departamento. Alguns dos seus melhores trabalhos tinham sido executados em Viena. Alguns dos piores também.
Contornou a extremidade do Burgtheater, o mais prestigiado palco do mundo germanófono, e seguiu a Bankgasse até ao Café Central, um dos mais famosos cafés de Viena. Aí, espreitou através das janelas foscas e, na sua memória, vislumbrou Erich Radek, colega de Adolf Eichmann, algoz da mãe de Gabriel, a bebericar um Einspänner numa mesa, sozinho. Radek, o assassino, era nebuloso e indefinido, como uma figura num quadro a precisar de ser restaurado.
— Tem a certeza de que não nos conhecemos? O seu rosto parece-me muito familiar.
— Sinceramente, duvido.
— Talvez voltemos a ver-nos.
— Talvez.
A imagem dissolveu-se. Gabriel virou-se para trás e caminhou até ao antigo Bairro Judeu. Antes da Segunda Guerra Mundial, era o lar de uma das mais vibrantes comunidades judaicas do mundo. Agora, a comunidade era, sobretudo, uma memória. Observou alguns homens idosos que saíam tremulamente da porta da Stadttempel, a principal sinagoga de Viena, e, depois, dirigiu-se para uma praça vizinha, rodeada de restaurantes. Um deles era o restaurante italiano onde comera a última refeição com Leah, a sua primeira mulher, e Daniel, o filho único de ambos.
Numa rua adjacente, ficava o local onde o seu carro estivera estacionado. Involuntariamente, Gabriel abrandou, paralisado por memórias. Lembrou-se de ter dificuldades para prender as fitas da cadeirinha do filho e do ténue sabor a vinho nos lábios da esposa ao dar-lhe um último beijo. E recordou o som da hesitação do motor, como se fosse um disco a tocar na rotação errada, pois a bomba estava a retirar energia da bateria. Demasiado tarde, gritara a Leah que não girasse a chave uma segunda vez. Depois, num lampejo de branco brilhante, perdera a esposa e o filho para sempre.
O coração de Gabriel estava a bater como um sino de ferro. Agora não, disse para si próprio enquanto as lágrimas lhe turvavam a visão, tinha trabalho para fazer. Ergueu o rosto para o céu.
— É linda, não é? A neve cai sobre Viena, enquanto chovem mísseis em Telavive…
Consultou as horas no seu relógio de pulso; tinha dez minutos para chegar ao andar seguro. Enquanto se apressava a percorrer as ruas vazias, foi dominado por uma sensação avassaladora de fatalidade iminente. Era só o clima, garantiu a si próprio. Viena deprimia-o sempre. Sobretudo, quando nevava.
O andar seguro situava-se do outro lado do Donaukanal, num prédio de habitação Biedermeier elegante e antigo do Segundo Distrito. Era um quarteirão mais movimentado, um bairro autêntico, em vez de um museu. Havia um pequeno supermercado Spar, uma farmácia, dois restaurantes asiáticos, até mesmo um templo budista. Automóveis e motas passavam para um lado e para o outro ao longo da rua e os peões caminhavam pelos passeios. Era o tipo de lugar onde ninguém repararia no chefe dos serviços secretos israelitas. Nem num desertor russo, pensou Gabriel.
Virou para uma viela, atravessou um pátio e entrou num vestíbulo. As escadas estavam às escuras e, no quarto andar, deparou-se com uma porta entreaberta. Esgueirou-se para o interior, fechou a porta atrás de si e caminhou silenciosamente para a sala de estar, onde Eli Lavon estava sentado atrás de uma coleção de computadores portáteis abertos. Lavon ergueu o olhar, viu a neve na boina e nos ombros de Gabriel e franziu o sobrolho.
— Por favor, diz-me que não vieste a pé.
— O carro avariou. Não tive outra hipótese.
— Não foi essa a história que o teu guarda-costas contou. É melhor informares a Avenida Rei Saul de que estás aqui. Caso contrário, é provável que a nossa operação se transforme numa operação de busca e salvamento.
Gabriel debruçou-se sobre um dos computadores, escreveu uma mensagem breve e disparou-a, de forma segura, para Telavive.
— Crise evitada — disse Lavon.
Envergava uma camisola de malha sob o casaco de tweed amarrotado e uma gravata Ascot no pescoço. Tinha o cabelo esbranquiçado e despenteado e umas feições insonsas e fáceis de esquecer. Era uma das suas maiores virtudes. Eli Lavon parecia pertencer à classe dos oprimidos e dos humilhados deste mundo. No entanto, era um predador nato, capaz de seguir um agente secreto cuidadosamente treinado ou um terrorista bem curtido por qualquer rua do mundo sem chamar a mínima atenção. Dirigia a divisão do Departamento conhecida como Neviot. Os seus agentes incluíam artistas de vigilância, carteiristas, ladrões e especialistas em colocar câmaras ocultas e aparelhos de escuta atrás de portas trancadas. As suas equipas tinham estado muito ocupadas nesse início de noite em Budapeste.
Apontou com a cabeça para um dos computadores. Mostrava um homem sentado à secretária de um luxuoso quarto de hotel. Um saco por abrir repousava aos pés da cama. Diante do homem, havia um telemóvel e uma ampola.
— Isso é uma fotografia? — perguntou Gabriel.
— Vídeo.
Gabriel bateu suavemente com os dedos no ecrã do computador.
— Ele não te consegue ouvir, sabias?
— Tens a certeza de que está vivo?
— Está completamente apavorado. Em cinco minutos, não mexeu um músculo.
— Tem tanto medo de quê?
— É russo — disse Lavon, como se esse simples facto fosse explicação suficiente.
Gabriel estudou Heathcliff como se se tratasse de uma figura de um quadro. Konstantin Kirov, o seu nome verdadeiro, era uma das fontes mais valiosas do Departamento. Só uma pequena parte da informação de Kirov estava diretamente relacionada com a segurança de Israel, mas o enorme excedente dera dividendos em Londres e Langley, onde os diretores do MI6 e da CIA se deleitavam avidamente com cada conjunto de segredos vertidos da pasta do russo. Os anglo-americanos não tinham jantado de graça. Ambos os serviços tinham ajudado a pagar a fatura da operação e, depois de muitas pressões entre serviços, os britânicos tinham aceitado conceder asilo a Kirov no Reino Unido.
Porém, o primeiro rosto que o russo veria depois de desertar seria o de Gabriel Allon. A história de Gabriel com os serviços secretos russos e os homens do Kremlin era longa e banhada de sangue. Por esse motivo, queria ser ele a conduzir pessoalmente a operação inicial de passagem de informações. Mais especificamente, desejava saber o que Kirov descobrira exatamente e por que motivo precisava, de repente, de desertar. Depois, Gabriel deixaria o russo nas mãos do chefe de delegação do MI6 em Viena. Gabriel tinha todo o prazer em deixar os britânicos ficarem com ele. Agentes descobertos eram, invariavelmente, uma dor de cabeça, especialmente agentes descobertos russos.
Finalmente, Kirov mexeu-se.
— Que alívio — disse Gabriel.
A imagem no ecrã deteriorou-se, tornando-se num mosaico digital durante alguns segundos, antes de voltar ao normal.
— Tem estado assim toda a noite — explicou Lavon. — A equipa deve ter colocado o transmissor por cima de algum tipo de interferência.
— Quando é que eles entraram no quarto?
— Aproximadamente uma hora antes da chegada do Heathcliff. Quando hackeámos o sistema de segurança do hotel, fizemos um desvio até às reservas e tirámos o número de quarto dele. Entrar no quarto propriamente dito não foi difícil.
Os feiticeiros da divisão de Tecnologia do Departamento tinham desenvolvido um cartão mágico, capaz de abrir qualquer porta eletrónica de qualquer quarto de hotel do mundo. A primeira passagem roubava o código. A segunda abria a fechadura.
— Quando é que a interferência começou?
— Assim que ele entrou no quarto.
— Alguém o seguiu do aeroporto até ao hotel?
Lavon abanou a cabeça.
— Algum nome suspeito nos registos do hotel?
— A maioria dos hóspedes vem participar na conferência «A Sociedade de Engenheiros Civis da Europa de Leste» — explicou Lavon. — É um verdadeiro desfile de cromos. Há muitos tipos com porta-lápis de bolso.
— Costumavas ser um desses tipos, Eli.
— Ainda sou. — A imagem voltou a transformar-se num mosaico. — Caramba — disse Lavon suavemente.
— A equipa verificou a ligação?
— Duas vezes.
— E?
— Não há mais ninguém na linha. E, mesmo que houvesse, o sinal está tão encriptado que seriam necessários dois supercomputadores por mês para reagrupar as peças. — A imagem estabilizou. — Assim está melhor.
— Deixa-me ver o átrio.
Lavon premiu suavemente as teclas de outro computador, fazendo surgir uma imagem do átrio. Era um mar de roupa malfeita, crachás de identificação e cabelos com entradas. Gabriel examinou os rostos em busca de um que parecesse estar desenquadrado. Encontrou quatro: dois homens e duas mulheres. Utilizando as câmaras do hotel, Lavon captou imagens estáticas de cada um deles e reenviou-as para Telavive. No ecrã do computador portátil adjacente, Konstantin Kirov estava a olhar para o telemóvel.
— Quanto tempo tencionas fazê-lo esperar? — perguntou Lavon.
— Tempo suficiente para que a Avenida Rei Saul compare esses rostos com a base de dados.
— Se não sair em breve, vai perder o comboio.
— Mais vale perder o comboio do que ser assassinado no átrio do InterContinental por uma equipa de assassinos de Moscovo Centro. — Mais uma vez, a imagem tornou-se num mosaico. Irritado, Gabriel bateu no ecrã com os dedos.
— Não vale a pena — disse Lavon. — Já tentei fazer isso.
Passaram dez minutos até que o Departamento de Operações da Avenida Rei Saul declarou que não conseguia encontrar correspondências para os quatro rostos na galeria digital de malfeitores do Departamento, constituída por agentes secretos inimigos, terroristas suspeitos ou conhecidos e mercenários privados. Só nesse momento Gabriel escreveu uma mensagem curta num BlackBerry encriptado e premiu a tecla Enviar. Passado um momento, observou Konstantin Kirov esticar o braço para pegar no telemóvel. Depois de ler a mensagem de Gabriel, o russo ergueu-se abruptamente, vestiu o sobretudo e enrolou um lenço à volta do pescoço. Enfiou o telemóvel no bolso, mas manteve a ampola suicida na mão. A mala, deixou-a para trás.
Eli Lavon premiu algumas teclas do computador, enquanto Kirov abria a porta do quarto e saía para o corredor. As câmaras do hotel monitorizaram a sua curta caminhada até aos elevadores. Não havia outros hóspedes nem funcionários presentes e o elevador onde o russo entrou estava vazio. O átrio, contudo, estava caótico. Ninguém pareceu reparar em Kirov, enquanto se encaminhava para o exterior do hotel, incluindo dois durões do serviço de segurança húngaro que estavam a vigiar a rua.
Faltavam alguns minutos para as nove. Havia tempo suficiente para Kirov apanhar o comboio da noite para Viena, mas não podia perder tempo. Dirigiu-se para sul na Rua Apáczai Csere János, seguido por duas das sentinelas de Eli Lavon e, depois, virou para a Rua Kossuth Lajos, uma das vias principais do centro de Budapeste.
— Os meus rapazes dizem que não há ninguém a segui-lo — disse Lavon. — Nem russos, nem húngaros.
Gabriel enviou uma segunda mensagem a Konstantin Kirov, dando-lhe instruções para embarcar no comboio como planeado. Fê-lo ainda com quatro minutos de sobra, acompanhado pelas sentinelas. Por agora, não havia mais nada que Gabriel e Lavon pudessem fazer. Enquanto se fitavam mutuamente, em silêncio, os seus pensamentos eram idênticos. A espera. Sempre a espera.
Mas Gabriel e Eli Lavon não esperaram sozinhos, pois, nessa noite, tinham como parceiro operacional os Serviços Secretos de Sua Majestade, a mais antiga e importante agência dessa natureza no mundo civilizado. Seis agentes da célebre delegação de Viena (o número exato seria, em breve, uma questão que geraria alguma discórdia) mantinham uma tensa vigilância numa sala trancada da embaixada britânica e outros doze pairavam sobre computadores e telefones cintilantes em Vauxhall Cross, o quartel-general do MI6 na zona ribeirinha de Londres.
Um último agente do MI6, um homem chamado Christopher Keller, aguardava no exterior da estação ferroviária de Westbahnhof, em Viena, ao volante de um discreto sedan Volkswagen Passat. Tinha olhos azul-claros, cabelo clareado pelo sol, pómulos quadrados e um queixo largo, com uma cova no meio. A sua boca parecia esboçar permanentemente um sorriso irónico.
Com pouco mais para fazer nessa noite para além de se manter vigilante a fim de detetar a eventual presença de algum sicário russo perdido, Keller refletira sobre o caminho improvável que o conduzira até ali. O ano desperdiçado em Cambridge, a operação sob identidade falsa na Irlanda do Norte, o incidente com fogo aliado durante a primeira Guerra do Golfo que o atirara para um exílio autoimposto na ilha da Córsega. Ali, adquirira um francês perfeito, embora com sotaque corso. Também realizara serviços para uma certa notável figura corsa do crime que poderiam ser descritos genericamente como assassinatos a soldo. Mas tudo isso ficara para trás. Graças a Gabriel Allon, Christopher Keller era um respeitável agente dos Serviços Secretos de Sua Majestade. Estava restaurado.
Keller olhou para o israelita no lugar do passageiro. Era alto e esguio, com pele exangue e olhos da cor do gelo glaciar. Tinha uma expressão de profundo tédio. Contudo, o ansioso tamborilar no painel central denunciava o seu verdadeiro estado de espírito.
Keller acendeu um cigarro, o quarto em vinte minutos, e soprou uma nuvem de fumo contra o para-brisas.
— Tens mesmo de fazer isso? — protestou o israelita.
— Paro de fumar quando parares com esse maldito tamborilar. — Keller falou com o sotaque lento e afetado de West London, um resquício de uma infância privilegiada. — Estás a dar-me dor de cabeça.
Os dedos do israelita detiveram-se. O seu nome verdadeiro era Mikhail Abramov. Tal como Keller, era veterano de uma unidade militar de elite. No caso de Mikhail, tratava-se da Sayeret Matkal do exército israelita. Tinham trabalhado juntos diversas vezes anteriormente, a última das quais em Marrocos, onde tinham seguido o rasto de Saladino, líder da divisão de operações externas do ISIS, até um recinto nas Montanhas do Médio Atlas. Nenhum deles disparara o tiro que pusera fim ao reino de terror de Saladino. Gabriel antecipara-se a ambos.
— Afinal, a que vem tanto nervosismo? — perguntou Keller. — Estamos no meio da monótona e entediante Viena.
— Sim — disse Mikhail num tom distante. — Aqui nunca acontece nada.
Mikhail vivera em Moscovo quando era criança e falava inglês com um ligeiro sotaque russo. As suas capacidades linguísticas e aparência eslava tinham-lhe permitido fazer-se passar por russo em diversas operações importantes do Departamento.
— Já trabalhaste em Viena antes? — perguntou Keller.
— Uma ou duas vezes. — Mikhail verificou a sua arma, uma pistola Jericho calibre 45. — Lembras-te daqueles quatro bombistas suicidas do Hezbollah que estavam a planear um atentado na Stadttempel?
— Pensava que o EKO Cobra tinha tratado disso. — O EKO Cobra era a unidade tática da polícia austríaca. — Na verdade, tenho quase a certeza de que li qualquer coisa sobre isso nos jornais.
Mikhail fitou Keller inexpressivamente.
— Foste tu?
— Tive ajuda, evidentemente.
— Alguém que eu conheça?
Mikhail não disse nada.
— Estou a ver.
Era quase meia-noite. A rua no exterior da moderna fachada de vidro da estação estava deserta e apenas dois táxis aguardavam os últimos passageiros da noite. Um deles recolheria um desertor russo e deixá-lo-ia no Hotel Best Western, na Stubenring. Dali, ele faria a pé o resto do caminho até ao andar seguro. Mikhail, que o seguiria também a pé, decidiria se o deixariam entrar. Possivelmente, a localização do andar seguro era o segredo mais bem guardado da operação. Se Kirov não fosse seguido, Mikhail revistá-lo-ia no átrio do edifício e, depois, conduzi-lo-ia ao andar superior para que se encontrasse com Gabriel. Keller deveria permanecer em baixo, no Passat, e estabelecer um perímetro de segurança, embora não soubesse como o faria. Alistair Hughes, chefe de delegação do MI6 em Viena, proibira-o expressamente de levar uma arma. Keller tinha uma merecida reputação de ter propensão para a violência; Hughes, para a cautela. Tinha uma boa vida em Viena: uma rede produtiva, almoços demorados, relações satisfatórias com o serviço local. A última coisa que desejava era um problema que teria como resultado ser chamado de volta para uma secretária em Vauxhall Cross.
Nesse preciso momento, o BlackBerry de Mikhail iluminou-se ao receber uma nova mensagem. O brilho do ecrã iluminou-lhe o rosto pálido.
— O comboio está na estação. O Kirov está a caminho da saída.
— Heathcliff — disse Keller em tom reprovador. — O nome dele é Heathcliff até o levarmos para o andar seguro.
— Aí vem ele.
Mikhail devolveu o BlackBerry ao bolso do casaco, enquanto Kirov saía da estação, precedido de uma das sentinelas de Eli Lavon e seguido por outra.
— Parece nervoso — disse Keller.
— Está nervoso. — Mikhail estava novamente a tamborilar no painel central. — É russo.
As sentinelas abandonaram a estação a pé; Konstantin Kirov, num dos táxis. Keller seguiu-o a uma distância discreta, enquanto o automóvel se deslocava para leste, atravessando a cidade por ruas desertas. Não viu nada que sugerisse que o estafeta russo estivesse a ser seguido. Mikhail concordou.
À meia-noite e um quarto, o táxi deteve-se à porta do Best Western. Kirov saiu, mas não entrou no hotel. Em vez disso, atravessou o Donaukanal pela Schwedenbrücke, agora seguido a pé por Mikhail. A ponte deixou os dois homens na Taborstrasse e a Taborstrasse, por sua vez, desembocou num bonito largo de igreja chamado Karmeliterplatz, onde Mikhail encurtou a distância entre si e a sua presa para apenas alguns passos.
Juntos, atravessaram para uma rua adjacente e seguiram-na, para lá do desfile de lojas sombrias e cafés, na direção do prédio habitacional Biedermeier no final do bloco. A luz brilhava subtilmente numa janela do quarto andar, o suficiente para que Mikhail conseguisse distinguir a silhueta de Gabriel à contraluz, de pé, com uma mão no queixo e a cabeça ligeiramente inclinada para um lado. Mikhail enviou-lhe uma última mensagem. Kirov não estava a ser seguido.
Foi então que ouviu o som de uma mota a aproximar-se. O seu primeiro pensamento foi que não era o tipo de noite apropriado para conduzir um veículo de apenas duas rodas. Isso confirmou-se alguns segundos depois, quando viu a mota derrapar enquanto dobrava a esquina do bloco de apartamentos.
O condutor estava vestido de couro preto e usava um capacete preto, com a viseira escura puxada para baixo. A mota deslizou até parar a alguns metros de Kirov, o condutor pousou um pé no chão e tirou uma arma da parte da frente do casaco. Tinha um longo silenciador cilíndrico acoplado. Mikhail não conseguiu distinguir o modelo da arma. Uma Glock, talvez uma H&K. O que quer que fosse, estava apontada diretamente à face de Kirov.
Mikhail deixou que o telefone lhe caísse da mão e tentou agarrar a sua Jericho, mas, antes de ter conseguido extraí-la, a arma do motociclista cuspiu duas línguas de fogo. Ambos os disparos acertaram no alvo. Mikhail ouviu o estampido doentio das balas a rasgarem o crânio de Kirov e viu um lampejo de sangue e massa encefálica, enquanto ele desabava na rua.
Então, o homem da mota girou a arma alguns graus, apontando-a para Mikhail. Dois disparos, ambos falhados, atiraram-no para o passeio e outros dois levaram-no a rastejar em direção ao abrigo de um automóvel estacionado. A sua mão direita encontrou a Jericho. Enquanto a sacava, o homem da mota ergueu o pé e ressuscitou o motor.
Estava a trinta metros de Mikhail, não mais, com o rés-do-chão do bloco de apartamentos atrás de si. Mikhail tinha ambas as mãos na Jericho, com os braços esticados sobre a bagageira do automóvel estacionado. Ainda assim, não disparou. A doutrina do Departamento dava aos agentes de campo ampla liberdade para a utilização de força letal para proteger as suas próprias vidas. Contudo, não permitia que um agente disparasse uma arma de calibre 45 na direção de um alvo em fuga num bairro residencial de uma cidade europeia, onde uma bala perdida poderia, facilmente, tirar a vida a um inocente.
A mota estava, agora, em movimento, com o rugido do motor a reverberar na fileira de prédios habitacionais. Mikhail observou o seu progresso por cima do canhão da Jericho até ela desaparecer. Então, agachado, aproximou-se do local onde Kirov caíra. O russo também desaparecera. Não restava praticamente nada do seu rosto.
Mikhail ergueu o olhar na direção da figura na janela do quarto andar. Então, atrás de si, ouviu o som crescente do motor de um automóvel a aproximar-se a alta velocidade. Temeu que fosse o resto da equipa de assassinos a chegar para terminar o trabalho, mas era apenas Keller, no Passat. Mikhail agarrou rapidamente no telemóvel e lançou-se para o seu interior.
— Eu disse-te — declarou, enquanto o carro arrancava a alta velocidade. — Aqui, nunca acontece nada.
Gabriel permaneceu à janela mais tempo do que deveria, observando a luz traseira da mota a diminuir, perseguida pelo Passat com vidros fumados. Depois de os dois veículos terem desaparecido, baixou o olhar para o homem que jazia na rua. A neve clareava-o. Estava tão morto quanto um homem poderia estar. Estava morto, pensou Gabriel, antes de chegar a Viena. Morto antes de abandonar Moscovo.
Eli Lavon estava agora de pé, ao lado de Gabriel. Transcorreu mais um longo momento e Kirov continuava ali deitado, sozinho, abandonado. Finalmente, um carro aproximou-se e parou. O condutor saiu, uma mulher jovem. Ergueu a mão até à boca e afastou o olhar.
Lavon fechou as persianas.
— Está na hora de ir embora.
— Não podemos simplesmente…
— Tocaste nalguma coisa?
Gabriel vasculhou a sua memória.
— Nos computadores.
— Mais nada?
— Na fechadura da porta.
— Tratamos disso à saída.
Subitamente, uma luz azul encheu a divisão. Era uma luz que Gabriel conhecia bem: a luz de uma viatura da Bundespolizei. Telefonou para Oren, o chefe do seu destacamento de segurança.
— Vem até ao lado do edifício que dá para a Hollandstrasse. Calmamente e sem chamar a atenção.
Gabriel terminou a ligação e ajudou Lavon a colocar os computadores e os telefones em sacos. Enquanto atravessavam a porta de saída, ambos esfregaram minuciosamente a fechadura. Primeiro Gabriel, depois Lavon, por precaução. Enquanto se apressavam a atravessar o pátio, conseguiram ouvir o primeiro som fraco de sirenes, mas a Hollandstrasse estava silenciosa, à exceção do ralenti baixo do motor de um automóvel. Gabriel e Lavon deslizaram para o banco de trás. Pouco depois, estavam a atravessar o Donaukanal, deixando o Segundo Distrito para trás e entrando no Primeiro.
— Não estava a ser seguido. Pois não, Eli?
— Por absolutamente ninguém.
— Então como é que o assassino sabia onde é que ele ia?
— Talvez devêssemos perguntar-lhe.
Gabriel retirou o telefone do bolso e telefonou a Mikhail.