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Título original:

Time travelling with a hamster

Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

C/ Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

© Ross Welford, 2016

 

© 2020, para esta edição: HarperCollins Ibérica, S.A.

© 2020, tradução de Filipa Veloso

 

Esta edição foi publicada com autorização da HarperCollins Children’s Books,
uma divisão da HarperCollins Publishers Ltd. HarperCollins Publishers

 

Adaptação da capa: equipa HarperCollins Ibérica

 

ISBN: 978-84-18279-37-9

 

Todos os direitos reservados, incluindo os direitos de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

 

Créditos

Capítulo Um

Uma semana antes

Capítulo Dois

Capítulo Três

Capítulo Quatro

Capítulo Cinco

Capítulo Seis

Capítulo Sete

Capítulo Oito

Capítulo Nove

Capítulo Dez

Capítulo Onze

Capítulo Doze

Capítulo Treze

Capítulo Catorze

Capítulo Quinze

Capítulo Dezasseis

Capítulo Dezassete

Capítulo Dezoito

Capítulo Dezanove

Capítulo Vinte

Capítulo Vinte e Um

Capítulo Vinte e Dois

Capítulo Vinte e Três

Capítulo Vinte e Quatro

Capítulo Vinte e Cinco

Capítulo Vinte e Seis

Capítulo Vinte e Sete

Capítulo Vinte e Oito

Capítulo Vinte e Nove

Capítulo Trinta

Capítulo Trinta e Um

Capítulo Trinta e Dois

Capítulo Trinta e Três

Capítulo Trinta e Quatro

Capítulo Trinta e Cinco

Capítulo Trinta e Seis

Capítulo Trinta e Sete

Capítulo Trinta e Oito

Capítulo Trinta e Nove

Capítulo Quarenta

Capítulo Quarenta e Um

Capítulo Quarenta e Dois

Capítulo Quarenta e Três

Capítulo Quarenta e Quatro

Capítulo Quarenta e Cinco

Capítulo Quarenta e Seis

Capítulo Quarenta e Sete

Capítulo Quarenta e Oito

Capítulo Quarenta e Nove

Capítulo Cinquenta

Capítulo Cinquenta e Um

Capítulo Cinquenta e Dois

Capítulo Cinquenta e Três

Capítulo Cinquenta e Quatro

Capítulo Cinquenta e Cinco

Capítulo Cinquenta e Seis

Capítulo Cinquenta e Sete

Capítulo Cinquenta e Oito

Capítulo Cinquenta e Nove

Capítulo Sessenta

Capítulo Sessenta e Um

Capítulo Sessenta e Dois

Capítulo Sessenta e Três

Capítulo Sessenta e Quatro

Capítulo Sessenta e Cinco

Capítulo Sessenta e Seis

Capítulo Sessenta e Sete

Capítulo Sessenta e oito

Capítulo Sessenta e Nove

Capítulo Setenta

Capítulo Setenta e Um

Capítulo Setenta e Dois

Capítulo Setenta e Três

Capítulo Setenta e Quatro

Capítulo Setenta e Cinco

Capítulo Setenta e Seis

Capítulo Setenta e Sete

Capítulo Setenta e Oito

Capítulo Setenta e Nove

Capítulo Oitenta

Capítulo Oitenta e Um

Capítulo Oitenta e Dois

Capítulo Oitenta e Três

Capítulo Oitenta e Quatro

Capítulo Oitenta e Cinco

 

 

 

 

 

 

Para Gunnel, Astrid e Ewan

(e Jess)

 

 

 

 

 

 

O meu pai morreu duas vezes. Uma vez, aos trinta e nove anos e, outra vez, quatro anos depois, quando tinha doze. (Ainda vai morrer uma terceira vez, o que pode parecer um pouco duro para ele, mas não consigo evitá-lo.)

A primeira vez não teve nada a ver comigo. A segunda vez, decididamente teve, mas eu nunca teria lá estado se não fosse a «máquina do tempo» dele. Eu sei, parece que estou a culpá-lo e não estou, de todo, mas… vocês vão ver o que quero dizer.

Calculo que, se me tivessem perguntado antes, teria dito que uma máquina do tempo é um bocadinho parecida com um submarino. Ou será mais com um foguetão? Seja como for, é uma coisa com muitos interruptores e painéis e luzes, feita de ferro ou qualquer coisa assim, e grande, quero dizer, mesmo grande, com propulsores, injetores e reatores…

Em vez disso, estou a olhar para um computador portátil e para um alguidar de zinco de um viveiro de plantas.

Isto é a máquina do tempo do meu pai.

E está prestes a mudar o mundo, literalmente. Bom, em todo o caso, pelo menos o meu…

Capítulo Um

 

 

 

 

 

Em frente da casa onde vivíamos antes de o meu pai morrer (a primeira vez), do outro lado da estrada, existe uma ruela que conduz à rua seguinte e que tem uma porção de relva e alguns arbustos e árvores dispersas a crescer por ali. Quando era pequeno, chamava-lhe «a selva» porque, na minha cabeça, era assim que a selva era, mas, olhando para ela agora, consigo perceber que é só um lote de terreno para uma casa que ainda não foi construída.

E é aí que estou, ainda com o meu capacete de motociclista posto, sentado e escondido num arbusto, na calada da noite, à espera para entrar furtivamente na minha antiga casa.

Há uma caixa velha de frango frito que alguém atirou para ali e consigo sentir o cheiro de alguma coisa horrível e ácida que acho que pode ser cocó de raposa. A casa está escura; não há luzes acesas. Estou a olhar para cima, para a janela do meu antigo quarto, o pequeno, por cima da porta de entrada.

De dia, a Chesterton Road é bastante sossegada: uma curva comprida de pequenas casas geminadas de tijolos avermelhados. Quando foram construídas, deviam parecer todas exatamente iguais, mas, agora, as pessoas acrescentaram portões luxuosos, ampliações de garagens e até mesmo uma enorme araucária chilena à frente da antiga casa do senhor Frasier, portanto, hoje em dia, são todas um pouco diferentes entre si.

Agora, quase à uma da manhã, não há ninguém por aqui e já vi suficientes filmes e séries sobre criminosos para saber exatamente como não me comportar, isto é, de forma suspeita. Se agirmos normalmente, ninguém repara em nós. Se vagueasse pela rua de maneira nervosa à espera do momento certo, alguém podia ver-me a andar para trás e para a frente a olhar para as casas e chamar a polícia.

Em contrapartida, se estiver simplesmente a descer a rua, então, estou só a fazer isso e é a mesma coisa que ser invisível.

(Manter o capacete posto é uma aposta, ou o que o avô Byron chama de «um risco calculado». Se o tirar, alguém pode reparar que não tenho, nem de perto nem de longe, idade suficiente para conduzir uma lambreta; se continuar com ele posto, parece suspeito, portanto ainda estou indeciso. Seja como for, não vai continuar posto muito tempo.)

Pensei nisto tudo na viagem para cá. Há cerca de um ano, quando ainda vivíamos aqui, a autarquia desligou os candeeiros de rua de forma intercalada, numa experiência para poupar dinheiro, portanto, no sítio onde parei a lambreta, está realmente bastante escuro.

O mais descontraidamente possível, saio dos arbustos, tiro o capacete e guardo-o no compartimento superior da lambreta. Puxo o colarinho para cima e, sem parar, caminho pela estrada até ao número 40. Aí, viro para o curto caminho de acesso à casa e paro nas sombras, bem protegido tanto pela sebe que divide o jardim do número 40 do jardim do vizinho como pelo pequeno Skoda estacionado no caminho.

Até agora, tudo bem: os novos proprietários da nossa casa ainda não arranjaram as portas da garagem. Na verdade, estão ainda menos seguras do que antes. Há um tijolo à frente delas para as manter fechadas e, quando me agacho e o afasto do caminho, a porta do lado direito abre-se e, depois, bate contra o Skoda. Por um momento aterrorizador, penso que a abertura vai ser demasiado pequena para poder entrar, mas lá consigo encolher-me para passar e ali estou eu, na garagem, que cheira a pó e óleo velho. A minha lanterna está a iluminar as paredes em redor para revelar caixas que eles ainda não desempacotaram e, no meio do chão, as tábuas escuras de madeira que tapam a entrada da cave.

Aqui vai outra dica para o caso de estarem a pensar em entrar furtivamente nalgum sítio: não usem demasiado a lanterna para iluminar o que está à vossa volta. Uma lanterna em movimento vai chamar a atenção, enquanto uma luz parada não. Portanto, pouso a lanterna no chão e começo a levantar as tábuas oleosas.

Por baixo das tábuas, há umas escadas de cimento e, depois de descê-las, fico de pé num espaço com cerca de um metro quadrado e, à minha direita, há uma pequena porta de metal, que tem sensivelmente metade da minha altura, com uma roda poeirenta de metal para a abrir, como as que há nos barcos. A roda está fechada por um trinco robusto com um cadeado de código.

Tento fazer um pequeno assobio de assombro, um «fiu!», mas os meus lábios estão tão secos dos nervos e do pó que não consigo. Em vez disso, coloco no cadeado de código os números que o meu pai me indicou na carta (o dia e mês do meu aniversário de trás para a frente), agarro a roda com ambas as mãos e giro-a no sentido contrário aos ponteiros do relógio. Há um pouco de resistência, mas ela cede com um suave ranger e, ao dar a volta, a porta abre-se subitamente para dentro, com um som suave de um suspiro provocado pela fuga de ar.

Agarro na minha lanterna e aponto-a para a frente, enquanto atravesso a pequena entrada, agachando-me. Há mais degraus para baixo e uma parede à minha direita e a minha mão encontra um interruptor, mas não me atrevo a tocar-lhe, não se vá dar o caso de ser um interruptor para outra coisa qualquer, como um alarme ou qualquer coisa assim, ou para acender as luzes da garagem no andar de cima ou… não sei, mas estou demasiado nervoso para ligar o interruptor, portanto, olho para tudo através do feixe de luz de um branco amarelado da lanterna.

Os degraus conduzem a uma divisão com aproximadamente metade do tamanho da sala da nossa casa, mas com um teto mais baixo. Um adulto mal conseguiria levantar-se.

Ao longo de uma parede comprida há quatro beliches, todos com as camas feitas: cobertores, almofadas, tudo. Há uma parede saliente e, atrás dela, uma casa de banho e algum tipo de maquinaria com canos e mangueiras a sair dela. Há tapetes no chão de cimento branco e um póster na parede. É uma fotografia cor de laranja e preta desbotada de uma mãe, um pai e duas crianças dentro de um círculo, e as palavras «Proteger e Sobreviver» em grandes letras brancas. Já vi este póster antes, quando um tipo qualquer veio à escola, uma vez, falar de paz e guerra nuclear e coisas dessas, e fez a Dania Biziewski chorar com medo e ficou mesmo envergonhado.

Isto era o que as pessoas construíam há muitos anos, quando achavam que a Rússia ia matar-nos com bombas nucleares.

Dou meia-volta e vejo o que está atrás de mim. O feixe de luz da lanterna encontra uma secretária comprida com uma cadeira à frente. Na secretária está um alguidar de zinco, como o recipiente onde se dá banho a um cão ou assim. Dentro dele, há um computador portátil Apple de estilo antigo, o branco, e um rato de computador. Há um cabo a sair da parte de trás do computador que conduz a uma caixa de metal preta aproximadamente do tamanho de um livro de bolso e, a sair dela, há dois fios com cerca de um metro de comprimento, com uma espécie de pegas estranhas nas pontas.

Junto do alguidar, há uma caneca impressa com uma fotografia minha quando era bebé e as palavras «Adoro o meu papá». O interior da caneca está todo coberto de bolor antigo.

E, ao lado da caneca, há um exemplar do jornal local, o Whitley Bay Advertiser, dobrado ao meio e aberto numa história com o título «Morte súbita e trágica de homem local» por cima de uma fotografia do meu pai.

Sento-me na cadeira giratória e passo as mãos pela parte de baixo da secretária. Quando não consigo sentir nada, ajoelho-me e aponto a lanterna para cima e lá está ele: um envelope, colado no fundo, exatamente como o meu pai disse que estaria.

Mas não vejo nenhuma máquina do tempo. Pelo menos, nenhuma que se pareça com o que eu imaginava que uma máquina do tempo poderia ser.

É assim que acabo a fitar o alguidar de zinco e o seu conteúdo.

«De certeza», penso, «De certeza que não é isto».

Mas é.

E o mais louco de tudo? Funciona.

Uma semana antes

Capítulo Dois

 

 

 

 

 

Tudo isto, a invasão de propriedade, mais furto, fogo posto, roubar uma lambreta e matar alguém (mais ou menos, seja como for), já para não falar de viajar no tempo, começou no meu décimo segundo aniversário.

Nesse dia, recebi um hámster e uma carta do meu falecido pai.

Para ser mais exato (e, como diz o avô Byron, a exatidão é tudo), começou quando eu e a minha mãe fomos viver com o Steve e A Meia-Irmã do Inferno, a Carly. Isso foi logo depois de a minha mãe e o Steve terem casado no casamento mais pequeno do mundo (as pessoas que estavam lá eram: a minha mãe, o Steve, o avô Byron, eu, a AMII, a tia Ellie.)

Para ser totalmente exato, de alguma forma começou quando o meu pai morreu, mas isso foi há muito tempo e eu não quero falar disso. Pelo menos, ainda não.

Portanto, ali estávamos nós, no meu décimo segundo aniversário, que é a 12 de maio, logo, fazia doze anos no dia doze, o que só acontece uma vez na vida de alguém, e algumas pessoas têm de esperar até terem trinta e um e suponho que nessa altura não é tão divertido.

O Steve está sempre a tentar fazer-me gostar dele, portanto gastou muito dinheiro na minha prenda, uma réplica da camisola do Newcastle United com o meu nome e idade nas costas: «Albert 12». Só que o meu nome agora é Al, não Albert, e, na verdade, eu não gosto de futebol. Sentei-me com ele a ver alguns jogos porque a minha mãe fica feliz ao ver-nos «criar laços», mas, para ser sincero, não entendo o objetivo daquilo.

— Então, veste-a, Al, vê lá se te serve! — diz a minha mãe e está a sorrir um sorriso demasiado sorridente, e eu também estou a sorrir para esconder o facto de não gostar da prenda, embora saiba que é simpático da parte dele, e o Steve está a sorrir uma espécie de sorriso intrigado e a única pessoa a sorrir como deve ser é a Carly, provavelmente porque consegue perceber que eu não gosto da prenda e isso fá-la feliz.

Fica-me um pouco grande, portanto, não há hipótese de deixar de me servir em breve, o que é uma pena.

A prenda da minha mãe é muito melhor. Está ali na bancada da cozinha: uma grande caixa, embrulhada com papel colorido, com uma fita e um laço, exatamente como os presentes dos desenhos, e não faço a menor ideia do que é até a desembrulhar e ver que a caixa no interior diz «Hámsterdam — A cidade para o seu hámster». Há uma fotografia de tubos e caixas, e uma gaiola e tudo, e eu estou a sorrir tanto porque adivinhei o que está na caixa pequena que a minha mãe tem na mão e, efetivamente, há um hámster lá dentro: um hámster giro, pequeno, ainda não completamente adulto, e ele (ou ela, ainda não sei distinguir) tem um nariz irrequieto e pelo castanho-claro e eu já o (ou a) adoro.

Estou a questionar-me sobre que nome devo dar-lhe, quando o Steve diz:

— Tenho um nome excelente para ele!

— Steve — diz a minha mãe —, deixa o rapaz escolher o nome que quiser.

O Steve parece um pouco desiludido, portanto digo:

— Não faz mal. Qual é a tua ideia?

— Alan Shearer! — O Steve vê-me a piscar os olhos, com o rosto inexpressivo, portanto, repete: — O Alan Shearer. O melhor avançado que o Newcastle já teve? O melhor marcador de sempre da Premier League? — Eu continuo sem reação. — O tipo do Match of the Day?

Assinto com a cabeça e forço um sorriso, mas, enquanto estou a fazê-lo, torna-se mais ou menos real, porque, seja qual for a forma de encarar a questão, dar a um hámster um nome verdadeiro como «Alan Shearer» deve ser melhor do que Fofinho ou Hammy, que é tão longe quanto a minha imaginação consegue chegar. Portanto, fica Alan Shearer.

Reparo que a Carly parou de sorrir. Aproxima-se de mim enquanto estou a desembrulhar os tubos de plástico e dobra-se para ficar tão perto de mim que só eu consigo ouvir:

— Um hámster? — murmura. — São simplesmente ratos para bebés.

Mas sabem que mais? Não me importo.

Depois, o avô Byron chega para me dar boleia para a escola, como faz sempre, desde que eu e a minha mãe nos mudámos para mais longe para viver com o Steve e a Carly.

Abro a porta de entrada e ali está ele, de pé, com a sua longa túnica cor de açafrão, cabelo grisalho numa trança, pequenos óculos de sol redondos e botas de motociclista. Debaixo de um braço, o mau, está a segurar o capacete e, no outro, o bom, há um postal de aniversário num envelope.

— Parabéns, rapazinho — diz ele, e eu dou-lhe um enorme abraço. Adoro o cheiro do avô Byron. É uma mistura do óleo de menta que ele põe no cabelo e daqueles cigarros com cheiro doce que às vezes fuma chamados bidis, que compra em caixas a um homem que tem um restaurante libanês de takeaway, embora seja do Bangladesh, e a pasta de dentes com sabor a alcaçuz que ele usa, que experimentei uma vez e que é bastante nojenta, mas cheira bem.

Enquanto o abraço, inspiro profundamente. Ele acena para a cozinha, que não é longe da porta de entrada.

— Bom dia, Byron! — chama a minha mãe. — Entra!

A Carly passa por mim a pavonear-se para subir as escadas.

— Olá, Byron — diz ela com doçura. — Adoro a túnica, meu! — Só depois de ter passado por ele e de estar fora do alcance da sua visão é que ela se vira para mim, franze o rosto e abana a mão à frente do nariz, como se o cheiro do avô Byron fosse algo mau, o que não é, de todo.

O meu avô tem uma forma engraçada de falar: o sotaque indiano dele soa a Geordie[1] e usa expressões Geordie e palavras antigas do dialeto todas misturadas. É o pai do meu pai, mas o meu pai não falava Geordie, pelo menos, não muito.

O avô entra e senta-se ao balcão da cozinha com um saco na mão.

— Desculpa, companheiro… Não tive oportunidade de comprar a tua prenda. — Abana a cabeça daquela forma indiana, provavelmente só porque sabe que isso me faz rir, e também está a sorrir daquela sua maneira para eu poder ver o seu grande dente de ouro.

— Nã’ faz mal — tranquilizo-o, e abro o postal. Do interior, caem duas notas de vinte libras.

— Obrigado. Muito obrigado! — E estou mesmo a ser sincero.

Então, a minha mãe diz:

— Ainda bem que estás aqui, Byron. Está na hora de dar a carta ao Al. — E levanta-se e dirige-se a uma gaveta. Está a comportar-se de uma forma um pouco estranha, como se estivesse distraída e entusiasmada e nervosa, quando regressa aos saltinhos com aquele envelope enorme. O Steve está a observá-la, sorrindo pacatamente, mas é evidente pela cara do avô Byron que não faz ideia de que é que se trata. A minha mãe põe a sua cara séria.

— Bom, Al. Isto é para ti, do teu pai.

Não sei o que dizer.

— Encontrámos isto nas coisas do teu pai, depois de ele ter morrido. Deve tê-la escrito há séculos.

Estou a fitar o envelope nas mãos dela. A expressão do avô Byron não mudou.

— O que é? — digo, finalmente.

— Não sei. É pessoal, dirigido a ti. Mas acho que devias considerá-lo como algo altamente privado — e aqui ela faz uma pausa — que não deve ser partilhado com mais ninguém.

Agarro cuidadosamente no envelope e leio a caligrafia emaranhada na parte da frente. A letra do meu pai e o meu nome completo: Albert Einstein Hawking Chaudhury. Por baixo do meu nome, está escrito: IMPORTANTE: NÃO abrir este envelope até terem passado DEZASSEIS horas depois de o receber. A ser entregue no seu décimo segundo aniversário.

Olho para o avô Byron:

— Sabias disto? — pergunto.

Ele abana a cabeça e há qualquer coisa no rápido movimento de um lado para o outro e na rigidez da sua boca que é estranho. Até penso que ele empalideceu um pouco, e está a fitar o envelope.

Entretanto, o Steven está apenas ali sentado com um grande sorriso idiota que parece ligeiramente forçado e eu percebo imediatamente que ele tem ciúmes. Quer tanto que eu goste dele que está zangado pelo facto de o meu pai ter voltado a estar entre nós, e isto faz-me gostar do Steve só um bocadinho menos.

— Bem, seja como for, só posso abri-lo mais tarde — digo, apontando para as instruções no envelope. Agora, obviamente, estou a ferver por dentro para ver o que diz, mas há qualquer coisa no facto de ver a letra do meu pai que é como receber uma instrução diretamente dele e quero ser respeitador. Isso e a cara empedernida do meu avô assustaram-me um bocado.

— Vamos lá, filho, vais-te atrasar — diz ele, pegando no capacete pousado no balcão. E essa é a última coisa que me diz até me deixar no portão da escola, perguntando: — Apareces depois da escola?

Eu assinto com a cabeça e ele sai disparado na mota, sem sequer acenar.

Tudo isto torna esta manhã numa manhã muito invulgar.

 

 


[1] Nome dado às pessoas naturais do nordeste da Inglaterra, da região de Newcastle e Tyneside, e ao dialeto falado por muitas delas. (N.T.)

Capítulo Três

 

 

 

 

 

Doze Coisas Que Eu Sei Sobre o Avô Byron

 

1. O nome completo dele é Byron Rahmat Chaudhury-Roy e o aniversário é no dia de Ano Novo, embora nunca o festeje. «Porquê celebrar o facto de estar um ano mais próximo da morte?», perguntou-me uma vez. «É só o tempo a passar, não é importante». Mas continua a comprar-me prendas de aniversário, portanto, não pode estar a falar assim tão a sério. Tem cerca de sessenta anos ou por aí, mas parece muito mais novo, tirando o cabelo quase branco.

 

2. Tem a memória mais incrível do mundo; quero dizer, tipo inacreditável. Desde que tinha dez anos e até ter vindo para Inglaterra, estudou com um guru indiano qualquer que lhe ensinou uma série de truques de meditação e isso significa que consegue lembrar-se de qualquer coisa. Nunca se esqueceu do nome de ninguém que tenha conhecido.

 

3. Nasceu numa parte da Índia chamada Punjab e os seus pais mandaram-no para a Grã-Bretanha nos anos sessenta porque lá havia muitas guerras. Algumas pessoas chamam-lhes «os vibrantes anos sessenta», mas o avô Byron disse que não viu grande vibração em Wallsend.

 

4. Vivia com uma tia e um tio, mas eles morreram há séculos e eu nunca os conheci.

 

5. Casou com a avó Julie em 1972. Sei disso porque ele me disse que uma música chamada Without You, do Harry Nilsson, era a número um e procurei na Internet. A avó Julie morreu antes de eu nascer.

 

6. Os pais da avó Julie não vieram ao casamento. O avô Byron diz que estavam demasiado ocupados, mas acho isso estranho. Talvez fossem racistas e não gostassem que ela se casasse com o avô Byron. Aparentemente, toda a gente era racista em 1972.

 

7. Nem sempre se vestiu com túnicas amarelas. Na verdade, ainda agora não se veste sempre assim. Mas, quando o meu pai morreu, ele foi-se embora durante algum tempo, durante meses, disse a minha mãe, e, quando voltou, tinha deixado crescer a barba e começou a vestir túnicas compridas. (A barba não durou muito. Ele disse que fazia comichão.)

 

8. Escreveu um livro enquanto trabalhava numa fábrica em North Shields. Escrevia durante a noite, numa máquina de escrever, que é como um computador antigo, mas sem memória, só um teclado e uma impressora juntos, o que é bastante fixe. Ninguém queria publicá-lo em Inglaterra, portanto, foi publicado na Índia.

 

9. O braço direito dele ficou destroçado num acidente com fogo de artifício, imaginem. Estava a preparar alguns foguetes para um grande espetáculo e parte do equipamento de metal onde estavam pousados tinha um parafuso solto ou qualquer coisa assim e aquilo caiu tudo e esmagou-lhe o braço. Ele não consegue usá-lo muito e tem um aspeto um bocado esquisito, tipo torcido para um lado. Recebeu algum dinheiro da seguradora e deixou de trabalhar na fábrica.

 

10. Investiu parte do dinheiro no primeiro restaurante tandoori da zona: o Spice Of The Sands, à beira-mar, em Culvercot. (Ainda lá está, mas, agora, é gerido por uma pessoa do Bangladesh e serve comida muito melhor, disse uma vez o avô Byron, mas estava a rir-se.)

 

11. Ganhou um troféu dado pela fábrica, quando participou num concurso de talentos com outros trabalhadores. Todos os outros cantaram ou contaram anedotas e um tipo conseguiu imitar brilhantemente as vozes de todos os chefes, mas o avô Byron limitou-se a fazer truques de memória e ganhou! Alguém pegou num baralho de cartas, baralhou-as e leu-as em voz alta e o avô Byron lembrou-se de todas elas por ordem. Disse-me que isso era de «Nível Um», por outras palavras, nem sequer remotamente difícil.

 

12. Não tem nenhuma fotografia. Diz que as melhores imagens estão na cabeça dele e que tem preguiça de tirar fotografias.

Capítulo Quatro

 

 

 

 

 

Então, a escola corre bem.

A senhora Henry, que normalmente é sempre bastante simpática comigo, está especialmente sorridente e diz a toda a gente que é o meu aniversário. O Freddie Stayward, que, na semana passada, começou um cântico de «falhado, falhado» quando não consegui agarrar numa bola fácil (até que o senhor Springham gritou para que toda a gente parasse imediatamente) até me oferece o pudim-esponja dele ao almoço. Obviamente, verifico se tem cuspo/cabelo/ranho, mas, depois de ter recebido o Carimbo de Segurança Chaudhury, como-o.

(Já agora, não conhecia absolutamente ninguém no meu primeiro dia em St. Eddie’s. Tínhamo-nos mudado para casa do Steve e da Carly durante as férias de verão. A minha mãe fez aquela coisa dos adultos de tentar que tudo parecesse uma grande aventura e estava sempre a dizer-me que íamos divertir-nos muito, mas eu não tinha a certeza disso, e ainda não tenho, para ser sincero. Desconfio — não tenho a certeza, atenção, mas desconfio — que a parte financeira teve algo a ver com isto. O meu pai não nos deixou muito seguros financeiramente, disse-me a minha mãe uma vez. É a única vez que consigo lembrar-me de ela ter dito algo negativo sobre ele.) Seja como for, depois do almoço, estou sentado ao lado dos casacos no esconderijo onde ninguém consegue ver-me se encolher os pés para cima. Descobri este sítio no meu segundo dia em St. Eddie’s, em setembro, quando não conhecia ninguém e não ia, de maneira nenhuma, sentar-me no «banco dos amigos»[2]. Para além disso, gosto bastante de estar ali, entre os casacos e o cheiro bafiento a galochas lamacentas e calçado de ginástica.

Trouxe um livro sobre hámsteres da biblioteca da escola e abro-o. É nesse momento que ouço a voz do Jolyon. Levanto os pés, mas é demasiado tarde.

— A ler, hã? — diz o Jolyon com a fala arrastada, a apontar para o livro. O tom dele é carinhoso, preocupado e tão cálido que me provoca um arrepio nas costas. As minhas mãos fazem um pequeno tremor involuntário, o que odeio porque parece que estou assustado. Faz o livro na minha mão tremer.

O Jolyon Dancey fala com uma espécie de sotaque falso de beto e Geordie misturados. Recebe uma bicicleta de montanha nova todos os Natais e o pai dele (que ele raramente vê) faz um programa noturno de jazz na Rádio Metro ao fim de semana, que é o mais micro que uma microcelebridade pode ser, mas do qual eu ouvi o Jolyon gabar-se mais do que uma vez.

O pior é que a Carly anda mais ou menos com ele, embora esteja no ano acima, e está ali com ele agora, a mascar pastilha elástica. Não é que seja namorada dele ou coisa do género, mas faz definitivamente parte do seu círculo, ou gostava de fazer. Ela puxou tanto a saia para cima que quase não se vê por baixo da blusa da escola, que não está entalada por dentro. É como se estivesse ali, de pé, só de camisa e collants.

Ele é um autêntico chato e quase um rufia da turma, mas nada do que o Jolyon Dancey faz poderia alguma vez metê-lo em sarilhos por estar a fazer bullying, porque está a ser simpático. Não simpático simpático, mas simpático maldoso.

— A ler! — repete, despropositadamente, e agacha-se para pôr a cara dele ao nível da minha, aproximando-se mesmo muito, sorrindo de forma artificial como um daqueles crocodilos nos documentários sobre natureza.

— O qu’é que temos aqui, coleguinha? Um livro? Oh, eu adoro hámsteres, tu não, Carly? — A Carly volta a assentir com a cabeça. — Posso ver?

Estica a mão e dou por mim a entregar-lhe o livro. O Jolyon pega nele e levanta-se e começa a ler a capa.

Gostar de Hámsteres para Principiantes, do Dr. A. Borgström. — Dá um pequeno ronco. — Gostas de hámsteres, é, Albert? Gostas mesmo a sério deles? — Faz um sorriso malicioso para a Carly.

— Isso só quer dizer, tu sabes, cuidar deles…

— Certo, eu acredito em ti. Posso levar isto emprestado? Posso?

Uma onda de náusea começa no fundo do meu estômago, enquanto ele começa a pôr o livro no bolso do blazer, embora seja só um livro da biblioteca. Então, a Carly diz:

— Para com isso, Jol. Hoje não.

O Jolyon detém-se, confuso.

Nesse momento, a voz do senhor Springham ribomba vinda do fundo do corredor:

— Caminhem à esquerda! — Os seus passos pesados estão a aproximar-se.

O Jolyon devolve-me o livro e afasta-se, lançando-me outro sorriso e uma piscadela de olho. Uma piscadela de olho. Sinceramente. E provavelmente acha que eu sou um falhado.

Esse é o problema de St. Eddie’s: na verdade, não tenho amigos. Para ser sincero, não é St. Eddie’s, é a minha vida, em geral. Não é que eu não goste de pessoas, nem sequer que as pessoas não gostem de mim. Mas, mesmo quando as pessoas estão a ser simpáticas comigo, continua simplesmente a parecer que estão a olhar através de mim. Ainda bem que gosto da minha própria companhia, caso contrário, tudo isto poderia deixar-me bastante triste.

Vou dar-vos um exemplo: abraços. Acho que nunca abracei nem fui abraçado por um amigo. Não é nenhum drama, a sério (quero dizer, estou sempre a receber abraços em casa da minha mãe e do avô Byron (e às vezes do Steve, o que não é tão bom, mas enfim…), mas há rapazes na escola que estão sempre a fazer esta cena de dar um abraço com palmadas nas costas e até parece divertido.

Seja como for, como eu digo, a escola corre bem.

 

 


[2] Banco existente nalgumas escolas onde as crianças que estejam a sentir-se sozinhas se podem sentar para indicar às restantes que precisam de amigos. (N.T.)

Capítulo Cinco

 

 

 

 

 

O avô Byron está a meditar quando entro em casa dele com a minha chave. As cortinas na sala de estar estão corridas e há um pau de incenso a arder lentamente, um cheiro a couro doce a impregnar a casa.

Ele está sentado no sofá, de pernas cruzadas, com as mãos pousadas nos joelhos e as costas absolutamente direitas. Levanta um indicador para reconhecer a minha presença, o que me deixa aliviado, porque às vezes não faz isso e é como se não conseguisse ouvir-me nem nada. Uma vez, fiquei até ele abrir os olhos e passaram séculos. Tinha acabado os meus trabalhos de casa, esgotado a bateria do meu leitor de MP3 e lido a maior parte do seu Daily Telegraph e ele limitou-se a dizer:

— Oh, olá… há quanto tempo é que estás aqui?

Desta vez, não tenho de esperar tanto tempo. Abre lentamente os olhos e desdobra as suas longas pernas morenas de debaixo do corpo.

— Chegaste mesmo a tempo do chai. Porque é que não ligas a televisão? Talvez hoje sejas mais rápido do que esses idiotas. — A zona à volta dos seus olhos franze-se quando diz isto, porque não acha que os participantes em concursos televisivos sejam realmente estúpidos, apenas não tão inteligentes quanto ele.

Sentamo-nos em frente da televisão a beber chá indiano muito doce e a comer badam barfi, que é um doce indiano que o avô Byron fez porque é o meu aniversário.

Há sempre um concurso televisivo a dar por volta desta hora do dia. Normalmente, vemos um dos canais principais, mas, se for um programa de que o avô Byron não gosta, em vez disso ele encontra sempre um programa antigo no Challenge ou num dos outros canais. Para ele gostar, tem de envolver perguntas que requerem que saibamos coisas, o que ele chama de «Cultura Geral». Coisas tipo as capitais, ou presidentes estrangeiros desconhecidos ou datas de guerras ou compostos químicos ou grandes obras de arte ou… bom, estão a perceber a ideia.

O programa de hoje é um novo na BBC2 chamado Mindgames, no qual cinco concorrentes tentam eliminar-se uns aos outros, formando alianças entre si e apostando pontos de acordo com a sua certeza em relação à resposta. A questão do jogo (e aquilo de que o avô Byron gosta) é que as perguntas são mesmo difíceis, pelo menos para mim.

O apresentador é um tipo que normalmente apresenta o noticiário, mas, aqui, está vestido com uma camisola de gola alta e calças de ganga que lhe ficam um bocado estranhas. Está a falar mesmo depressa.

— Muito bem, Darren, aliou-se à Célia, vamos ver como vos correm as coisas. Será que, juntos, conseguirão eliminar o Adnan da competição e aproximarem-se do grande prémio final? Vêm aí três perguntas sobre música popular, têm trinta segundos a partir de… agora. Qual foi o último êxito dos Beatles que chegou a número 1 no Reino Unido, antes de terem…

Ballad of John and Yoko, número um durante três semanas em 1969 — diz o avô Byron antes de o tipo na televisão ter sequer terminado.

— Que álbum, gravado em 1982, se tornou no álbum mais vendido de todos os t…

Thriller — grita o avô Byron —, do Michael Jackson!

— E, finalmente, que artista se juntou a Alicia Keys para gravar o single de sucesso Empire State of Mind, em 2010?

Eu sei esta.

— Eminem! — grito. O avô Byron abana a cabeça e sorri.

— Jay-Z. E foi em 2009, não em 2010.

Claro que ele acerta.

Acerta sempre. Ou quase sempre.

— Como é que fazes isso? — pergunto, provavelmente pela centésima vez. — Como é que sabes tanto?

E ele dá a resposta que dá sempre.

— Não confundas conhecimento com memória, Al. Eu tenho uma boa memória porque a treinei, mas isso não é o mesmo que conhecimento e nem memória nem conhecimento são equivalentes a sabedoria.

Faz-me um sorriso e dá um grande gole do chai.

 

Há esta questão com o avô Byron: quando acaba de ver um programa, desliga a televisão. Na minha casa, normalmente, saímos simplesmente da sala ou fazemos zapping para ver o que mais está a dar, mas, de qualquer forma, a televisão fica ligada. Mas o avô Byron não. É como quando está a ler o jornal: dobra-o cuidadosamente quando acaba de ler um artigo.

Portanto, quando o MindGames termina, lá se vai a televisão e sentamo-nos em silêncio durante algum tempo. O avô Byron tem um meio sorriso na cara. Talvez esteja satisfeito por ter acertado em todas as perguntas ou por, pela primeira vez, eu ter acertado numa ou duas dentro dos trinta segundos.

— Um destes dias, vais estar a memorizar melhor do que eu — diz ele. Está a olhar para mim através de olhos semicerrados. — Vais ver, com o poder da tua mente, podes fazer quase tudo, Al. Isso, mais, claro, Os Palácios da Memória de Sri Kalpana.

Foi este o livro que o avô Byron escreveu há séculos e que agora é tão raro que ele detém o único exemplar, que eu nunca vi. Já me falou dele antes, mas só de passagem, enquanto, agora, está a olhar diretamente para os meus olhos e a sorrir.

Dá uma espécie de salto para se levantar sem nenhum esforço (sem aquele ufa que a maioria das pessoas idosas faz quando se levanta do sofá). Tira um livro da estante e dá-mo. É um livro de bolso um bocado fino com uma capa amarela lisa, da mesma cor das suas túnicas. O único texto na capa é o título, Os Palácios da Memória de Sri Kalpana, e, por baixo, diz «de Byron R. Chaudhury-Roy».

— Ia esperar para te dar isto — diz ele —, mas, bom… agora parece ser a altura certa. Agora, tens doze anos.

— A sério? Quero dizer, muito obrigado…

Levanta o dedo indicador para me silenciar. Os seus olhos ficam um pouco vazios até ele pestanejar intensamente.

— Vamos estudá-lo juntos. Entretanto, estás à vontade se quiseres levá-lo contigo.

Sorrio e encolho os ombros.

— Fixe!

Mas passa-se aqui qualquer coisa e eu não estou a conseguir perceber o que é. Foi a forma como o avô Byron disse «agora, tens doze anos» que me fez pensar que o facto de ele me dar este livro está, de alguma forma, relacionado com o ar dele todo esquisito quando viu aquela carta do meu pai. Não preciso de me questionar durante muito tempo.

— Aquela carta do teu pai… — começa ele, sem olhar para mim. No geral, está a ser demasiado descontraído, como se tivesse praticado isto. Limito-me a assentir com a cabeça e espero, enquanto ele se senta à minha frente e olha para mim atentamente.

— Eu e o teu pai tivemos algumas divergências. Sobre o trabalho que ele estava a fazer.

— Sobre o trabalho?

— Não sobre o emprego dele. Mas sobre uma investigação a que ele estava a dedicar-se nos tempos livres. Ele falou-me disso e… bom, na verdade, não aprovei.

— O que era? — (Lembrem-se, nesta fase não sei nada do meu pai e de viagens no tempo.)

Em vez de responder diretamente, o avô Byron estica-se e tira-me o livro das mãos.

— A vida, Al, é uma dádiva tão maravilhosa que devíamos abrir as nossas mentes a todos os momentos possíveis e estimar a memória desses momentos. Porque as pessoas mudam. Os lugares mudam. Tudo muda, mas as nossas memórias não. Aceita a vida como ela é, Al. Essa é a forma de ser feliz.

Acho que semicerro os olhos de forma cética, porque o avô Byron inspira profundamente, fecha os olhos, e continua:

— Na minha cabeça, Al, na minha mente, estão alguns lugares verdadeiramente maravilhosos. Alguns são como palácios, enormes e ornamentados; outros são muito mais humildes. E todos eles, divisão após divisão, estão a abarrotar de memórias. Algumas destas divisões imaginárias são como escrivaninhas, com gavetas e arquivos: é aí que guardo todos os factos, como os resultados do futebol e datas e vencedores de corridas de cavalos e presidentes. Mas as divisões mais bonitas, no palácio mais grandioso de todos, contêm as memórias que eu mais amo: o dia em que o teu pai nasceu, por exemplo, o dia em que eu e a tua avó casámos ou, há cinco anos, quando eu e tu fizemos aquele piquenique à chuva em Druridge Bay e tu perdeste as tuas Crocs. Há uma memória para cada dia da minha vida, até ao tempo em que tinha mais ou menos a tua idade. Posso revisitar essas divisões sempre que quero, tirar as memórias, revivê-las, limpá-las bem e voltar a pô-las no sítio para uma próxima vez. Vou lá sempre que quero.

— É isso que fazes quando meditas?

— Normalmente, sim. Para manter os meus Palácios da Memória limpos e arrumados. Podem ficar um bocado atulhados, sabes, exatamente como as divisões verdadeiras. As memórias podem perder-se ou ficar um pouco desvanecidas e eu gosto de manter tudo absolutamente impecável!

— E o que é que isso tem a ver com a carta do pai?

O avô Byron abre os olhos e fita-me como se se tivesse esquecido dela. Finalmente, diz:

— Não tenho a certeza. Pode não ter nada a ver. Mas lê o meu livro de qualquer forma. Bem, isto é, se quiseres.

Bem, claro que quero. Mas o que quero ainda mais é perceber porque é que ele está a contar-me isto agora.

Capítulo Seis

 

 

 

 

 

Quando volto, o Alan Shearer está a dormir e a minha mãe diz-me para não o acordar. O meu livro diz que os hámsteres são «animais crepusculares» e acho que isso significa «dorminhocos», portanto, fico simplesmente sentado durante um bocado a vê-lo dormir. Tento bater acidentalmente na parte de Hámsterdam onde ele está a dormir para ver se isso o acorda, mas não.

A carta do meu pai ainda está na minha mochila da escola. Estou em pulgas para a tirar de lá, mas, ao mesmo tempo, não me atrevo a fazê-lo porque tenho medo de ficar desiludido.

O Steve volta do trabalho.

— Então, campeão — diz ele —, ainda bem que gostas da camisola! — Tinha-a vestido para lhe agradar. Bom, na verdade, para agradar à minha mãe, porque sabia que ela ia ficar feliz se eu gostasse do que o Steve me tinha comprado.

Ele vai direto à televisão. Os sub-21 do Newcastle United estão a jogar um jogo europeu qualquer com uma equipa de cujo nome me esqueci.

— Anda, filho, estão prestes a dar o pontapé de saída! — Dá umas palmadinhas ao lado dele, no sofá.

— Sabes, acho que vou só, hum… tenho trabalhos de casa para fazer. — Levanto o cartão de memória do porta-chaves, onde guardo os trabalhos de casa, e saio da sala. Não o faço suficientemente depressa para evitar um vislumbre da cara de desapontamento do Steve.

— Mas é o Dortmund! Os alemães! — chama ele por mim, com um tom um pouco triste, parece-me.

O problema com o Steve é esse. É tão óbvio que ele quer que eu seja o filho que ele não tem, mas, mesmo que eu fosse filho dele, não havia nenhuma garantia de que eu gostasse de futebol, pois não? Quero dizer, pensem no Daniel Somerset, da minha antiga turma, por exemplo. O pai dele faz truques de magia espetaculares e uma vez, numa festa, fez aparecer um lenço colorido no meu bolso. O Daniel achava que toda a ideia dos truques de magia era completamente foleira, mas o pai não parecia importar-se e até ia de fim de semana com outros mágicos amadores e não arrastava sempre o Daniel com ele.

Portanto, estou cá em cima, no meu quarto, deitado na cama, a tentar ler o livro do avô Byron, e A Carta está, agora, encostada contra o meu relógio. À meia-noite, terminam as dezasseis horas.

Não consigo concentrar-me no livro. Não é que seja aborrecido nem nada disso. Só que o avô Byron escreveu-o há muitos, muitos anos, por isso a linguagem é um bocado difícil e não tem truques de memória nem nada. Ainda não consegui compreendê-lo muito bem.

Portanto, pouso-o cuidadosamente, assinalando a página onde fiquei com um marcador de livros. Normalmente, dobraria um canto, mas como este é o último livro do avô Byron que resta, acho que ele não ia gostar disso.

Dou meia-volta para olhar novamente para A Carta. Fico a olhar para ela durante séculos, depois, estico o braço e pego nela, ainda de cabeça na almofada. As instruções do meu pai dizem para só a abrir quando tiverem passado dezasseis horas desde que a recebi. Mas de certeza que algumas horas não vão fazer diferença, ou vão?

— Al! — chama a minha mãe da cozinha. — Jantar!

Suspiro e pouso novamente a carta na mesa de cabeceira, e depois desço as escadas até ao andar de baixo.

Como é o meu aniversário, a minha mãe fez-me lasanha. Tem estado a tentar ligar à Carly para vir para casa jantar, mas ela tem o telemóvel desligado outra vez. O telemóvel do Steve está na bancada da cozinha e apita com uma mensagem recebida.

— Está com o tal Jolyon Dancey outra vez — diz a minha mãe, lendo o texto no ecrã. Não consigo perceber se está satisfeita ou não. — É o namorado dela? — pergunta-me.

— Como é que eu hei de saber? — No que se refere à Carly e ao Jolyon, calculo que seja sensato trilhar um caminho muito cauteloso.

— Simplesmente, acho que teria sido simpático ela ter vindo ao jantar de aniversário do meio-irmão.

Eu não digo nada, usando um bocado de lasanha como disfarce. A minha mãe programou a hora de servir para o intervalo e o Steve junta-se a nós.

— Zero-zero — diz ele.

Eu grunho e ergo as sobrancelhas, fingindo interesse.

Quando chega a hora de ir para a cama, ainda não abri A Carta, mas estou completamente acordado quando ouço a chave da Carly na porta, às dez e meia, e, depois, ouço vozes exaltadas (a dela e a do Steve) vindas do andar de baixo.

Às onze da noite, estou zonzo de cansaço e não consigo esperar mais. Estico a mão para agarrar no envelope na minha mesa de cabeceira e, uma hora mais cedo do que devia, enfio o dedo mindinho debaixo da dobra colada.