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Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Destino: compromisso

Título original: Destination Chile

© 2016, Katy Colins

© 2019, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Publicado originalmente por Carina UK

Tradutor: Fátima Tomás da Silva

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a permissão da Harlequin Books, S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são usados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, factos ou situações são mera coincidência.

Imagem da capa: Shutterstock

1ª edição: Julho 2019

 

ISBN: 978-84-9139-410-5

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Créditos

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Capítulo 28

Capítulo 29

Capítulo 30

Capítulo 31

Agradecimentos

Se gostou deste livro…

 

 

 

 

 

As pessoas mais inspiradoras são aquelas que nem sequer sabem que o são.

 

Charlotte, isto é para ti.

Capítulo 1

 

 

 

 

 

Revelar (V.): Descobrir, manifestar.

 

— Precisas mesmo de outra vela? — perguntou Ben, enquanto empurrava o carrinho, completamente cheio, pelos corredores sinuosos do Ikea.

Eu, que parara para sentir o cheiro quente de uma vela grossa, fiquei a olhar para ele como se me tivesse perguntado se alguma vez me cansava de comer chocolate.

— Nunca temos velas suficientes. É uma coisa que todos sabem.

— Bom, se isso te faz feliz, suponho que sim. O que se passa é que para mim não faz sentido comprar coisas para depois as queimar: É como se estivesses literalmente a queimar dinheiro. — Começou a rir-se, abanando a cabeça. — Embora tudo mude quando lhe dão nomes como Grönkulla, Färdfull ou até Knutstorp. Quer dizer, então, muda tudo. — Adotou um sotaque escandinavo horrível, que fora o que fizera durante a maior parte da última hora, fazendo-me rir.

— De facto, estas chamam-se Fyrkantig, mas, oh, meu Deus, o teu sueco está a melhorar muito!

Ele esticou o peito, orgulhoso.

— Sim. Ou devia dizer «LOL»? Ora, vá lá. Estou cheio de fome e prometeste que comeríamos almôndegas.

Deixei cair mais algumas velas maravilhosamente aromáticas entre as almofadas brancas e esponjosas, as molduras e outros artigos domésticos, tão bonitos como funcionais, e passei-lhe um braço pela cintura.

— Está bem. Sai um prato de almôndegas! — De repente, mordi o lábio e baixei o olhar para o nosso carregamento de compras. — Achas que temos tudo o que precisamos?

— Literalmente, temos tudo. — Deixou escapar um gemido, destinado a esconder, tinha a certeza disso, como desfrutara da nossa incursão por aquele armazém imenso capaz de conter um país inteiro.

Eu, por outro lado, ficara estupidamente nervosa com a perspetiva daquela nossa primeira saída às compras como casal. Ao fim e ao cabo, para um casal, fazer compras no Ikea era como um ritual de entrada numa relação. Sobretudo, tendo em conta a última vez que estivera lá com o meu ex-namorado, Alex… no «inferno sueco», como lhe chamara, para acabar por me ir embora com uma estante Billy e uma discussão tremenda. Passámos duas horas sem falar depois daquela primeira incursão às compras que eu imaginara que estaria cheia de entusiasmo com a perspetiva de escolhermos os móveis da nossa casa juntos, em vez do pesadelo tenso de discussões horríveis. E isso foi antes de começarmos a parte ainda mais irritante de montar aquelas malditas coisas.

Desta vez, no entanto, era tudo diferente. Ben e eu tínhamos vagueado pelo local imenso na nossa primeira visita oficial juntos. Não tínhamos começado uma discussão sobre quem dedicava mais ou menos tempo a cozinhar quando entrámos na secção de cozinhas, nem tínhamos apressado incomodamente o passo ao atravessar a secção infantil. Fora exatamente o que imaginara que seria antes daquela visita desastrosa com Alex.

Porém, naquele momento, duas horas depois de ter chegado ali, percebi que o nível de diversão de Ben estava a decair. O sábado fora o único dia que tínhamos tido disponível e, segundo parecia, todos em Manchester tinham tido a mesma ideia. Arrastávamos os pés atrás de entusiastas do «faça você mesmo» enervados, crianças que gritavam e casais que tinham discussões tensas em voz baixa para ver quem tinha melhor gosto a escolher estampados de cortinas, todos eles a peregrinar diligentemente pelo labirinto de corredores que levava à saída.

— Suponho que precisem de criar um pouco de distância entre eles antes de acabarem por cravar esses lápis gratuitos em algum lugar inconveniente do corpo — comentara Ben, apontando com a cabeça para um casal de idosos que se fulminava com olhares tão assassinos que parecia que ia começar os trâmites de divórcio entre as cadeiras Jeff e os sofás Ektorp. Para muitas pessoas, o facto de pôr os pés num lugar assim tornava-as subitamente conscientes de que o gosto péssimo dos seus companheiros em questão de móveis representava tudo aquilo que podia desprezar-se numa pessoa e que, na realidade, eram incapazes de se suportar uns aos outros.

Rira-me para o puxar por uma daquelas portas Scooby Doo misteriosas, através de uma passagem escondida que comunicava com a secção de casas de banho em exposição. Era um truque que aprendera da última vez que estivera lá, quando me fui embora a soprar, depois de Alex ter dito que o meu gosto para tapetes de casa de banho era «demasiado convencional». O labirinto de corredores apropriado para ratos de laboratório que nos obrigavam a percorrer era o principal obstáculo que o futuro de qualquer casal enfrentava, recente ou junto há muito tempo: As pessoas não podiam ir-se embora dali facilmente. Mentiam-lhes sobre as saídas. Bom, não lhes mentiam exatamente, mas, no meu estado anterior de aborrecimento, sentira-me como se estivesse a andar em círculos, no meio do mesmo grupo enervado de pessoas carregadas com os seus sacos de compras amarelos. Daquela vez, no entanto, estava preparada. Porque, daquela vez, conhecia os atalhos.

— Espero que nunca sejamos como eles. Promete-me — sussurrara a Ben, apertando-lhe a mão.

Tínhamos acabado, muito acertadamente, na secção de quartos. De humor brincalhão, Ben empurrou-me para uma cama de casal enorme e perfeitamente feita, com um edredão que teria combinado muito bem com as cores do nosso quarto, para me deitar na superfície macia.

— Prometo — prometeu, inclinando-se e beijando-me com paixão.

O barulho de um indiano que estava a examinar umas almofadas hipoalérgicas por perto fez-me corar. Assim, levantei-me rapidamente para acabar as compras e ir para casa… para a nossa própria cama. O Ikea não era lugar para jogos daquele tipo e era possível que ainda me faltasse alguma coisa da lista que rabiscara durante o pequeno-almoço. Estava na hora de ir.

— Oh, espera. Esquecia-me de que precisamos de tigelas para o pequeno-almoço! — exclamei, enquanto nos dirigíamos para a secção seguinte, recordando que as que tínhamos estavam velhas e que, bom, não eram suficientemente grandes para o meu gosto.

— Está bem. Tigelas de cereais e, depois, vamo-nos embora.

— Combinado.

Os olhos de Ben semicerraram-se como se fossem os de um personagem de videojogos, algum francoatirador treinado para se concentrar unicamente no seu objetivo, pouco inclinado a ceder a um comentário do tipo «Oh, olha, isto é lindo!» ou «Precisamos de um destes» enquanto eu atravessava a secção de acessórios de cozinha, hipnotizada pelas espátulas modernas às cores.

Cheguei a pensar que, em algum momento, Ben me agarraria pela mão para começar a correr e para me afastar de todas aquelas maravilhas de nomes como Rort ou Skedstorn ou alguma outra palavra sem vogais. O resultado foi que não pude evitar encher outro daqueles sacos amarelos. Consegui sentir o olhar divertido de Ben fixo na minha pessoa enquanto me agarrava a outro conjunto de guardanapos.

— A sério, querida? — perguntou, com um sorriso irónico, fingindo um bocejo.

— Eu sei… Mas são tão baratos! — Respirei fundo. — Está bem, tira-me daqui. Não sei o que aconteceu à minha capacidade de autocontrolo! — queixei-me, enquanto ele se ria e voltava a dar-me a mão.

Finalmente, chegámos à secção de caixas de autosserviço e eu não pude deixar de sentir um certo orgulho, bastante repugnante, na minha opinião, ao ver aquele apocalipse de relações a rebentar à nossa volta. Atravessámos a nave direita (eu anotara muito escrupulosamente a localização da mesa da sala de jantar de que ambos gostávamos) de mão dada, mencionando, para nos divertirmos, a maior quantidade de suecos famosos de que nos lembrámos. Ulrika Jonsson e Abba encabeçavam a lista, seguidos de alguns jogadores de futebol que Ben sugeriu. Estava tudo a correr às mil maravilhas, até vermos o póster retangular da secção A prateleira 39.

— Oh!

— Merda!

— É enorme! — exclamei. Não me preocupava apenas com a forma como íamos pôr tudo aquilo no carro; Também não sabia como poderia caber no nosso apartamento minúsculo. Aquela era a razão principal por que tínhamos ido ali, dado que tencionávamos dar uma festa dentro de alguns dias, a modo de inauguração, e sentira-me aterrada com a perspetiva de os nossos convidados terem de jantar com os pratos no colo.

— De certeza que a maior parte é a caixa. A mesa não me pareceu tão grande quando a vi em exposição — comentou Ben, coçando a cabeça.

Assenti, apesar de não estar muito convencida.

— Tiraste as medidas antes de sair de casa, não foi?

— Sim. Vamos. Vai correr tudo bem — declarou e soprou enquanto punha a caixa no carrinho, ignorando os meus olhos semicerrados.

Àquela altura, ambos estávamos muito cansados e eu tinha uma vontade enorme de voltar para casa, para fazer um chá e estrear as minhas chávenas novas a condizer. «É óbvio que pensou nas medidas. Confia nele, Georgia», pensei. No entanto, aquela perspetiva agradável ficou esquecida quando tivemos de lutar para pôr a maldita coisa no carro de Ben. Durante o caminho todo, tive o meu banco completamente puxado para a frente. Disse ao Ben para ter cuidado e não travar com brutalidade, pois tinha medo de ser degolada pela caixa.

Finalmente, deixámo-nos cair no sofá, tentando recuperar o fôlego depois de termos conseguido passar a caixa imensa pela porta. A minha sensação anterior de orgulho por ter sobrevivido ao Ikea estava a começar a desaparecer, mas o nosso bom humor ainda continuava em boa forma quando, por alguma razão, comecei a rir-me da experiência. Uma verdadeira façanha, tendo em conta que a nossa viagem fora tão pouco natural. Além disso, não consegui evitar sorrir ao recordar a forma de conduzir de Ben, mais própria de uma avó por causa da sua prudência exagerada.

— Bom, conseguimos! — Ele sorriu, enxugando o suor da testa. — O que te parece se desembalar tudo isto enquanto arranjas espaço no quarto para todas essas velas que compraste?

— De certeza que não queres que te dê uma ajuda? — perguntei, vendo a confusão que estava a fazer enquanto rasgava o pacote gigantesco com o plástico bolha e tirava o manual de instruções surpreendentemente grosso, juntamente com os parafusos e porcas que ficaram espalhados pelo chão.

— Claro que tenho. Se não for capaz de montar uma mesa simples para a minha mulher, então, basicamente, falhei como homem. — Voltou a sorrir, observando, impávido, o mar de lixo que criara e abrindo uma garrafa de cerveja fresca, pronto para o desafio.

— Está bem, então. Se tens a certeza… — Inclinei-me para beijar ligeiramente o cabelo castanho e encaracolado. — Boa sorte.

Abri caminho entre o resto das caixas espalhadas pelo corredor, as que ainda tinha de abrir, esforçando-me para ignorar o possível risco que traziam, e levei o saco azul do Ikea para o quarto. Aquela era a minha divisão favorita do apartamento. Era maior do que a média, com janelas grandes de guilhotina que, por causa da grande quantidade de luz que deixavam passar, faziam com que o espaço parecesse muito maior. Ainda me surpreendia que, depois de me ter mudado da casa que partilhara com o meu ex-namorado, Alex, para depois passear pelo mundo como mochileira, tivesse tido tempo para acumular tantas coisas. Desde que me mudei há um mês, Ben e eu tínhamo-nos dedicado a negociar os lugares onde podíamos instalar as nossas respetivas posses vitais, dando um toque caseiro àquele apartamento de paredes brancas e nuas, onde estava tudo por fazer e decorar.

Fora apenas uma questão de tempo até Ben abandonar o apartamento que estivera a partilhar com o seu amigo Jimmy e começar a procurar casa comigo. A decisão de partilhar um lar parecera-nos muito óbvia, sobretudo, tendo em conta a quantidade de horas que passávamos a trabalhar juntos, assim como o facto de a nossa relação estar a correr tão bem. Detestava, de facto, as poucas ocasiões em que éramos obrigados a separar-nos.

De forma muito artística, comecei a guardar a minha nova coleção de velas sobre a cómoda, juntamente com a nossa fotografia emoldurada, aquela que nos tiraram quando nos conhecemos numa praia ensolarada da Tailândia. Eram tantas as coisas que tinham mudado depois disso que, às vezes, me esquecia de que tudo começara lá. Depois, tínhamos começado o nosso próprio negócio em conjunto, o Clube de Viagens para Corações Solitários. Tínhamo-nos apaixonado e, agora, estávamos a viver juntos. Nunca teria imaginado que isto aconteceria naquela época, quando aquele desconhecido atraente me passou um braço pela cintura enquanto eu sorria para a máquina fotográfica…

Voltei mentalmente àquele instante e sorri ao ouvir Ben a acompanhar a melodia que tocava no rádio da sala com o seu assobio. Não conseguia recordar ter-me sentido tão feliz e tão entusiasmada com o meu futuro antes disso. Tratava-se de uma sensação maravilhosa e especial que desejava que durasse para sempre. Tivera todo o sentido do mundo que fôssemos viver juntos. As nossas respetivas agendas estavam sempre cheias de períodos curtos de descanso, aproveitados separadamente, dedicados a promover a nossa agência de viagens: Só nos últimos meses, eu tinha estado em Espanha, Grécia e Marrocos. Mas, infelizmente, o máximo que podia ver daqueles destinos fabulosos era o aeroporto e uma certa variedade de hotéis anódinos. O que significava, além disso, que quando não estava ausente do escritório, era Ben que estava, já que nos dividíamos por turnos para manter um contacto pessoal com os nossos guias de viagem e conseguir novos clientes.

Tudo aquilo era muito excitante, mas significava que tínhamos de programar o nosso tempo de ócio ao milímetro, com saídas noturnas e atividades em comum planeadas com muita antecedência, às vezes, de semanas e até meses. Nunca fui uma mulher caseira, mas começara a sentir uma certa tristeza nostálgica por não ter um lar… Pelo menos, com Ben. Agora, tudo mudara. Em algum lado, podíamos, pelo menos, acordar e dormir juntos sempre que estivéssemos no mesmo país…

Nada desejosa de me intrometer nas suas habilidades para a bricolagem, decidi começar com as caixas espalhadas pelo corredor. Todas tinham uma etiqueta de roupa de Ben, por isso, esforcei-me para as levar para o quarto e abri o armário embutido, alto até ao teto, fazendo uma careta ao ver que já estava tão cheio.

Fechei os olhos e inalei o cheiro reconfortante e familiar do meu namorado enquanto tirava as camisas e as guardava nas gavetas do lado dele do armário. Perdida como estava nas lembranças apaixonadas que o cheiro dele despertava no meu cérebro e nas zonas mais femininas do meu corpo, a descoberta quase passou desapercebida. Entre as camisolas perfeitamente dobradas, a minha mão tocou num objeto duro. Rebuscando bem na caixa de cartão, senti um nó no estômago e no coração enquanto tudo à minha volta parecia congelar.

Encaixada e quase escondida no bolso da camisola grossa de lã, havia uma caixinha de veludo, de cor vermelha.

Capítulo 2

 

 

 

 

 

Apreensão (N.): Receio vago, preocupação.

 

Durante alguns segundos, fiquei a olhar para a caixinha com cantos dourados que agarrava com as mãos trémulas, quase como se fosse um passarinho ferido ou uma mina prestes a explodir. Estava demasiado nervosa para mexer um só músculo ou até para expirar o ar que continuava a suster na minha garganta seca.

— Ah, merda!

Consegui ouvir Ben a praguejar enquanto continuava a tentar montar a mesa na sala, totalmente alheio à descoberta surpreendente que a namorada acabara de fazer na divisão contígua.

«Abre-a, abre-a», urgia o meu subconsciente. «Não!», gritava o meu cérebro. «Assim que o fizeres, tudo mudará.»

Deslizava lentamente o meu dedo indicador pela tampa enquanto me debatia internamente sobre se devia abri-la ou não. E se fosse um anel horroroso? E se, em vez de um anel de noivado, fosse um par de brincos? «Que se lixe. Só há uma forma de descobrir.»

Ansiosa, levantei a tampa e fiquei com falta de ar. A luz do sol, que entrava pelas janelas, criou um reflexo no diamante engastado num aro de platina tão simples como elegante. O reflexo era tão deslumbrante que me obrigou a pestanejar. Era esplêndido. E, definitivamente, um anel de noivado.

Perguntas sem resposta, pensamentos e emoções encheram o meu cérebro atordoado de repente e, provavelmente, foram a razão do que fiz depois. Era como se tivesse saído do meu corpo e perdido por completo o bom senso. Como se tivesse tapado os ouvidos para não ouvir o meu cérebro que, naquele momento, estava a sofrer um verdadeiro ataque de pânico. Depois de me certificar de que a porta do quarto estava firmemente fechada e enquanto ouvia Ben a praguejar por cima do barulho do rádio, tirei o anel da caixa elegante e pu-lo.

Deslizou normalmente pelo meu dedo. Como se fosse a Cinderela a experimentar o sapatinho de cristal, assentava-me lindamente, tal como se o tivessem encomendado especialmente para mim. Não pude esconder um sorriso radiante enquanto admirava a pedra resplandecente, capaz de fazer com que os meus dedos gorduchos de unhas descuidadas parecessem tão longos e elegantes como os de uma modelo.

Nem sequer me detive para pensar no que a descoberta daquela caixa escondida poderia significar para a nossa relação, se estava disposta a casar-me com Ben… ou se queria voltar a ser a noiva de alguém depois da experiência desastrosa da última vez. Só eu e aquele anel éramos importantes e era evidente que me estava destinado. A sua beleza chegara ao ponto de me cegar, fazendo com que todos os pensamentos racionais abandonassem o meu cérebro. Como resultado, acabara enroscada no chão, como Gollum, a acariciar «o meu tesouro».

Não sei durante quanto tempo fiquei assim sentada, com as costas apoiadas na nossa cama e a observar aquela joia maravilhosa, boquiaberta. O problema foi que, no meio da minha admiração, não me apercebera de que o rádio, cuja melodia Ben estivera a cantar tão mal, parara de tocar.

— Querida, podes vir cá? — A voz de Ben parecia alta no silêncio, flutuando através do apartamento e afastando-me dos meus pensamentos.

— Oh, claro! Eh… Dá-me um instante! — gritei, enquanto tentava voltar a guardar apressadamente o anel na caixa e a escondê-lo, antes de Ben entrar no quarto e me surpreender naquela situação.

Não sabia se a divisão aquecera ou se era o carma a castigar-me por ter aberto a caixinha, mas a verdade era que não conseguia tirar o anel. Merda! Puxei e puxei e até cuspi no meu dedo gorducho e estúpido para tentar tirar aquela coisa. Contudo, aquela coisa continuava teimosamente no seu lugar.

— Lembras-te da nossa anterior preocupação a respeito de a mesa ser demasiado grande? — perguntou Ben, num tom nervoso, do outro lado da porta fechada.

— Hum? — repliquei e mal o ouvi. «Vamos, vamos!» Estava a praguejar e a fazer caretas por causa da dor de tentar tirar aquele maldito anel sem partir um osso quando vi a maçaneta a girar. Precipitei-me para a porta e bloqueei-a com o peso do meu corpo, sem parar de lutar com o meu dedo, já vermelho e inchado.

— Estás bem? Não consigo entrar! — queixou-se Ben, do outro lado da porta.

— Sim, estou bem, mas há caixas por todo o lado. Já vou sair! — gritei, num tom de voz estranhamente estridente e abafado.

— Está bem. Vou fazer um chá.

— Oh, estupendo, obrigada!

Finalmente, enquanto ouvia os passos dele pelo parqué a afastar-se para a cozinha, deixei escapar um suspiro de alívio. Naquele momento, a minha mão tinha um tom amarelo estranho com manchas de um vermelho furioso como resultado da força que usara. Com um último puxão, acompanhado de um gemido digno de uma campeã de ténis, o anel voou e foi parar ao outro lado do quarto. Apoiei a cabeça na porta enquanto me esforçava para controlar a respiração. Limpei o suor da testa, olhando para o meu dedo dorido, carrancuda. Rapidamente, recuperei e voltei a guardar o anel na sua caixa, para depois o devolver ao bolso da camisola onde o encontrara.

Um instante depois, a porta do quarto abriu-se. Ben estava na soleira, a oferecer-me uma chávena fumegante de chá.

— Toma. — Tinha a certeza de que os olhos dele se tinham esbugalhado ligeiramente de espanto ao ver o estado desastroso da divisão. — Estás bem, querida?

— Sim, obrigada, lindamente. Bom, vejamos essa obra-prima! — exclamei, dando-lhe um beijinho na cara e empurrando-o para fora do quarto cheio. Não parei de esfregar o dedo dorido atrás das costas.

— Bom, como te disse antes, talvez tenhas de mudar as tuas expectativas. — Tossiu. — É um pouco maior do que eu… Bom, vê por ti própria. — Ben interrompeu-se.

Assim que entrei na sala, parei. Qualquer pensamento sobre anéis e casamentos desapareceu assim que vi o que acabara de montar.

— Um pouco maior? — perguntei.

A mesa da sala de jantar que parecera tão elegante no Ikea ocupava virtualmente a sala toda. O efeito era ridículo. Não conseguia concentrar-me no que Ben estava a balbuciar timidamente. Enquanto ele continuava a tagarelar sobre medidas, tamanhos e dimensões, eu estava hipnotizada, a esfregar o dedo dorido com ar ausente. Aquilo seria um presságio? Um sinal do que nos esperava? A nossa primeira compra importante como casal não encaixava, tal como o anel de noivado? Se esse era o caso, o que raios significava para nós?

Capítulo 3

 

 

 

 

 

Equanimidade (N.): Igualdade constante de ânimo (em qualquer conjuntura da vida); serenidade.

 

Quando as coisas estão bem, as pessoas costumam dizer que é como se as estrelas se alinhassem e como se tudo no universo corresse exatamente como devia. Sim, mas o que não dizem é que esse alinhamento é precário e quão rapidamente tudo pode mudar a qualquer momento. Imagine uma corda bamba sobre a qual tudo assenta perfeitamente, num equilíbrio feliz, mas precário: Era assim que era a minha vida. Talvez me sentisse muito satisfeita e muito feliz, mas, ao ver as coisas em retrospetiva, percebia que um simples sopro de vento ou um pássaro a apoiar o rabo emplumado na corda, já para não falar da descoberta de um segredo destinado a continuar como tal, podiam fazer com que todos os elementos que antes tinham estado tão perfeitamente alinhados se destruíssem para que acabasse com os meus ossos no chão. Não imaginara que as leis da física, ou quem quer que tivesse causado aquela cadeia de acontecimentos, marcariam o princípio daquela destruição do suposto alinhamento de estrelas e, portanto, o começo de tantos desastres. Era muito ingénua.

 

É óbvio, essas reflexões ainda estavam longe da minha mente quando, no dia seguinte, fui visitar a minha melhor amiga para lhe falar sobre a descoberta do anel, a proposta de casamento iminente e a mesa monstruosa que se apoderou da minha sala. Com tudo o que acontecera no dia anterior, incluindo a discussão estúpida que tínhamos tido por causa da maldita mesa e as suas dimensões gigantescas e que acabou com o meu comentário a respeito de, no fim, o tamanho realmente importar, não voltara a pensar muito no que a descoberta daquele anel significava realmente para a nossa relação.

É óbvio, mentiria se dissesse que não imaginara, em diversas ocasiões desde que nos conhecemos, o meu casamento com Ben. Imaginara-o com um fato elegante de linho e a mim com um vestido comprido e vaporoso, simples, mas impressionante. Ambos pronunciaríamos os nossos votos enquanto nos entreolhávamos com mútua adoração e tudo isso numa praia exótica. Imaginara como Ben seria como pai: Bondoso, mas justo, trabalhador e diligente, sem ser opressivo.

Contudo, por muito divertidas que tivessem sido aquelas fantasias, a verdade era que nunca tínhamos falado a sério sobre o casamento e os filhos. Sim, tínhamos brincado sobre nomes estranhos de bebés: Ben mostrara-se firmemente inclinado para o nome de Roy e eu rira-me, embora esperasse secretamente que estivesse a brincar, pelo sim pelo não. Porém, casar e ter filhos não era algo que estivesse completamente fora das nossas probabilidades. Quer dizer, tínhamos trabalhado muito bem juntos enquanto impulsionávamos o nosso negócio da agência de viagens para solteiros e solteiras de coração partido com grande êxito e, até ao momento, a convivência fora muito fácil. No entanto, nenhum de nós falara do assunto do casamento. Ainda não, pelo menos.

Em certo sentido, alegrava-me por ter descoberto o anel, dado que me proporcionara tempo para me habituar à ideia e para me questionar se estávamos no momento em que, evidentemente, Ben julgava que estávamos. Não era que não quisesse casar-me com o meu namorado inteligente, bom e atraente que, para cúmulo, era espetacular no quarto, devido à minha última experiência amarga como noiva abandonada no último momento pelo namorado anterior. Estivera plenamente decidida a casar-me com Alex. Planeara, pagara e organizara o casamento. Contudo, mesmo antes do grande dia, ele confessara que estivera a enganar-me e cancelara tudo. O facto de o ouvir a pronunciar aquelas palavras dolorosas, «não posso casar-me contigo», causara a maior mudança da minha vida.

Depois daquilo, viajara como mochileira pelo mundo, conhecera Ben, apaixonara-me, criara o meu próprio negócio e descobrira que viajar curava um coração partido. Agora, estava convencida de que, na verdade, Alex me fizera um grande favor. Fora uma experiência horrorosa e difícil, é óbvio, porque… que rapariga quereria ouvir de alguém que amava e respeitava que não a achava digna de ser a sua esposa? Porém, com o tempo, tinha a sensação de me ter curado e, além disso, descobrira que todos aqueles tópicos irritantes a que as pessoas se agarraram, como aquele que dizia que o tempo curava tudo, no fundo, eram verdadeiros.

A minha vida era muito melhor agora do que alguma vez fora, em boa medida, graças a Ben e ao êxito que tínhamos conseguido com o nosso negócio. Possivelmente, o casamento cancelado com Alex fora precisamente a chave, mas então… como seria o casamento do ano com Ben?

— Levas-me o carrinho, por favor? — pediu Marie, afastando-me das minhas reflexões confusas sobre o casamento. — Tenho outra dor, mais um dos efeitos colaterais maravilhosos da minha condição de grávida — resmungou.

Andávamos lentamente pelo parque e, quando digo «lentamente», sou literal: Até os patos nos ultrapassavam. Marie estava numa missão para se tornar novamente mãe e eu esquecera-me de que prometera ajudá-la até me ligar naquela mesma manhã. Só lhe faltavam algumas semanas para dar à luz, mas estava decidida a fazê-lo a tempo. Fora o que acontecera com o seu primeiro bebé. Ia ter o segundo a seu devido tempo, custasse o que custasse.

— Esta gravidez não está a ser como a primeira, por isso, preciso de «melhorar o meu jogo» para me livrar disto o quanto antes — comentou Marie, enquanto eu empurrava o carrinho com cuidado, tentando evitar os excrementos de cão.

Marie tinha um olhar de louca enquanto falava. Um olhar que eu me lembrava de ter visto quando ambas tínhamos dezoito anos e ela estava determinada a acabar uma fila de shots no bar de Waverley para ganhar uma t-shirt gratuita.

— Marie, estás a falar de um bebé. Sei que não sou uma perita na matéria, mas… Não devia vir quando tem de vir e não quando tu queres?

Fulminou-me com o olhar. Claramente, as mudanças de humor estavam a piorar.

— Georgia Green, talvez tenha hemorroidas e mamilos escuros e talvez tenha perdido a capacidade de reter a urina cada vez que espirro, tusso ou me rio, mas isto… Isto é algo que sei que consigo controlar.

Parecia uma espécie de mulher Michelin teimosa por baixo das camadas numerosas de roupa que envolviam a barriga avultada, a andar ao meu lado como um pato.

— Ainda não consigo acreditar que não sabes o que vais ter.

— Vou ter um bebé, Georgia. Ainda ninguém to disse? — Deitou-me a língua de fora, brincalhona.

— Eh, eh. Quero dizer que… Não estás desesperada por saber se é menino ou menina? Eu, certamente, se um pénis estivesse a crescer dentro do meu corpo, precisaria de saber.

— Bom, ambas sabemos que já tive experiência de sobra nisso… — Começou a rir-se, como se evocasse aquelas lembranças despreocupadas dos seus tempos de solteira. — Ora, agora a sério, não quero estragar a surpresa. Assim, será ainda mais mágico quando ele ou ela aparecer finalmente. — Usou aquela voz de hippie sonolenta que costumava usar para imitar Lorraine, a vesga.

A vesga Lorraine. A mãe hippie típica e mãe terra que dava aulas pré-natal e costumava irritar Marie insinuando que fora uma má mãe com Cole e que, agora, as coisas se faziam de forma diferente. Tudo era «mágico» no mundo de Lorraine.

Marie não era «mágica». Era uma mulher prática e, naquele momento, a coisa mais prática que podia fazer era tentar o possível para trazer o seu bebé são e salvo ao mundo a seu devido tempo. Era um objetivo concreto, mas, ao mesmo tempo, para Marie, representava a única forma de demonstrar à vesga Lorraine que não era um fracasso como mãe.

— Mas se não sabes o que vais ter, o que compraste para o bebé? Não existe uma espécie de código não escrito de maternidade segundo o qual te arruínas sempre a comprar uma montanha de roupa cor-de-rosa para menina e azul para menino?

Marie revirou os olhos e suspirou.

— Atualmente, há roupa unissexo para bebés. Neste momento, ele ou ela já dispõe de um guarda-roupa de amarelos, verdes e brancos. Só espero que as pessoas reconheçam o seu sexo só de olhar.

Deixei escapar um suspiro de troça.

— Bom, se estivesse no teu lugar, vestiria o meu bebé com máscaras do Dia das Bruxas em miniatura. É a única forma de projetar uma imagem de género neutro.

Marie deu uma gargalhada.

— Graças a Deus que não estás grávida. Não sei se o meu bebé gostaria de recordar o seu primeiro ano de vida para descobrir que o passou vestido de morcego ou de abóbora.

— Sim, talvez, mas seria fantástico! Meu Deus, Marie, é incrível pensar que, dentro de pouco tempo, ele ou ela estará aqui, a partilhar este carrinho com o Cole. — Experimentei um formigueiro estranho no peito enquanto falava. Estava tudo mudado. A vida da minha melhor amiga não voltaria a ser a mesma. Quando engravidara de Cole, passámos horas a imaginar como seria, como cresceria até se tornar um adulto com personalidade… e a questionar-nos também como seria ser mãe. Suponho que uma parte pequena e egoísta da minha personalidade se preocupasse com ser afastada da vida de Marie quando outro ser humano se transformasse no centro absoluto do seu mundo. Como é que uma melhor amiga podia competir com um ser assim?

Diziam que o amor de uma mãe não tinha igual, mas isso era algo que eu, ao não ser mãe, só conseguia entender de uma perspetiva racional. Naquele momento, a vida de Marie estava prestes a experimentar uma nova mudança, mas, desta vez, estava menos preocupada com a forma como ia encaixar nela e mais com o facto de a minha vida também estar prestes a mudar.

— Eu sei. — Marie sorriu, cansada. — E, em breve, começará a Operação Calças de Ganga Justas.

Olhei para ela, carrancuda.

— Não olhes assim para mim! Não tenciono transformar-me numa supermodelo, mas anseio recuperar o controlo do meu próprio corpo. Além disso, se tenciono cumprir com o meu plano de cinco anos, tenho de emagrecer para o grande dia.

— Esse grande dia sobre o qual o Mike não sabe nada — trocei e deixei escapar um suspiro profundo. — É incrível pensar que, há tão poucos anos, ambas estávamos em posições tão diferentes e, contudo, de alguma forma, éramos tão parecidas com o que somos agora: Tu tens bebés e eu… estou prestes a ficar noiva.

Marie demorou alguns segundos a assimilá-lo.

— Oh, meu Deus! O quê? Vais casar-te?

Os gritos de Marie fizeram com que um homem solitário a passear os cães se assustasse do outro lado do lago. O meu dedo anelar começou a formigar de dor devido à lembrança da tortura que sofrera quando a minha amiga mencionou a palavra essencial.

— Conta-me tudo! — Deteve-se para me agarrar a mão em busca de algum sinal do anel. — Espera… Onde está o anel?

— Bom, eh… Na verdade, ainda não estou noiva. Mas vou estar…

Marie ficou a olhar para mim, como se eu tivesse perdido completamente o juízo.

— Como?

Suspirei e falei-lhe da ida ao Ikea, da abertura das caixas, da descoberta do anel e da lesão do meu dedo devido às minhas tentativas de o tirar antes de Ben me surpreender.

— Ena! E como era?

— Maravilhoso. — Abracei-me sem me aperceber.

— Melhor do que o primeiro que te deram? — Marie arqueou uma sobrancelha.

— Sim. — Consegui recuperar.

Ela assentiu lentamente, como se pensasse na melhor forma de formular a pergunta seguinte.

— Estás disposta a voltar a passar pelo mesmo? Sabes… tendo em conta o que se passou da última vez? — perguntou, finalmente.

— Sim, é óbvio. Quer dizer… Acho que sim. — Olhou para mim com uma expressão eloquente e eu retribuí o olhar. — Amo o Ben e, desta vez, acho que os meus sentimentos são completamente diferentes dos que tinha pelo Alex. É como se tivesse crescido para me aperceber do que é realmente importante numa relação. Além disso, agora, conheço-me muito melhor. Agora, sei o que quero. Sou muito diferente da antiga Georgia, é como se tivesse finalmente percebido quem sou. Pelo menos, é o que penso. De alguma forma, isto foi uma surpresa.

— Achas? Georgia, esse é um passo muito importante. Tens de ter a certeza — interrompeu-se. — Se to pergunto é porque fui a única que viu como tudo se derrubava daquela última vez. Não quero que isso volte a acontecer-te. — Tremeu visivelmente.

Endireitei-me.

— Isso não vai acontecer. O Ben ama-me e, obviamente, pensa que estamos prontos para dar este passo, porque, caso contrário, não se teria dado ao trabalho de comprar esse anel…

— Estou preocupada contigo, é só isso.

Baixei o olhar para a barriga avultada dela.

— Bom, já somos duas.

— Sabes que adoro o Ben e acho que é estupendo que estejam a viver juntos, mas… Não queres, não sei, desfrutar dessa experiência em vez de te atirares de cabeça para o mundo louco dos casamentos? — Devia ter percebido algo na minha expressão, porque se apressou a acrescentar: — Estou contente por ti… Bom, vou estar, quando chegar o grande momento… O que se passa é que não gostaria que te sentisses pressionada a tomar decisões tão sérias apenas porque viste um anel maravilhoso…

— Certamente, tem muito bom gosto para joias — declarei. — Estou a brincar. Não é apenas o anel. Entendo o que dizes, também foi uma surpresa para mim. É óbvio, imaginava que algum dia acabaríamos por dar esse grande passo. Só não tinha percebido que o «algum dia» do Ben era agora.

— Acho que também devias pensar nas consequências que isto poderia ter para a Corações Solitários, no que significará para a tua equipa trabalhar para um casal… e nos dramas tipos de um casamento que talvez toldem a vossa relação profissional…

Dissera a Marie que, embora o Ben e eu trabalhássemos muito bem juntos, às vezes, tinha de me esforçar para o fazer pensar menos no trabalho e mais em nós. Era um equilíbrio precário que parecia especialmente difícil dado que o Ben era do tipo de homens que escondia bem as suas cartas, sobretudo, no que dizia respeito à sua família. Eu nem sequer conhecia o clã dos Steven, algo que, certamente, teria de mudar antes do nosso grande dia.

Soprei para os dedos para aquecer.

— Suponho que seja algo que tenhamos de considerar. Sei que ambos estamos mentalizados de que temos de falar menos de trabalho, mas isso é mais fácil de dizer do que de fazer, sobretudo, quando ele está tão entusiasmado com a expansão para Londres.

— O que se passa? Não gostas dos cockneys?

Comecei a rir-me.

— Não é isso! Não tem nada a ver com Londres nem com os londrinos. Trata-se de uma decisão muito importante para a qual, na minha opinião, ainda não estamos prontos. Sim, poderia dar-nos imenso dinheiro e novas oportunidades, mas, ao ritmo atual de crescimento e tirando um lucro tão grande da agência de Manchester, não sei se isso nos compensaria os nervos e o risco de abrir outra sucursal noutra cidade. O Ben é um sonhador nato e tem a certeza de que triunfaríamos, enquanto eu tento ser mais racional, mais prudente. Esse é o único aspeto em que os nossos pontos de vista não coincidem.

— O maior nem sempre tem de ser melhor — indicou Marie e levou uma mão à boca. — A não ser que estejas grávida, como eu! — exclamou, rindo-se.

— Sim. — Sorri e abanei a cabeça, pensando na mesa gigantesca que se apoderara do nosso apartamento. — Não sei. A decisão de Londres é muito importante e temos pontos de vista diferentes.

— Sabes? O que me parece é que não estás precisamente pronta para te casares com o Ben, se nem sequer concordam com o rumo que querem dar ao vosso negócio. — Arqueou as sobrancelhas e fechou melhor o casaco. — Acho que precisas de um plano. E sei como adoras planos!

— Que tipo de plano? Um que consiga fazer com que o meu namorado se abra mais comigo e com que consiga convencê-lo de que Londres não é uma boa ideia?

Marie encolheu os ombros.

— Talvez precisem de se afastar da rotina por um tempo… Não sei, tirar umas férias ou algo do género, antes de tomares uma decisão sobre Londres ou sobre o vosso futuro como casal. Dessa forma, poderias sair de Manchester. Além disso, uma mudança de cenário poderia dar-te a oportunidade de lhe dizeres o que tencionas fazer. E de decidires se estás pronta para te comprometer com ele de forma permanente e até ter imensos filhos muito bonitos…

Deixei escapar um suspiro cético.

— Deixo os filhos para ti, por enquanto. Embora umas férias em alguma praia ensolarada e exótica me pareçam uma perspetiva idílica.

Desviei o olhar para o parque infantil lastimoso e descuidado para onde nos dirigíamos. Um baloiço desolado e velho balançava com a brisa fria. Felizmente, Cole continuava no país dos sonhos, poupando-nos o incómodo de ter de passar mais tempo do que o necessário num lugar tão deprimente. Havia algo mais triste do que um parque infantil sem crianças? À luz cinzenta daquela manhã, tinha um aspeto ainda mais abandonado. Sobretudo, tendo em conta o estado do lago próximo, com pacotes vazios de batatas espalhados pelas margens e latas de cerveja a flutuar na superfície das suas águas turvas.

— Hum… Continua a pensar assim. Sei que não vais querer ouvi-lo, mas o teu relógio biológico não vai demorar a dizer-te outra coisa.

— Agora, estás a falar como os meus pais. — Ri-me e enlacei o braço com o dela, em busca de um calor extra. — Vamos falar da tua vida. Estás nervosa com a perspetiva do grande dia?

— Qual? O casamento? — Olhou para mim, surpreendida.

— Não! — Levei uma mão enluvada à testa. Aquelas conversas sobre casamentos eram simplesmente terríveis. — Marie, antes do casamento, há o noivado…

— Ah, sim. — Encolheu os ombros. — Presumo que sim. O Mike vai acabar por mo pedir. Aposto que há estudos científicos que demonstram que há mais casais que ficam noivos depois de terem tido um bebé do que em qualquer outro momento da sua relação. Quer dizer, chegados a esse ponto, os homens ficam pasmados com a perspetiva de conseguires tirar um filho das tuas partes femininas, por isso, já não podes cometer erros.

— Não tenho nenhuma dúvida de que terás o anel no dedo antes do fim do ano. Mas não, referia-me ao parto. Não tens nem um bocadinho de medo de o repetir? — Esfreguei-lhe os braços: Conseguia ver que estava tensa por empurrar o carrinho. O parto de Cole não fora fácil. Tinham surgido complicações e tínhamos estado muito perto de perder os dois, uma lembrança que, há muito tempo, tínhamos varrido para baixo do tapete, mas que, no entanto, ainda me causava calafrios.

Nunca vira a minha melhor amiga tão angustiada como quando o seu primeiro filho esteve sob observação durante os dias que se seguiram à sua chegada dramática. Apesar de a sua recuperação rápida ter sido chamada de «milagrosa» pelos médicos, Marie ficou destroçada, pois culpava-se pela forma aterradora como o filho chegara ao mundo. Torturara-se a pensar no seu corpinho frágil e diminuto preso a tubos e fios na incubadora e repetira-se em voz baixa que não se cuidara o suficiente durante a gravidez. E isso porque só descobrira que estava grávida às catorze semanas, de forma que era possível que lhe tivesse causado um dano irreversível ao beber mais do que devia nas noites em que saíra naquela atura.

Contudo, eram apenas tolices e os médicos fartaram-se de lhe assegurar de que a culpa não fora de ninguém, que eram coisas que aconteciam sem mais nem menos. Entretanto, até Cole sair da incubadora, Marie não conseguira descansar em paz. Fora por isso que Marie fora tão rígida consigo própria durante aquela última gravidez. Daquela vez, estava a seguir todas as instruções à letra. Até Mike perdera a paciência algumas vezes, dizendo que devia parar de se preocupar tanto e começar a desfrutar do processo, mas Marie mostrara-se inflexível na sua decisão de compensar a experiência que tivera com Cole. Daquela vez, planearia tudo ao pormenor, com a esperança de que fosse perfeito.

Não podia saber se era devido à luz mortiça do parque, mas a questão era que, de repente, parecia ter empalidecido.

— Ora… — Afastou uma madeixa ruiva e brilhante da cara e engoliu em seco.

— Marie? Não faz mal ter medo — repliquei, num tom doce.

Ela deteve-se e virou-se para olhar para mim. As lágrimas apareciam nos seus olhos cansados e tinha a ponta do nariz avermelhada por causa do frio.

— Tenho muito medo, Georgia. Mas não posso dar-me ao luxo de me deixar levar pelo pânico. Já passei por isto uma vez e sei como é, mas, de alguma forma, é ainda mais aterrador precisamente porque sei exatamente o que esperar. Desculpa-me por este trocadilho de mau gosto, mas sei perfeitamente que não vai ser um simples passeio pelo parque. — Deu uma gargalhada que eu não reconheci como dela. De repente, a ruiva rebelde e impetuosa que tinha como amiga voltou a ser a adolescente magricela e desesperada por tirar boas notas que tanto amara e apreciara. Abracei-a com força, algo difícil de fazer com as numerosas camadas de roupa que usava e a barriga volumosa.

— Não é mau sentir medo. Mas vai ser tudo perfeito. Tenho a certeza disso.

Ela sorveu pelo nariz e limpou-o com a manga do casaco.

— Obrigada. Espero que tenhas razão. Todos dizem que o resultado final justifica qualquer preocupação, mas… É tudo tão incómodo e dói tanto! Era o que queria dizer quando te disse que não sentia o meu corpo como se fosse meu. Não tenho nenhum controlo sobre o que pode acontecer. A única coisa que posso fazer é esperar que corra tudo como manda a biologia…

Assenti fervorosamente.

— Vai correr tudo lindamente. Provavelmente, o Mike vai pedir-te em casamento no preciso instante em que vir o presente maravilhoso que vais dar-lhe.

Os seus lábios curvaram-se num sorriso lento.

— Pelo menos, não vou ter de fazer as tarefas domésticas durante alguns meses.

Abanei a cabeça.

— A verdade é que não sei como vais sobreviver com duas crianças tão pequenas! Quer dizer, o facto de me encarregar de mim própria já é cansativo… — O problema era que não estava a brincar. — Para de te rir, estou a falar a sério!

Marie deu-me uma palmadinha carinhosa num braço.

— A tua vida é estupenda e sabes. Enche-me de inveja saber que podes organizar umas férias, sair para beber uns copos no fim de semana ou até sair de casa sem um plano preparado ao milímetro, como eu. Não deixes passar muito tempo antes de te juntares ao meu clube. Quer dizer, talvez a vesga Lorraine tenha razão… A maternidade é algo malditamente mágico!

Ambas rebentámos em gargalhadas e voltámos a seguir pelo caminho, desta vez, para voltar para casa dela com a perspetiva de saborear uma boa chávena de chá com algumas tabletes de chocolate. Enquanto andávamos, cansadas, pelo caminho enlameado que levava à rua principal, não sabia bem porque sentia aquelas dúvidas. Adorava sair com a minha melhor amiga, mas Marie tinha o costume de dizer sempre a verdade e, às vezes, aquelas doses de realidade eram um pouco difíceis de assimilar. Talvez ela tivesse razão. Talvez não devesse pensar em casar-me com Ben quando eram tantas as perguntas sem resposta que se interpunham entre nós.

Toda aquela conversa sobre a maternidade e os bebés deixara-me inquieta. Como se tivesse a sensação de que ainda não estava pronta para ter filhos, embora o casamento não estivesse descartado. E talvez Marie tivesse razão: Por muito amada que me sentisse por Ben, mal tínhamos acabado de nos mudar para a mesma casa e mal estávamos a começar a conhecer-nos. Talvez precisasse de sossegar os sinos do casamento que tinham começado a tocar na minha mente para que conseguisse pensar de forma racional no que aquele noivado significaria para os dois e nas mudanças que isso traria. Quando as coisas corriam tão bem, qual era a necessidade de as mudar?