Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.
Núñez de Balboa, 56
28001 Madrid
© 2005 Heather Graham Pozzessere. Todos os direitos reservados.
BAILE DE MÁSCARAS, Nº 259 - Setembro 2013
Título original: Wicked
Publicada originalmente por HQN™ Books
Publicado em português em 2007
Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.
Todas as personagens deste livro são fictícias. qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.
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I.S.B.N.: 978-84-687-3388-3
Editor responsável: Luis Pugni
Conversão ebook: MT Color & Diseño
Para Franci Naulin, com todo o amor, agradecimento e os maiores desejos de felicidade do mundo.
Desmascarado
Camille não podia fazer nada, exceto fugir. E rezar, porque essa era a sua única salvação.
Sem dúvida, a polícia viria. Tinha havido um assassinato! Meu Deus! Sim, sem dúvida, a polícia viria.
Não, as suas esperanças eram vãs. O assassinato não acontecera ali, de modo que a polícia não iria ao castelo. Contudo, se permitisse que essa certeza dominasse a sua mente, o pânico apoderar-se-ia dela. E devia manter-se alerta, pois estava a fugir. E porque nem sequer conhecia o rosto do mal que a perseguia.
Pensava que estava já longe do grande castelo de Carlyle e ouvia a sua própria respiração ofegante, como um vento feroz que a arrastava consigo. Por fim, teve de parar. No entanto, ao fazê-lo compreendeu que o som que ouvira não procedia apenas dos seus pulmões ávidos. Levantara-se vento e passava entre as árvores, que formavam um extenso dossel sobre a sua cabeça. Camille ficou contente, confiando em que a fúria dos elementos dissiparia a bruma que parecia pesar sobre aqueles bosques tão próximos dos matagais ermos.
Estava lua cheia. Se o nevoeiro se dissipasse, conseguiria ver mais claramente, contudo também seria vista por aqueles que a perseguiam.
Respirou fundo com dificuldade e, quando considerou que conseguia recomeçar a andar, olhou à sua volta, tentando orientar-se. O delicado laço de seda da parte de trás da sua saia prendeu-se num ramo e Camille puxou-o, rasgando-o. Só pensava em fugir e em salvar-se.
A estrada ficava para este. A estrada para Londres, para a civilização, para a prudência, ficava para este. Portanto, deveria passar por ali alguma carruagem a caminho da cidade. Se conseguisse chegar à estrada antes que o assassino a encontrasse...
Tinha a certeza de que aquela trama fora tecida há muito tempo. Sabia que aquele homem tinha a intenção de a abater para ter a certeza de que jamais contaria o que sabia. Para que nunca revelasse os segredos do castelo de Carlyle.
No meio da escuridão e da névoa que a fúria crescente do vento revirara, ouviu o som espetral de um uivo. Os lobos clamavam para o céu. No entanto, naquele instante, Camille não tinha medo dos animais porque conhecia o verdadeiro perigo. E podia ser uma besta, porém, apresentava-se sob a forma de um homem.
O ruído da folhagem alertou-a de que alguém se aproximava. Camille esticou-se para ver melhor e rezou para que o instinto lhe proporcionasse um sinal, uma forma de fugir. Contudo, o ruído estava perto, demasiado perto.
«Corre!»
Aquela ordem ecoou como um grito na sua cabeça. Porém, já era demasiado tarde quando conseguiu reunir forças. Ele saiu de entre o matagal.
– Camille!
Ela conhecia bem aquela voz. Ficou paralisada, com o fôlego e o coração presos na garganta. E cravou o olhar no rosto daquele homem: no rosto sob a máscara!
Antes, conhecera aquele rosto apenas pelo tato, vira-o em momentos fugazes de abandono. Era um rosto surpreendente, rude, mas belo, com um queixo robusto e um nariz fino e reto. E os olhos...
Camille vira sempre com clareza aqueles olhos que a tinham desafiado, desdenhado e que por vezes tinham pousado nela com uma ternura repentina e melancólica.
Durante um instante, foi como se o tempo, o bosque e o vento parassem. Camille olhou fixamente para ele, estudando o seu rosto. Qual era a máscara? A bizarra máscara de pele em forma de animal? Ou aquele rosto humano, muito mais surpreendente do que imaginara, com as suas feições grosseiramente esculpidas, mas bonitas, tão clássicas na sua forma que poderiam ter pertencido a um deus antigo?
O que era real? A ameaça da besta ou o ímpeto justiceiro do homem?
– Camille, por favor, pelo amor de Deus, vem comigo...
Enquanto ele falava, Camille ouviu passos atrás dela. Havia mais alguém? Um salvador? Alguém com uma aparência muito mais pacífica? Um dos outros, daqueles que diziam ser seus colegas e que, no entanto, estavam envolvidos naquela trama em que se misturavam os mistérios e as riquezas do passado? O próprio lorde Nimbou, Hunter, Audrey, Alex... Oh, meu Deus, sir John...
Camille virou-se bruscamente e ficou a olhar para o homem que surgiu do caminho escondido entre árvores e arbustos.
– Camille! Graças a Deus!
Avançou para ela.
– Se tocares nela és um homem morto! – gritou o homem que ela conhecia como a Besta.
– Vai matar-te, Camille – disse o outro.
– Nunca faria isso – respondeu a Besta em voz baixa.
– Tu sabes que ele é um assassino! – gritou o outro.
– Sabe que um de nós é um assassino – disse a Besta, com calma.
– Pelo amor de Deus, Camille, esse homem é um monstro! Provou-o!
Ela olhou para um e para o outro, incapaz de esconder a tempestade que se agitava no seu interior. Sim, um deles era um assassino.
E o outro era a sua salvação. Mas qual era qual?
– Camille, rápido... Vem comigo – disse o segundo.
O homem que ela conhecia como a Besta atraiu o seu olhar.
– Pensa com calma, meu amor. Pensa em tudo o que viste e aprendeste... Em tudo o que sentiste. Recorda, Camille, e pergunta-te qual de nós é o monstro.
Recordar? O que tinha para recordar? Rumores e mentiras? Ou o dia em que chegara pela primeira vez àquele bosque e ouvira os uivos... e o som da sua voz?
O dia em que conhecera a Besta.
– Céus, posso saber o que fez agora? – perguntou Camille com desalento, olhando para Ralph, o criado, confidente e, infelizmente com demasiada frequência, companheiro de correrias de Tristan.
– Nada! – respondeu Ralph, indignado.
– Nada? Então, o que fazes aqui, sem fôlego, a olhar para mim como se estivesses prestes a dizer-me que tenho de ir mais uma vez em auxílio do meu tutor e salvá-lo de algum calabouço, de algum bordel ou de qualquer outro lugar de má reputação?
Tristan andava sempre metido em confusões. Camille sabia que parecia indignada e furiosa. Sabia que também parecia disposta a deixar que o seu tutor sofresse o castigo, o que não era verdade. Ralph sabia-o e ela também.
Tristan Montgomery não era precisamente um tutor modelo, apesar de o destino lhe ter proporcionado uma posição social relevante.
No entanto, doze anos antes, Tristan salvara-a de ir parar a um asilo ou algo pior. Tristan nunca tivera uma vida que pudesse ser qualificada de honrada, porém, desde o dia em que vira pela primeira vez Camille, junto do corpo ainda quente da mãe, entregara-lhe o seu afeto e os seus recursos, fossem quais fossem.
E ela não ia agir de forma diferente com ele. Andava há vários anos a tentar que ele encontrasse um pouco de... estabilidade. Uma posição digna na sociedade. Um lar. Uma vida decente.
Por sorte, Ralph tivera a precaução de esperar por ela na esquina da rua, em vez de entrar no Museu Britânico, onde a sua aparência descuidada e os seus murmúrios ansiosos poderiam ter custado a Camille o emprego que conseguira com tanta dificuldade. Camille sabia mais sobre o Antigo Egito do que muitos estudiosos que tinham participado em escavações, contudo, até sir John Matthews hesitara perante a ideia de aceitar uma mulher. E, tendo em conta que sir Hunter MacDonald tinha poder de voto, a coisa não fora fácil. Hunter, na verdade, tinha-a em grande estima, porém, a sua admiração poderia tê-la prejudicado. Hunter, que se vangloriava de ser um explorador aventureiro, aparentemente desprezava o novo grupo de sufragistas e achava sinceramente que as mulheres tinham de estar em casa. Pelo menos, Alex Mittleman, Audrey Sizemore e até lorde Nimbou pareciam aceitar a sua presença sem dificuldade. Felizmente, lorde Nimbou e sir John eram aqueles que realmente importavam.
Porém, as tribulações do seu emprego pouco interessavam naquele momento. Tristan estava em apuros. Mas numa segunda-feira à noite... A semana mal começara!
– Juro que Tristan não fez nada – balbuciou Ralph, assustado. Era um homem de estatura baixa, mas vivaz, capaz de se mexer com a agilidade e o silêncio de um lince.
Camille tinha consciência de que, mesmo que Tristan pudesse não ter feito nada, sem dúvida estivera a planear algo ilegal antes de se ver envolvido numa confusão.
Virou-se e olhou para trás. Os conservadores do museu, que estavam a sair naquele momento do imponente e belo edifício, podiam vê-la ali a qualquer momento. De repente, apareceu Alex Mittleman, o braço direito de sir John. Se a visse, quereria falar com ela, acompanhá-la ao elétrico. Tinha de sair dali e depressa.
Puxou Ralph pelo braço e conduziu-o a toda a velocidade rua abaixo. Ao fazê-lo, levantou-se vento e o seu beliscão transformou-se numa dentada de gelo. Mas talvez não fosse apenas o vento. Talvez fosse um pressentimento terrível.
– Vá! Fala, rápido! – insistiu Camille, angustiada. Tristan era inteligente e extremamente culto, e, além disso, possuía uma educação de rua que um sem-fim de precetores na sua juventude tentara incutir-lhe. Ensinara muitas coisas a Camille: línguas, literatura, arte, história, teatro... E também lhe ensinara que as aparências constituíam a maior parte das leis que regiam a sociedade. Se falasse como uma dama nobre, embora pobre, que se vestisse como tal, era isso que as pessoas achariam que era.
Tristan podia ser espantosamente perspicaz no que dizia respeito ao mundo circundante. E, no entanto, por vezes parecia carecer de qualquer sinal de bom senso.
– O Dougray fica ali à frente – disse Ralph, referindo-se a uma taberna.
– Agora não precisas de uma dose de gim! – repreendeu-o Camille.
– É claro que sim – disse ele, com tom triste.
Camille deixou escapar um suspiro. A taberna de Dougray, um estabelecimento frequentado por operários, tinha melhor reputação do que a maioria dos lugares que Ralph e Tristan costumavam frequentar. Além disso, permitia a entrada a mulheres, particularmente às que faziam parte do cada vez maior batalhão de empregadas de escritório do país.
Camille vestia-se sempre com primor, com a finalidade de conservar o seu emprego como ajudante de sir John Matthews, conservador principal do departamento de Antiguidades Egípcias do Museu Britânico. Não tinha joias, nem qualquer acessório, além do simples anel de ouro que Tristan encontrara no corpo sem vida da sua mãe, que ela usara presa num fio quando era criança e agora no dedo.
Pareceu-lhe que ninguém reparara neles quando entraram na taberna.
– Estamos a esconder-nos? – sussurrou Ralph.
– Vamos lá para o fundo, por favor.
– Se tentas passar despercebida, Camie, é melhor nem tentares, porque todos os homens que há neste sítio se viraram para olhar para ti.
– Não sejas ridículo!
– É por causa dos teus olhos – disse-lhe ele.
– Os meus olhos são castanhos, normais e banais – replicou ela, com impaciência.
– Não, menina, são de ouro, de ouro puro. E, às vezes, têm um tom esmeralda. É muito estranho. Receio que todos os homens olhem para ti... e não precisamente de uma forma muito educada! – exclamou, olhando à sua volta com um brilho de fúria.
– Ninguém vai fazer-me nada, Ralph. Mexe-te, por favor!
Empurrou rapidamente Ralph para o fundo do local cheio de fumo e pediu um gim para ele e uma chávena de chá para ela.
– Agora, fala! – ordenou-lhe.
– Tristan adora-te com toda a sua alma, menina, tu sabe-lo... – começou ele a dizer.
– E eu a ele. E já não sou uma menina, graças a Deus! – replicou Camille. – Agora, diz-me imediatamente em que confusão se meteu – Ralph resmungou algo, sem afastar o copo de gim da boca. – Ralph! – repreendeu-o ela, zangada.
– Está nas mãos do conde de Carlyle.
Camille deixou escapar um gemido de surpresa. Não esperava aquilo. E, apesar de ainda não conhecer a história, sentiu de antemão um profundo desalento.
Dizia-se que o conde de Carlyle era um monstro. Não só nas suas combinações com operários, criados e membros da alta sociedade, mas também no pleno sentido da palavra. Os falecidos pais, cuja riqueza era desmesurada, eram grandes eruditos, antiquários e arqueólogos. O seu ardor pelo Antigo Egito levara-os a passar grande parte da sua vida no Cairo. O seu filho único fora para Inglaterra a fim de receber uma educação adequada, porém, voltara a reunir-se com eles quando acabara os estudos. Depois, segundo os jornais, a família fora vítima de uma maldição mortal. Lorde e lady Stirling descobriram a sepultura de um antigo sacerdote, repleta de lindos artefactos. Entre eles estava uma vasilha que continha o coração da concubina predileta do sacerdote. A concubina era, aparentemente, uma bruxa. Naturalmente, ao levarem a vasilha, uma grave maldição caíra sobre a família.
Naquela época, o seu filho, o novo conde, estava com as tropas de Sua Majestade a debelar as revoltas na Índia. Quando soubera a notícia, lançara-se enlouquecido para o combate e conseguira dar a volta a uma batalha em que as tropas de Sua Majestade eram claramente superadas em número pelos seus oponentes. O conde conseguira a vitória, porém, sofrera ferimentos tão graves que ficara terrivelmente desfigurado. E dera continuidade a uma maldição familiar tão horrenda que, apesar da sua imensa fortuna, não conseguira encontrar uma esposa desde que se instalara em Londres.
Segundo os rumores, aquele homem era de uma mesquinhez extrema. Horrível no rosto e na figura, era tão retorcido, malvado e cruel como o coração que chegara ao castelo de Carlyle numa vasilha.
Dizia-se que aquela relíquia desaparecera e muitos achavam que o coração se fundira com o do perverso senhor do castelo. Aquele homem simplesmente odiava toda a gente. Vivia como um eremita na sua propriedade imensa e não hesitava em apresentar queixa contra aqueles que ousassem atravessar os limites das suas terras. Pelo menos, aqueles contra os quais não disparava.
Camille sabia tudo aquilo. Se não o tivesse lido nos jornais, de qualquer modo teria ouvido a história, sem dúvida deturpada, pois era sempre objeto de discussão na secção de Antiguidades Egípcias do museu. Não foi necessário que Ralph dissesse mais nenhuma palavra para que o seu coração se enchesse de receio.
Ficou paralisada e tentou serenar a sua voz ao perguntar a Ralph:
– Posso saber o que fez Tristan para despertar a raiva do conde de Carlyle?
Ralph bebeu um gole da sua bebida com um estremecimento, recostou-se na cadeira e olhou para Camille.
– Tinha pensado... Bom, tu sabes, parar uma carruagem que vinha do norte.
Camille susteve a respiração e olhou para ele com pasmo.
– Ia assaltar uma carruagem como um vulgar salteador? Poderiam disparar contra ele... Ou poderia ser enforcado!
Ralph mexeu-se, inquieto.
– Bom, na verdade, isso não poderia ter acontecido, porque não chegou tão longe.
Camille sentiu-se invadida de repente pelo desalento e pela tristeza. Agora tinha um emprego! Um emprego perfeitamente respeitável. Um trabalho que a satisfazia e que lhe proporcionava um salário decente. Podia sustentar-se a ela própria e também a Tristan e a Ralph, se não luxuosamente, pelo menos sem recorrer a argúcias criminosas.
– Rogo-te que me digas o que impediu que acabassem por vos matar aos dois, seus estúpidos! – exigiu.
Ralph voltou a mexer-se na cadeira.
– O castelo de Carlyle – disse, baixando os olhos.
– Continua! – gritou ela.
Ele bateu as pestanas enquanto dizia, à defesa:
– Tristan adora-te tanto, Camie, que só deseja encontrar um modo de te oferecer a posição que mereces.
Camille cravou o olhar nele. A cólera agitou-se no seu coração, mas dissipou-se em seguida. Não tinha sentido tentar explicar a Ralph que ela nunca faria parte da alta sociedade. Talvez o seu pai tivesse sido um nobre e talvez se tivesse casado com a sua mãe em segredo. O anel que a sua mãe usava no momento da morte testemunhava que ele a amara o suficiente para lhe comprar uma joia delicada.
As pessoas achavam que Camille era filha de um parente de Tristan, de um homem elevado à patente de cavaleiro pela sua valentia ao serviço de Sua Majestade no Sudão. No entanto, não era verdade. E nunca haveria para ela um casamento de alto nível, nenhuma temporada social, nem nada parecido. E, se ousasse sair do seu mundo, a verdade acabaria por ser descoberta.
E a verdade não era nada atraente. A sua mãe fora prostituta e morrera em Whitechapel. Sem dúvida, noutros tempos sonhara com uma vida melhor, porém apaixonara-se e acabara no East End de Londres, deserdada, sem um tostão e abandonada à sua sorte. Fosse quem fosse o pai de Camille, desaparecera muito antes de ela fazer nove anos. E Tess Jardinelle morrera nas mesmas ruas onde trabalhava. Se Tristan não tivesse aparecido naquele dia...
– Ralph – disse Camille, com um suspiro profundo, – explica-te, por favor.
– Os portões do castelo estavam entreabertos – disse ele, com simplicidade.
– Entreabertos? – perguntou ela.
– Bom... Estavam fechados. Mas há um buraco no muro e como Tristan é tão aventureiro...
– Aventureiro!
Ralph assustou-se, mas não mudou de adjetivo.
– Não havia cães e era quase de noite. Contam-se muitas histórias sobre os lobos que rondam pelo bosque de Carlyle, mas já conheces Tristan. Pensou que podíamos entrar.
– Entendo. Só para apreciar o jardim e o luar?
Ralph encolheu os ombros, incomodado.
– Está bem, está bem. Tristan pensava que podia haver alguma bagatela abandonada no jardim que talvez valesse uma fortuna se a vendêssemos às pessoas certas. Era só isso. Não tínhamos má intenção. Tristan achava que podíamos encontrar alguma coisa da qual o conde de Carlyle não sentisse a falta e que talvez nos desse muito dinheiro se a vendêssemos... como é devido.
– No mercado negro!
– Tristan quer o melhor para ti. E como aquele jovem do museu mostra tanto interesse...
Camille não teve outro remédio senão revirar os olhos. Ralph referia-se a sir Hunter MacDonald, assessor de lorde David Nimbou e diretor da secção de Antiguidades graças à sua experiência em escavações egípcias e, sem dúvida, também às grandes quantias que doava ao museu.
Hunter era um homem atraente. Na verdade, era muito bonito. E também fora elevado à patente de cavaleiro graças à sua passagem pelo Exército. Era alto, encantador, largo de costas e falava bem. Contudo, apesar de desfrutar da sua companhia, Camille mostrava-se precavida. Apesar do charme de Hunter, dos elogios contínuos e das tentativas de se aproximar dela, Camille nunca esquecia as circunstâncias do seu nascimento. Muitas vezes, imaginava a sua mãe, bonita e sozinha, a entregar a sua confiança a um homem como aquele contra toda a lógica.
Sabia que Hunter estava interessado nela, mas também sabia que a sua relação não tinha futuro. Tinha a certeza de que ela não era o tipo de mulher que um homem como Hunter levava a casa da mãe.
E ela só estava disposta a aceitar um compromisso verdadeiro. Não queria apaixonar-se loucamente, nem permitir que a paixão a fizesse perder a cabeça. E tencionava conservar o seu orgulho, a sua dignidade e a sua posição a todo o custo. Recusava-se sequer a considerar a ideia de perder o seu emprego no museu e, por isso, estava decidida a ter muito cuidado.
– Ralph, não estou interessada em nenhum homem que não me queira pelo que sou.
– Isso está muito bem, Camille. Mas vivemos num mundo em que só o pedigree e a riqueza importam.
Ela esteve prestes a resmungar.
– Um tutor com um longo historial de detenções não me dará pedigree, nem riqueza, Ralph.
– Oh, vá lá, por favor, Camille, garanto-te que não pensávamos fazer nada de mal... Houve muitos bandidos e salteadores que se tornaram famosos e que até se tornaram lendas por roubar aos ricos para dar aos pobres. O que se passa é que neste caso os pobres somos nós.
– Os bandidos e os salteadores acabaram enforcados com muita frequência – recordou-lhe ela, com um brilho no olhar. – Tentei explicar-vos muitas vezes, com a paciência de um santo, que roubar não é apenas mesquinho. Também é ilegal!
– Ai, Camille, menina! – exclamou Ralph, compungido, e fixou novamente os olhos na mesa. – Posso beber outro gim?
– É claro que não! – exclamou Camille. – Tens de te manter sóbrio e acabar de me contar a história para saber o que posso fazer! Onde está Tristan agora? Largaram-no diante de um juiz? O que raios vai fazer? Apanharam-no?
– Empurrou-me para as árvores e deixou-se apanhar – disse Ralph.
– Então, prenderam-no? – perguntou ela.
Ralph abanou a cabeça. Mordeu o lábio e disse:
– Está no castelo de Carlyle. Pelo menos, é o que acho. Vim o mais rápido possível.
– Oh, meu Deus! A estas horas, já o terão levado para a prisão! – exclamou Camille.
Para surpresa dela, Ralph abanou novamente a cabeça.
– Não. Ouvi o que a Besta disse.
– O quê?
– Estava lá. O conde de Carlyle estava lá, montado num corcel preto enorme, de aspeto diabólico. Era tão grande! E gritava aos seus homens que deviam deter o intruso e que...
– Que o quê?
– Que não podiam permitir que ele revelasse o que tinha visto.
Ela ficou a olhar para ele com perplexidade. O frio que sentira pouco antes no pescoço transformou-se de repente num calor que atravessava a sua carne.
– O que é que viram?
Ele abanou a cabeça.
– Nada! Na verdade, nada. Mas havia outros homens com Carlyle. E levaram Tristan para o castelo.
– Como sabes que era Carlyle? – perguntou ela.
Ralph tremeu.
– Pela máscara – disse em voz baixa.
– Tem uma máscara?
– Oh, sim! Aquele homem é um monstro. De certeza que já o ouviste dizer.
– Está aleijado, corcunda e, além disso, tem uma máscara?
– Não, não, é enorme. Bom, pelo menos, parecia muito alto na sua sela. E usa uma máscara. De couro, acho, mas com o focinho de um animal. De leão, talvez. Ou lobo. Ou dragão. É horrenda, é tudo o que sei. A sua voz é como um trovão, profunda... Como se realmente fosse amaldiçoado pelo diabo! Mas era ele. Claro que era ele! – ela olhou-o fixamente. Ralph abanou a cabeça. – Tristan vai estrangular-me se souber que se sacrificou para eu vir contar-te tudo, mas... Não podemos deixá-lo lá, mesmo que a polícia suspeite que é um ladrão...
Sim, isso seria preferível. Se, pelo menos, Tristan tivesse sido levado para Londres para enfrentar um julgamento, ela poderia pagar-lhe um advogado. Ou poderia apresentar-se diante de um magistrado e garantir que o seu tutor estava louco, que começava a envelhecer. Poderia... Só Deus sabia o que poderia ter feito...
Contudo, segundo Ralph, Tristan continuava no castelo de Carlyle, retido por um homem célebre pela sua crueldade desumana.
Camille levantou-se.
– O que vais fazer? – perguntou Ralph.
– O que queres que faça? – inquiriu ela, com um suspiro lento. – Vou ao castelo de Carlyle.
Ralph tremeu.
– Meti a pata na poça. Tristan não quer que fiques em perigo.
Camille sentiu uma pontada aguda de pena por Ralph, contudo, o que esperava o companheiro de aventuras de Tristan?
– Não estarei em perigo – garantiu-lhe, com um sorriso fraco. – Aprendi com ele a ser uma artista do disfarce, Ralph. Apresentar-me-ei como a imagem da ingenuidade e da candura, e devolver-me-ão o meu tutor. Vais ver.
Ele levantou-se velozmente.
– Não podes ir sozinha!
– Não tenciono fazê-lo – garantiu ela, secamente. – Primeiro, temos de ir a casa para eu trocar de roupa. E tu também.
– Eu?
– Sim, tu!
– Trocar de roupa?
– A aparência é tudo, Ralph – disse-lhe ela, sagazmente. Ele pareceu perplexo. – Não interessa. Vamos, acho que temos de nos despachar – de repente, ficou gelada e virou-se para ele. – Ralph, ninguém sabe disto, pois não? Ninguém sabe que Tristan está nas mãos do conde de Carlyle?
– Ninguém, além de mim. E de ti, claro.
Camille sentiu que uns dedos ossudos e frios se fechavam sobre o seu coração. Pelo amor de Deus, embora o considerassem uma besta, o conde de Carlyle não podia matar um homem de qualquer forma!
– Ralph, temos de nos despachar – disse e, agarrando-o pelo braço, arrastou-o para fora da taberna.
– O cavalheiro descansa tranquilamente – disse Evelyn Prior ao entrar na sala e deixou-se cair numa das poltronas grandes e macias que havia à frente da lareira.
Ao seu lado, sentado na outra poltrona, o dono do castelo olhava, pensativo, para o lume enquanto acariciava a cabeça enorme de Ayax, o seu pastor inglês.
Brian Stirling, o conde de Carlyle, olhou para Evelyn franzindo o sobrolho, envolvido nos seus pensamentos. Passado algum tempo, perguntou:
– Está gravemente ferido?
– Oh, eu diria que não. O médico disse que está apenas um pouco magoado e assustado, mas que não parece ter partido nenhum osso, apesar de ter feito alguns arranhões ao subir pela taipa e cair. Mas acho que dentro de alguns dias estará como novo.
– Não andará a rondar pela casa a meio da noite?
Evelyn sorriu.
– Céus, não. Corwin está de guarda no corredor. E, como bem sabes, a cripta está bem fechada. Só tu e eu temos as chaves das portas lá de baixo. Mesmo que saísse para dar uma volta, não encontraria nada. E, além disso, não sairá. Como tinha algumas dores, demos-lhe uma boa dose de láudano.
– Não sairá. Corwin encarregar-se-á disso – disse Brian, com firmeza. A quantidade de empregados do castelo de Carlyle era escassa, extremamente escassa na verdade, para a manutenção de uma casa tão grande. Contudo, todos os que lá trabalhavam eram verdadeiros amigos. E todos os homens e todas as mulheres eram extremamente leais, muito mais do que podiam sugerir as aparências.
– Tens razão, claro. Corwin é muito diligente – concordou Evelyn.
– O que achas que impulsionou aquele homem a fazer tal coisa? – perguntou Brian e, desviando o olhar das chamas, pousou-o novamente em Evelyn. – Os jardins são tão frondosos que formam uma verdadeira selva. É espantoso que se tenha arriscado a atravessá-los.
– E pensar em como estavam tão bem cuidados quando os teus pais eram vivos! – Evelyn suspirou.
– Um ano de chuva inglesa, minha querida, faz maravilhas – disse Brian. – Agora, temos uma selva e animais ferozes! Porque se terá arriscado?
– Pela promessa de grandes riquezas para roubar – disse ela.
– Tu não achas que ele trabalha para outros, pois não? – perguntou ele.
Ela levantou as mãos.
– Sinceramente? Acho que devia querer roubar alguma coisa de valor, mais nada. No entanto, poderá trabalhar para alguém, com a intenção de descobrir o que tu tens? Sim, é possível.
– Amanhã descobrirei a verdade – disse Brian. Sabia que o tom da sua voz causava calafrios. Não pretendia que fosse assim, porém, no que dizia respeito ao castelo de Carlyle e às suas atividades presentes, sentia uma certa ferocidade. Sabia que estava amargurado, contudo sentia-se com o direito de estar. Não tinha apenas de resolver os problemas do passado. Havia também o futuro.
Evelyn olhou para ele com ansiedade, alarmada pelo seu tom.
– Diz chamar-se Tristan Montgomery. E jura que agia sozinho, mas já o sabes porque estavas com Corwin e com Shelby quando o encontraram.
– Sim, sei. Também garante que caiu por acaso nos jardins do castelo. Não sei como alguém pode cair por acaso de uma muralha de três metros de altura. Dado que garante que não tinha má intenção, afirma naturalmente ser inocente de qualquer tentativa de conspiração. Shelby irá amanhã à cidade para ver o que consegue descobrir sobre ele. Naturalmente, continuará a ser nosso convidado até que descubramos as suas verdadeiras intenções.
– Queres que eu vá também para fazer algumas compras? – sugeriu Evelyn.
– Podes ir – disse Brian em voz baixa e deixou escapar um suspiro profundo. – E talvez seja hora de começar a aceitar alguns dos convites que me fizeram.
Evelyn desatou a rir-se.
– Já te disse muitas vezes que deves fazê-lo. Mas pensa no pavor que sentiriam as mamãs daquelas debutantes!
– Sim, é preciso tê-lo em conta.
– É uma pena que não tenhas uma noiva ou uma esposa que te faça companhia. E que demonstre que sobre esta casa não pesa nenhuma maldição e que tu não és uma besta, mas um homem ferido por uma grande tragédia familiar.
– Isso também é verdade – murmurou ele, olhando fixamente para ela enquanto pensava na sua resposta.
– Pelo amor de Deus, não olhes assim para mim! – exclamou Evelyn, rindo-se. – Sou demasiado velha, Excelência!
Ele viu-se obrigado a sorrir. Evelyn era uma mulher bonita. Os seus olhos verdes transbordavam inteligência e, apesar de ter quarenta anos, possuía um rosto de traços tão finos que sem dúvida conservaria a sua beleza até aos cem anos, se Deus lhe concedesse uma vida tão longa.
– Ah, Evelyn! Tu conheces a minha alma como nenhuma outra mulher conseguirá fazê-lo e, no entanto, tens razão – o seu semblante endureceu. – Mas, se conhecesse uma possível candidata a tornar-se a minha esposa, não a envolveria nesta farsa. Só Deus sabe que perigos teria de enfrentar...
– Tens razão nisso. Ninguém no seu juízo perfeito envolveria uma inocente nesta teia – murmurou Evelyn. – Não pode pôr-se em perigo uma rapariga.
– Sim, mas a minha mãe está morta, não é verdade? – inquiriu ele, com voz crispada.
– A tua mãe era uma mulher pouco comum e tu sabes isso. Tanto devido aos seus conhecimentos, como às suas aspirações e à sua coragem – disse Evelyn. – Não encontrarás outra mulher como ela.
– Não – concordou Brian. – E o facto de aqueles desalmados terem matado uma mulher transforma o meu coração em pedra, mas tenho a certeza de que teria seguido com isto com uma vontade idêntica se tivesse sido apenas o meu pai que tivesse morrido, assassinado de forma tão cruel – hesitou por um instante. – Ah, Evelyn, não me deixa feliz que tu estejas envolvida nisto...
Ela sorriu.
– Eu já estava metida nisto antes de tu estares – recordou-lhe suavemente. – E estou mais do que disposta a arriscar a minha vida e tudo o que tenho. Mas, mesmo assim, não acho que esteja em perigo. Eu não tenho os conhecimentos, nem o talento que tinha a tua mãe. E também não acho que uma jovem, um bonito troféu que pudesses exibir, estaria em perigo. Tu é que estás em perigo, se é que há algum perigo. Qualquer inimigo que tenhas sabe que não pararás até que os mortos possam descansar em paz.
– Eu sou o amaldiçoado – recordou-lhe ele.
– E acreditas nas maldições? – perguntou Evelyn, com alguma ironia.
– Depende do que se considere uma maldição. Acredito no inferno, sim. E as maldições podem ser levantadas? Sim, certamente. Mas antes tenho de encontrar a solução para este mistério – disse, com tom solene.
Evelyn abanou a cabeça.
– Vês? Uma jovem bonita que jure amar-te apesar do teu rosto e de tudo o que aconteceu no passado mudaria a aparência de Carlyle... Do castelo e do seu dono. Talvez haja alguém a quem possas... pagar.
– Estás a falar a sério? – perguntou ele.
– Sim. Acho sinceramente que o que precisas é de uma mulher bonita ao teu lado. Alguém que te acompanhe nos círculos da alta sociedade, alguém que demonstre que és humano.
– Com o que me custou ser o que sou! – exclamou ele.
– Sim e era necessário – replicou Evelyn. – Ninguém tinha entrado no castelo... até agora.
– Ninguém que nós saibamos – disse ele, com aspereza.
– Brian, está na hora de mudar de rumo.
– Não posso fazê-lo até que chegue ao fundo deste assunto.
– Talvez nunca chegues.
– Enganas-te. Chegarei.
Ela suspirou.
– Está bem, então considera-o de outro ponto de vista. Brian, fizeste tudo o que podias fazer a partir das sombras e continuarás a fazê-lo, mas acho sinceramente que está na altura de voltares a sair para o mundo. Convidaram-te para aquela festa de angariação de fundos no museu. Estás convencido de que estamos a lidar com membros do meio académico e é uma hipótese muito plausível. E quem melhor do que aqueles que partilhavam a paixão e o fascínio dos teus pais pelas maravilhas do mundo antigo? Tu mesmo me disseste que já reduziste a tua lista de suspeitos.
Sentindo o estado de espírito do seu dono, Ayax ganiu com nervosismo. Brian acariciou-o para o tranquilizar.
– Está tudo bem, rapaz – disse e voltou a concentrar a sua atenção em Evelyn. – Sim, procuramos alguém com um profundo conhecimento na matéria. Isso é óbvio. Mas também procuramos alguém capaz de assassinar com premeditação, utilizando as artimanhas obscuras que acabaram com a vida dos meus pais.
Evelyn ficou calada.
Brian aproximou-se da mesa que havia atrás das poltronas, serviu-se de um copo de brande, bebeu-o de um gole e voltou a olhar para Evelyn.
– Peço desculpa pelos meus modos – disse. – Apetece-te um brande, querida?
– Pois, na verdade, sim – respondeu ela, com um sorriso.
Brian serviu dois copos e, dando-lhe um, disse com aspereza:
– À noite. À escuridão e às trevas.
– Não, ao dia e à luz – disse ela, com firmeza. Brian fez uma careta. – Está na hora de dares uma volta à tua vida, já to disse – insistiu Evelyn. – Temos de te encontrar uma jovem bonita e agradável. Não muito rica, nem muito nobre. Isso seria absurdo, tendo em conta... Enfim, com a tua reputação, ninguém acreditaria. Mas tem de ter as circunstâncias adequadas. Temos de encontrar a pessoa idónea. Tem de ser bastante jovem, bonita, compassiva e também de possuir algum encanto. Com a mulher certa ao teu lado, poderás prosseguir com as tuas indagações sem teres de te preocupar com mães desesperadas dispostas a entregar as suas filhas em sacrifício à Besta só para conseguirem a fortuna dos Carlyle.
– E onde encontro essa encantadora beldade? – perguntou ele, com um sorriso. – Tem de ter alguma inteligência... e o encanto de que tu falas. Senão, tê-la ao meu lado não servirá de nada. Seria absurdo percorrer as ruas para encontrar uma mulher assim. Garanto-te que não encontraríamos uma beldade doce e bem-falante. Portanto, por esse lado há poucas esperanças. E é muito improvável que a candidata perfeita venha bater à minha porta.
Naquele preciso instante, alguém bateu com força à porta da sala.
Shelby, com o seu uniforme de lacaio, um tanto extravagante, mas sem dúvida imponente num homem da sua estatura e com a sua força física, abriu a porta. Parecia perplexo.
– Há uma jovem que pergunta pelo senhor, lorde Brian.
– Uma jovem? – repetiu Brian, franzindo o sobrolho.
Shelby assentiu.
– Sim, uma jovem muito bonita que está lá em baixo, no portão.
– Uma jovem! – exclamou Evelyn, olhando fixamente para Brian.
– Sim, sim, já percebemos essa parte – disse Brian. – Como se chama? O que quer?
– O que importa isso? – perguntou Evelyn. – Tens de a convidar a entrar e descobrir o que quer.
– Claro que importa, Evelyn. Talvez venha a mando de alguém – replicou Brian.
Evelyn agitou uma mão no ar.
– Diz-lhe que entre, Shelby. Imediatamente. Oh, Brian, por favor! Não podes ser sempre tão desconfiado – ele arqueou o sobrolho. – Brian, por favor! Não temos visitas há... Anos! – concluiu, acalorada. – Podia servir-vos um jantar delicioso. Que bom!
– Sim, que bom – disse Brian secamente e levantou as mãos. – Shelby, deixa essa jovem entrar – olhou para Evelyn, – já que veio bater à nossa porta.
Camille sempre fora muito precavida, tanto em relação ao transporte, como à sua aparência. Ralph estava bem arranjado com um dos fatos de Tristan e um chapéu que lhe dava um aspeto limpo e digno, embora continuasse a parecer um criado.
Lamentava, certamente, o dinheiro que investira para pagar o carro que os levara até tão longe da cidade, porém, o motorista apressou-se a garantir que estava disposto a esperar para os levar de volta a Londres. De modo que ali estava, diante das paredes imponentes do castelo de Carlyle, a olhar para o portão maciço de ferro que impedia a sua passagem.
– Pensavam seriamente que conseguiam escalar este muro? – perguntou a Ralph.
Ele encolheu os ombros, pesaroso.
– Bom, um pouco mais à frente há uma zona onde a pedra está em mau estado. Foi bastante fácil encontrar um sítio onde apoiar o pé e depois... Bom, eu levantei Tristan e ele puxou-me. A verdade é que podia ter partido algum osso, porque tive de fugir e um cão enorme perseguia-me. Agora que penso nisso, talvez fosse um lobo... mas não interessa. O que interessa é que fugi e juro que não me viram.
Ralph corou, consciente de que Camille não achara nenhuma graça à sua história.
Ela já puxara a corda grossa que, presumivelmente, tocava uma campainha em alguma parte do castelo.
– Tristan está ali dentro – murmurou.
– Camie, juro-te que não queria abandoná-lo! – exclamou Ralph. – Mas não sabia o que fazer, além de ir ter contigo.
– Eu sei que não querias abandoná-lo – disse ela em voz baixa e acrescentou: – Chiu! Vem aí alguém.
Ouviram os cascos de um cavalo no solo e, um instante depois, apareceu um homem atrás do portão montado num animal enorme. Quando desmontou, Camille compreendeu que o cavalo era realmente grande, pois aquele homem era um verdadeiro gigante. Media muito mais de um metro e oitenta e os seus ombros pareciam ter a largura de uma porta. Musculado e tenso, aproximou-se do portão.
– Sim?
– Boa noite – disse Camille, assustada com a envergadura e o ar ameaçador daquele homem. – Rogo-lhe que me desculpe por incomodar a estas horas e sem avisar. É muito importante que veja o senhor da casa, o conde de Carlyle, por causa de um assunto da maior urgência.
Tinha esperado perguntas, porém não recebeu nenhuma. O homem olhou fixamente para ela, evidenciando umas sobrancelhas escuras e espessas, e em seguida deu meia volta.
– Desculpe! – gritou ela.
– Verei se o senhor pode recebê-la – disse ele, por cima do ombro e, montando o cavalo enorme, desapareceu pelo caminho que levava ao castelo.
– Não quererá receber-nos – disse Ralph, com pessimismo.
– Tem de o fazer. Não sairei daqui até que o veja – garantiu-lhe Camille.
– Muitos homens ficariam inquietos ao saber que uma dama se apresentava à sua porta a meio da noite. Mas estamos a falar da Besta de Carlyle – recordou-lhe Ralph.
– Ele vai receber-me – insistiu Camille e começou a andar de um lado para o outro à frente do portão.
– Não vem ninguém – disse Ralph, cada vez mais nervoso.
– Não tenciono sair daqui sem Tristan, Ralph. Se não aparecer alguém em breve, tocarei a campainha até que fiquem loucos – disse Camille e ficou imóvel, de braços cruzados.
Ralph começou a passear.
– Não vem ninguém – repetiu.
– O castelo fica um pouco longe, Ralph. O homem tem de chegar lá, procurar o seu amo e voltar.
– Parece-me que hoje vamos dormir aqui – resmungou ele.
– Bom, tu sabes como entrar no terreno – recordou-lhe ela.
– Pois, podíamos começar agora mesmo.
– É melhor esperar – disse ela, com firmeza, apesar de começar a recear que Ralph tivesse razão, que a deixariam ali à espera sem lhe dar nenhuma resposta. Mas, então, justamente quando começava a desesperar, ouviu novamente os cascos de um cavalo e o ruído de umas rodas.
Uma pequena carruagem com capota de couro apareceu guiada pelo gigante. Ele saiu e aproximou-se do portão, usou uma chave grande para abrir o cadeado que o fechava e abriu-o.
– Se tiverem a bondade de me acompanhar... – disse educadamente, apesar da severidade da sua voz.
Camille sorriu a Ralph e seguiu o lacaio. O gigante ajudou-a a subir para o assento traseiro da carruagem. Ralph entrou atrás dela.
A pequena carruagem conduziu-os por um longo e sinuoso caminho que a escuridão tornava profundo e interminável. Camille tinha a certeza de que à luz do dia teriam visto o bosque frondoso que o rodeava. O senhor de Carlyle gostava de viver encerrado, ao ponto de que as suas terras pareciam deixadas às mãos de Deus. Enquanto avançavam, Camille pensou que o bosque respirava, que era, com efeito, um ser poderoso, pronto para engolir quem se aventurasse a entrar nele.
– Era aqui que pensavam encontrar algum tesouro? – sussurrou a Ralph.
– Ainda não viste o castelo – respondeu ele em voz baixa.
– São loucos! Devia deixar Tristan aqui – murmurou. – Isto é o mais absurdo que alguma vez ouvi.
Então, o castelo surgiu à sua frente como um mastodonte. O edifício tinha um fosso sobre o qual havia uma grande ponte levadiça, agora permanentemente descida, supôs Camille, pois era muito improvável que algum exército rondasse o local.
Camille olhou para Ralph, sentindo-se mais zangada e angustiada à medida que se aproximavam. O que tinha passado pela cabeça daqueles dois?
A carruagem passou pela ponte. Entraram num pátio grande e Camille viu o que Tristan já devia saber com antecedência: o pátio estava repleto de antiguidades, estátuas imponentes e obras de arte. Junto da taipa exterior havia uma fila de sarcófagos, enquanto outros tesouros ladeavam o caminho que conduzia à porta. Saltava à vista que o castelo tinha sofrido algumas remodelações para ser adaptado aos gostos do século XIX.
Camille continuou a observar o pátio enquanto o gigante a ajudava a sair da carruagem. Aquelas antiguidades deveriam estar num museu, pensou, indignada, apesar de ter consciência de que muitas coisas que ela considerava bonitas não passavam de objetos vulgares e banais para os viajantes ricos, para quem percorrer o mundo era o seu ofício. Chegara a ouvir dizer que no Egito as múmias eram tão abundantes que se vendiam com frequência para alimentar as lareiras. Ali, no entanto, havia um sem-fim de exemplos espantosos de arte egípcia: duas íbis gigantes, algumas estátuas de Ísis e algumas esculturas que, sem dúvida, representavam faraós menores.
– Sigam-me – disse o gigante.
Seguiram-no até à porta. Esta dava para um vestíbulo circular.
– Se me permitem... – o lacaio pegou na capa de Camille, contudo, Ralph agarrou-se com decisão à sua capa. O gigante encolheu os ombros. – Por aqui.
Atravessaram uma segunda porta que conduzia a uma antecâmara impressionante, inteiramente restaurada. Na verdade, era uma sala muito elegante. A escada de pedra elevava-se numa curva até ao andar superior e os seus degraus estavam cobertos por uma carpete azul-marinho.
O lume crepitava numa lareira enorme. As poltronas que a circundavam eram de couro castanho-escuro, mas não eram muito austeras, eram macias e confortáveis.
– Tu, espera aqui – disse o lacaio a Ralph. – A menina, venha comigo – acrescentou, dirigindo-se a Camille.
Ralph olhou para ela como um cãozinho assustado. Ela inclinou a cabeça para o tranquilizar e seguiu o lacaio pelas escadas sinuosas.
O gigante conduziu-a a uma sala onde havia uma secretária grande e inúmeras estantes repletas de livros. Camille sentiu um aperto no coração ao vê-los. Havia imensos. Uma das paredes estava cheia de volumes dedicados ao seu tema predileto. Um livro intitulado O Antigo Egito estava ao lado de outro com o título Itinerário de Alexandre Magno.
– O senhor virá daqui a pouco – disse o lacaio gigantesco e fechou a porta ao sair.
Quando ficou sozinha na biblioteca espaçosa, Camille tomou consciência do silêncio repentino. Depois, a pouco e pouco, foi ouvindo leves ruídos noturnos que provinham do exterior. Ao longe, ouviu-se o uivo choroso e arrepiante de um lobo. Depois, como se quisesse dissipar aquele calafrio, ouviu-se o crepitar do lume que ardia alegremente na lareira.
Sobre uma mesinha castanha havia uma garrafa de brande rodeada de copos delicados. Camille sentiu a tentação de pegar na garrafa elegante de vidro e beber o brande até que não restasse nem uma gota.
Quando se virou, reparou num belo quadro grande que havia atrás da secretária enorme. A mulher representada estava vestida com roupas de uma década atrás. Tinha o cabelo claro e bonito, e um sorriso que irradiava luz. Os seus olhos, de um azul intenso, quase como safiras, constituíam o elemento mais atraente do quadro. Fascinada, Camille aproximou-se dele.
– A minha mãe, lady Abigail Carlyle – disse uma voz profunda e masculina, embora um pouco áspera e ameaçadora.
Virou-se, assustada, pois não o ouvira a abrir a porta, e proferiu um gemido de surpresa, já que a cara do homem que acabava de entrar no quarto era a de uma besta.