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Editado por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2006 Heather Graham Pozzessere

© 2014 Harlequin Ibérica, S.A.

Ladrão de corações, n.º 206 - Junho 2014

Título original: Beguiled

Publicada originalmente por HQN™ Books

Publicado em português em 2010

 

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), feitos ou situações são pura coincidência.

® Harlequin, Harlequin Internacional e logótipo Harlequin são marcas registadas propriedades de Harlequin Enterprises Limited.

® e ™ são marcas registadas por Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas em que aparece ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

Imagem de portada utilizada com a permissão de Harlequin Enterprises Limited. Todos os direitos estão reservados.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-5210-5

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

 

 

Para Linda Haywood, Alice Dean e Paula Mayeaux... e pelo pequeno-almoço em Carnival Pride.

Prólogo

 

Que Deus não salve a rainha!

As palavras eram, com efeito, mais poderosas do que as guerras.

Giles Brandon sentia o seu poder enquanto trabalhava em silêncio. E, graças a Deus, estava a chegar ao fim.

Giles tirou o rascunho definitivo do seu artigo da máquina de escrever com um sorriso satisfeito nos lábios. Podia dizer-se que sorria com jactância, pensou, contudo, aquele era o melhor artigo que alguma vez escrevera... e o mais revolucionário.

Deixou o papel sobre a mesa, recostou-se na cadeira e cruzou as mãos sobre o peito por um instante enquanto desfrutava do seu sucesso e daquele instante de silêncio que lhe permitia saborear o seu próprio talento. A sua casa de Londres era uma das poucas que estavam afastadas do agitação da rua, portanto não tinha de suportar os barulhos das pessoas ocupadas nos seus afazeres, o eco dos cascos dos cavalos sobre o pavimento ou o barulho contínuo e as buzinadelas odiosas dos automóveis, cada vez mais populares entre as classes ricas... Cortinas grossas de damasco cobriam as janelas para que a sensação de isolamento fosse maior. Não ouvia barulho nenhum da rua.

– Sim – disse em voz alta, – as palavras são, efectivamente, uma arma letal.

Naturalmente, não havia ninguém que pudesse responder. Enviara a sua mulher para casa da sua cunhada. Um talento como o seu exigia total concentração. Também dera a noite à governanta velha e enxuta. Naquele momento, estava no seu elemento. Sozinho.

Desatou a rir-se e falou novamente em voz alta.

– Só com os meus companheiros predilectos, a inteligência, a astúcia... e eu próprio – pegou com reverência na folha de papel dactilografada surgida da sua criatividade brilhante. – Isto deixará as pessoas furiosas – ele riu-se. Não sabia se queria estar no meio de semelhante alvoroço, contudo, gostava da ideia de o provocar. Tinham gozado com ele muitas vezes e o seu nome deixara de aparecer em listas de convidados em que merecia estar. Portanto, os poderosos teriam de pagar.

Leu o título do artigo com uma entoação dramática.

– «A monarquia recorreu ao assassinato a sangue frio?»

Sim, haveria um tumulto nas ruas. As suspeitas tinham começado a fermentar. Porém, era natural. Tinham sido os que advogavam o fim da monarquia que tinham encontrado um final triste. Se não tivesse tão boas maneiras, Giles teria esfregado as mãos, alegre.

Recostou-se na cadeira e olhou à sua volta, desfrutando de tudo o que conseguira. Aquela casa maravilhosa, que, naturalmente, procedia da família da sua esposa, contudo, isso carecia de importância, a sua secretária de madeira de cerejeira, o seu candeeiro Tiffany, o seu tapete bonito e macio, procedente do Médio Oriente... Sim, as coisas estavam a correr bem e tudo graças ao brilhantismo da sua escrita.

O artigo sairia no dia seguinte. E a meio da tarde...

– Meu Deus, sou – apesar do seu domínio da língua, não lhe ocorreu outra palavra, – brilhante!

Ouviu, de repente, umas pancadinhas atrás dele e levou a mão ao coração, assustado. Virou-se bruscamente, cheio de espanto. Estava há horas sozinho, portanto quem...?

Ao fundo da divisão, num canto, havia uma figura que batia palmas sem entusiasmo, mas lenta e ritmicamente, com ar... brincalhão.

– O senhor! – exclamou Giles e a raiva apareceu nos seus olhos. Olhou para a porta do seu escritório. Permanecia fechada, como a deixara. A casa estava fechada, tinha a certeza. A governanta sabia que a despediria se saísse sem trancar tudo. Portanto...

– Brilhante, Giles, oh, sim, simplesmente brilhante – disse o intruso.

– O que faz aqui? Como entrou?

O visitante encolheu os ombros e aproximou-se da luz do candeeiro da secretária. Embora Giles conseguisse vê-lo claramente e soubesse que não tinha nenhuma arma à vista, sentiu uma súbita pontada de terror. Era impossível que alguém tivesse entrado em casa. Era impossível que estivessem a sós num vasto mundo de sombras. Giles não conseguia ouvir o mundo dentro do seu refúgio. Nem o mundo conseguia ouvi-lo a ele.

– Eu sirvo este país e faço-o bem – replicou Giles.

– Só se serve a si e é um ególatra – respondeu a figura. Um sorriso irónico apareceu nos seus lábios cruéis. – Porém, está prestes a fazer um serviço muito mais importante. Afinal de contas, como o senhor escreveu, todos devemos estar dispostos a sacrificar-nos.

Os olhos de Giles Brandon esbugalharam-se. Vira a arma.

– Não! – gritou.

– Vai servir o seu país e prometo que a sua necrologia será... brilhante.

«Luta!», disse Giles para si. Era um homem corpulento. Porém, infelizmente, não era ágil.

Mal percebeu quando as suas fracas tentativas de se defender se viram derrotadas. Nem sequer sentiu a dor. Ouviu, no entanto, o seu grito horrível.

Os pensamentos desfilavam pela sua cabeça enlouquecidamente. As palavras eram poderosas. Porém, uma faca bem afiada nas mãos de um louco...

Sentiu o calor do seu próprio sangue derramado. A escuridão que circundava a luz que, como um pequeno refúgio, rodeava a sua secretária, começou a fechar-se. E depois...

Agarrou o papel que estava sobre a sua mesa. O seu artigo. Brilhante. Oh, sim, era um homem brilhante. As suas mãos agitaram-se e os seus dedos tremeram. Tocou no papel.

Sentiu que o seu grito perdia força... «Grita!», ordenou à sua boca, mas o seu corpo desobedecia. Um gemido horrível escapou da sua garganta. Contudo, aquele som também não se ouviu para além das paredes do seu escritório, isolado para que o bulício da humanidade não perturbasse uma mente como a dele.

A vida continuava igual lá fora, o eco dos cascos dos cavalos sobre o pavimento, a buzina de um automóvel, a música de um restaurante, o relincho de um cavalo... E por trás das cortinas grossas, no escritório afastado da rua, tudo ficou finalmente em silêncio.

O sangue de Giles Brandon manchou o fino tapete oriental. Giles olhava com olhos cegos. Ouviu como o batimento do seu coração desacelerava e, depois, não houve mais nada.

Morreu no meio do silêncio que tanto desejava e a última coisa em que pensou foi que, apesar de tudo, era muito poderoso: as palavras eram poderosas. Porém, a carne era fraca e a faca, afiada.

Um

 

– Abaixo a monarquia!

Ally Grayson ouviu os gritos quando a carruagem desacelerou. Passavam pela maior rua da vila de Sutton e Ally já desconfiara antes de se aproximar da população que poderia haver problemas. Entristecida com o ânimo que reinava no país e, ao mesmo tempo, cheia de curiosidade, afastou a cortina da janela da carruagem.

As pessoas mexiam-se, iradas, com cartazes em que se lia: Acabemos com o reinado dos Ladrões! ou Assassinato real! Algumas caminhavam pela rua em silêncio, outras gritavam enfurecidas à frente do edifício de tijolo vermelho que albergava o escritório do magistrado local. Havia quem olhasse com raiva para a carruagem, porém, ninguém se aproximou dela. Ally ia visitar o seu padrinho, Brian Stirling, conde de Carlyle, um personagem amado e admirado apesar de ser um defensor fervoroso da rainha Victoria. Ninguém se atreveria a levantar um dedo contra ele, contra os seus bens ou contra as pessoas que estavam sob a sua protecção e aquela carruagem tornava Ally numa delas. Mesmo assim, nas ruas reinava uma tensão horrenda.

Ally viu várias pessoas que conhecia. Junto de uma das casas Tudor tão comuns na região, viu o jornalista Thane Grier, que observava tudo com avidez sem participar nos acontecimentos. Ally entreteve-se a observá-lo. Era um homem alto e atraente, ansioso por melhorar a sua posição social e obter reconhecimento como escritor. Ally não sabia o que pensava daquele assunto, nem se lhe dava alguma importância. Depois de ter lido muitos dos seus artigos, tinha a impressão de que fazia um relato objectivo dos factos. Grier queria ser conhecido pela sua visão aguda e pela sua avaliação ponderada dos factos.

– Vá lá! – gritou o magistrado, ao sair do seu escritório. – Já chega de tolices! Voltem para as vossas funções! – gritou. – Meu Deus, ao que chegámos? O que isto? Um circo?

Ally tinha a certeza de que o magistrado, sir Angus Cunningham, tinha autoridade para sossegar a multidão. Era um herói de guerra que fora tornado nobre devido aos seus serviços na Índia. Era um homem corpulento, alto, de costas largas e provido de um cabelo branco como a neve e de um bigode distinto. Porém, apesar das suas palavras, ouviram-se alguns protestos.

– Assassinato! – gritou uma mulher. – Dois homens assassinados! E ambos tinham falado contra os excessos da corte de Sua Majestade! É necessário protestar contra uma rainha que perdoa... Não, que ordena actos tão horrendos.

Ally não conseguia ver a cara da mulher. Estava vestida de preto e tinha um véu. Vestia o traje de uma viúva. Ally reconheceu a senhora que estava junto dela e que tentava fazê-la calar-se. Era Elizabeth Harrington Prine, viúva de Jack Prine, um soldado valente que morrera na África do Sul. Graças ao seu marido, possuía muitos hectares de terra a oeste do bosque que rodeava a vila.

– Assassinato! – gritou a mulher de preto.

Sir Angus não teve oportunidade de responder. Junto dos degraus do edifício apareceu o idoso lorde Lionel Wittburg. Era mais alto e mais enxuto e o seu cabelo era grisalho. A sua reputação datava quase dos inícios do reinado de Victoria e o país sempre o amara como um soldado leal. Lorde Wittburg pronunciou as palavras que ecoavam na mente de Ally:

– Como se atrevem?

Contudo, apesar de falar com brio, Ally sentiu que estava prestes a começar a chorar e sabia porquê. Hudson Porter, um homem com que tinha pouco em comum, mas que era um querido colega da sua época na Índia, fora um dos antimonárquicos assassinados recentemente.

Um terceiro homem juntou-se a eles. Era muito mais jovem e atraente, um cavalheiro que se via com frequência nas páginas de sociedade dos jornais: um homem que possuía a habilidade de deslumbrar os que o rodeavam.

– Por favor, este não é um comportamento próprio de ingleses honrados. E das suas mulheres – acrescentou. – Isto não faz sentido, é desnecessário – era sir Andrew Harrington, primo da viúva que tentava consolar a mulher de preto. Ally sabia que Hudson Porter não era casado, portanto aquela mulher não podia ser a sua viúva. Uma irmã, uma prima... Uma amante talvez? O outro activista assassinado, Dirk Dunswoody, tinha pelo menos oitenta anos no momento da sua morte e, durante todo esse tempo, permanecera solteiro, dedicado ao estudo das leis e da Medicina e viajando com frequência para o estrangeiro com o exército da rainha. Ninguém sabia porque se tornara tão violentamente antimonárquico, a não ser que se tivesse sentido ofendido por não ter sido tornado nobre. Ally sabia que um escândalo estranho se associava ao seu nome e que, por causa dele, Dunswoody fora ignorado.

– Por favor, por favor, voltem para os vossos afazeres. Aqui não resolveremos nada e todos vocês sabem – disse sir Angus, dirigindo-se à multidão.

Havia murmúrios constantes e também movimento. A multidão parecia estar a dispersar e Shelby, o motorista, assistente e homem para tudo de lorde Stirling, conseguiu conduzir a carruagem através das ruas. Enquanto abria caminho com cuidado, Ally viu que Thane Grier, ainda calado e afastado, tomava notas num bloco que tirara do bolso do seu colete.

Ally deixou cair a cortina quando saíram da praça da vila e seguiram o caminho que atravessava o bosque. Ao princípio, não reparou que a carruagem começava a ganhar velocidade. Estava preocupada com o estado do país e com a sua própria situação. Não conseguia evitar perguntar-se pelo aviso que a levava ao castelo. Sem dúvida, tinha alguma coisa a ver com a proximidade do seu aniversário. Embora se considerasse uma mulher adulta desde há algum tempo, os seus tutores tinham querido protegê-la do mundo e, aos seus olhos, só seria finalmente uma adulta no dia do seu aniversário. Amava os que a tinham criado e preocupado com ela, contudo, estava ansiosa por tomar as rédeas da sua vida. Embora tivesse crescido protegida de tudo, interessava-se vivamente por livros e jornais e saboreara cada um dos seus passeios à cidade, um mundo repleto de teatros e museus. Considerava-se, obviamente, inteligente e culta, embora tivesse adquirido a maior parte da sua cultura numa pequena escola rural ou através de preceptores privados enviados ao seu lar humilde no interior do bosque.

Conseguira vislumbrar o mundo real e, embora tivesse crescido ao cuidado das suas três «tias», também tivera três casais como padrinhos. Mal conseguia acreditar que tivesse tanta sorte. Fora criada por três mulheres maravilhosas e, para cúmulo, três dos casais mais importantes do reino tinham-se certificado de que recebia a melhor educação e de que tinha o que precisava. Estas três últimas damas, Maggie, Kat e Camille, eram espantosas, únicas e, nos seus tempos, tinham sido verdadeiros demónios. Ally alegrava-se por terem um passado rebelde, porque, se se zangassem quando descobrissem que tencionava tomar as rédeas do seu futuro, poderia recordar-lhes que elas também eram mulheres modernas. Lady Maggie desafiara todos os convencionalismos sociais ao ajudar as prostitutas de East End, Camille conhecera o seu marido graças ao seu trabalho no departamento de Egiptologia do museu e Kat participara em várias expedições às pirâmides do Egipto e até mesmo ao Vale dos Reis. Dificilmente podiam esperar que ela fosse dócil e obediente e não quisesse abrir caminho no mundo.

Enquanto Ally reflectia, a carruagem começou a ir mais depressa. Ally viu-se sacudida de um lado para o outro e afastou finalmente as suas meditações. Tentou manter-se sentada e agarrou-se com todas as suas forças. Não estava assustada, só surpreendida.

Shelby teria medo de que as pessoas que enchiam a praça da vila fossem atrás deles? Era impossível. Sem dúvida, ele sabia que os agricultores assustados e os lojistas rurais não eram uma ameaça. Sobretudo, havendo ali três homens tão ilustres como sir Harrington, sir Cunningham e lorde Wittburg para acalmarem os espíritos.

Então, porque conduzia como um louco? Ally franziu o sobrolho, tentou manter o equilíbrio e percebeu que as mortes que tinham provocado medo e nervosismo na vila eram, decididamente, aterradoras. Dois homens assassinados, dois personagens públicos cujos pontos de vista se opunham à Coroa e que tinham pressionado o fim da monarquia. Aquelas mortes eram terríveis e os tempos eram, em geral, difíceis. A pobre rainha Victoria era uma idosa entristecida, o príncipe Eduardo acumulava cada vez mais responsabilidades e existia a ameaça de uma nova guerra na África do Sul. O povo, naturalmente, estava inquieto. Para muitos, a pobreza e a ignorância suplantavam o progresso que o campo da educação e da Medicina tivera durante o reinado de Victoria. Os trabalhadores estavam protegidos como nunca antes tinham estado. Havia quem protestasse contra a pensão concedida à Casa Real e quem pensasse que o trabalho da família real não justificava o dinheiro que se gastava na manutenção das suas muitas propriedades e do seu modo luxuoso de vida. Inglaterra tinha um primeiro-ministro e um parlamento e muitos achavam que isso bastava.

Uma roda da carruagem passou por um buraco e Ally quase bateu com a cabeça. O que se passava? Shelby não era dos que se assustavam facilmente. Não se deixaria atemorizar por um punhado de agricultores. Claro que não eram os causadores da tremenda inquietação que reinava nas ruas e na imprensa. O nervosismo podia atribuir-se aos que tentavam inflamar os espíritos da multidão fazendo as pessoas acreditar que a monarquia estava por trás dos assassinatos dos políticos que se opunham a ela. Havia demasiadas pessoas dispostas a acreditar que a Coroa estava secretamente por trás daquelas mortes.

Ally sabia pelos seus estudos que a existência de antimonárquicos não era um fenómeno inovador na política inglesa e até compreendia, até certo ponto pelo menos, que aquele movimento tivesse voltado a ocupar o primeiro plano da actualidade. Apesar do empenho da rainha Victoria em devolver a abstinência e a bondade à Coroa, os seus filhos, incluindo o seu herdeiro, comportavam-se escandalosamente. Nos tempos de Jack, o Estripador, circulava a teoria de que o assassino era o seu neto, o príncipe Alberto Victor. Depois, uma facção muito ruidosa de antimonárquicos não hesitara em dar um passo em frente. Os últimos assassinatos, que muitos consideravam uma tentativa da monarquia de acabar com aquela facção, tinham causado tal febre política que alguns dos políticos mais sensatos do país percebiam a necessidade de chegarem a compromissos e de temperarem os ânimos ou haveria uma guerra civil.

Ally não conhecia a rainha, porém, a julgar pelo que vira e ouvira, não conseguia acreditar que a mulher que levara o seu império a tais topos de progresso e que continuava a chorar o seu marido, morto há décadas, pudesse ser culpada de semelhante horror.

Porém, apesar do seu conhecimento de História e Política, ignorava porque é que a carruagem ia tão depressa. De repente, com uma abanadela, a carruagem começou a diminuir a velocidade. Sem dúvida, pensou Ally, aquilo não tinha nada a ver com a agitação causada porque dois homens, dois políticos e escritores que tinham caluniado violentamente a rainha, tinham sido degolados. Nem com o nervosismo das pessoas que protestavam nas ruas com cartazes contra a rainha e o príncipe Eduardo. Não, a causa daquilo tinha de ser outra completamente diferente e se fosse assim...

Se fosse assim, Ally sabia a resposta.

Mexiam-se mais devagar. Os cavalos tinham parado de galopar. Ally ouviu um tiro e ficou paralisada. Ouviram-se gritos próximos. Depois, ouviu que Shelby praguejava.

– Pare a carruagem! – gritou, num tom profundo e autoritário.

Nervosa e consciente de que ainda estavam longe do castelo, Ally inclinou-se para a janela, afastou a cortina e espreitou. Os seus olhos esbugalharam-se, cheios de surpresa, e uma pontada de medo atravessou o seu corpo. Tinha razão.

Junto da carruagem havia um homem montado sobre um grande cavalo preto, vestido com uma capa da mesma cor, um chapéu e uma máscara. Atrás dele mexiam-se, inquietos, outros cavaleiros. O salteador de caminhos!

Ally nunca sonhara que pudesse acontecer tal coisa. Como leitora devota de vários jornais, lera sobre aquele homem e os seus sequazes. Numa época em que havia cada vez mais automóveis, um bandido a cavalo ameaçava os caminhos.

Aquele homem não matara ninguém, recordou-se Ally. Na verdade, havia quem o comparasse com o Robin dos Bosques. Ninguém parecia saber que pobres ajudava, ainda que, pouco depois do sequestro do conde de Warren, algumas igrejas de East End tivessem recebido repentinamente grandes somas de dinheiro para vestirem e alimentarem os seus paroquianos.

Aquele bandido passara vários meses a parar carruagens e roubara várias coisas, objectos com valor sentimental que tinham voltado misteriosamente para as mãos dos seus donos. Era um ladrão, mas não um assassino. Na verdade, as suas façanhas tinham começado pouco depois do primeiro assassinato. Como se o país não tivesse motivos suficientes de preocupação.

As rodas pararam. Ally ouviu o relincho de protesto dos cavalos. Depois, ouviu o motorista.

– Não fará nada à menina. Antes, terá de me matar a mim.

O bom Shelby. O seu campeão e o seu guardião desde que se lembrava. Defendê-la-ia até ao seu último fôlego.

Graças a ele, Ally ganhou coragem. Abriu a porta da carruagem e gritou:

– Shelby, não vamos arriscar a vida de ninguém por causa deste ladrão e dos seus compinchas. Dar-lhe-emos o que quiser e seguiremos o nosso caminho.

O bandido puxou das rédeas do seu cavalo preto e desmontou. Os seus cúmplices continuaram sentados sobre os seus cavalos.

– Quem mais há na carruagem? – perguntou ele.

– Ninguém – respondeu Ally.

Ele não acreditou. Aproximou-se da porta aberta. Pousou as mãos sobre a sua cintura, levantou-a sem cerimónias e pô-la no chão. Pelos vistos, achava que devia haver algum compartimento escondido, pois desapareceu dentro da carruagem para depois voltar a sair.

– Quem é a menina e o que faz a viajar sozinha? – perguntou, com aspereza. Uma máscara preta cobria a sua cara. Tinha o cabelo preto, preso para trás num rabo-de-cavalo.

Ally tremeu ao princípio, contudo, não estava disposta a deixar-se acovardar. Se aquele homem decidisse mudar de método e matá-la, fá-lo-ia de qualquer modo. No entanto, ela não se renderia sem lutar. Não se deixaria humilhar. Aquele homem era um ladrão, um bandido, um descarado.

– O senhor não é ninguém – declarou, – e não vejo razão para lhe explicar os meus planos de viagem.

– Menina! – protestou Shelby, angustiado por ela.

O bandido fez um gesto com a cabeça para um dos seus homens, também mascarado, que se aproximou de Shelby enquanto o motorista tentava agarrar a sua pistola.

– Não o faça – avisou o bandido, suavemente. – Não lhe faremos nenhum mal. Nem a si, nem à rapariga.

Ally perguntou-se se seria a palavra «rapariga» nos lábios de um homem que ignorava os seus êxitos que a irritava e lhe dava coragem. Era sempre desdenhada como «a rapariga». Todos faziam o que consideravam melhor para ela. Os seus êxitos eram aplaudidos, porém, o seu futuro não parecia pertencer-lhe. Graças à sua educação privilegiada sabia Latim, Francês e Italiano, Geografia, História e Literatura. Tocava piano com destreza, sabia cantar graças aos ensinos de madame D’Arpe, dançar graças a monsieur Lonville e montar a cavalo tão bem como qualquer homem, tinha a certeza disso, apesar dos seus esforços para se mostrar humilde. Também sabia que as mulheres começavam a abrir caminho em muitas disciplinas que antes lhes tinham estado vedadas, que ajudavam a formar a sociedade e, definitivamente, o mundo. Ela ia deixar a sua marca no mundo.

Também era a órfã mais protegida de todo o império, não tinha dúvida disso.

– Não vai tocar na rapariga... – começou a dizer Shelby, enfurecido. Mas não conseguiu acabar. O bandido estalara o chicote que tinha na mão, um chicote longo e de aspecto mortífero que ecoou no ar com a força de um tiro. A pistola que Shelby tentava alcançar voou pelo ar e o motorista gritou, não de dor, mas de surpresa.

– Meu bom amigo – disse o bandido, – não queremos magoar-vos. Saia, por favor.

Shelby saiu, rígido, irado e receoso. Ally ouviu uma exalação suave e, quando olhou, Shelby já não estava de pé. Caíra ao chão como se estivesse tão cansado que adormecera de pé. Ally gritou, alarmada, e tentou correr para ele. Contudo, o bandido agarrou-a pelos ombros. Ela esperneou, remexeu-se e tentou morder-lhe e ele começou a praguejar em voz baixa.

– Pode saber-se o que se passa, rapariga? Está a arriscar a vida.

– O que lhe fez?

– Acordará em breve, não há nada a recear – garantiu ele.

– O que lhe fez? Matou-o!

– Não está morto, garanto-lhe.

Ally tentou morder outra vez a mão que a segurava.

– Isto é ridículo! – gritou ele e, antes de Ally se aperceber, pô-la ao ombro e afastou-se rapidamente do caminho, dirigindo-se para o bosque.

O que fizera? Um calafrio de medo percorreu as costas de Ally, apesar da sua resolução.

– Se acha que vai cortar-me o pescoço no bosque, lamentá-lo-á profundamente – avisou. – Virão atrás de si. Já o procuram pelos seus crimes. Restabelecerão as execuções públicas. Voltarão a pôr o esquartejamento em vigor. Estou a avisá-lo...

– Devia começar a suplicar – replicou ele.

– Para onde me leva? – perguntou Ally. – Nem sequer sabe quem sou!

Aparentemente, tinham chegado ao seu destino. Ally foi depositada sem cerimónias sobre o tronco de uma árvore, junto de um regato que cruzava o bosque. O sol estava a pôr-se e estavam rodeados pelos brilhos pálidos que se filtravam entre as copas das árvores e as sombras da noite que se aproximava. Ele pôs um pé sobre o tronco e inclinou-se para ela.

– A sério, rapariga, não sei quem é. Se mo tivesse dito desde o começo, já podia ter seguido o seu caminho.

– Não me chame «rapariga».

– Devia chamar-lhe idiota.

– Eu? Idiota? Por protestar contra um criminoso que, sem dúvida, acabará os seus dias na forca?

– Se vão enforcar-me, porque não havia de a matar? – perguntou ele.

– Enforcá-lo-ão – disse ela, gelidamente.

– Talvez, mas não hoje. Hoje, vai responder-me.

Ela ficou em silêncio e olhou para ele fixamente enquanto tentava conter o medo. Não se deixaria vencer facilmente. Fixou o olhar nele com a cabeça erguida e os olhos ardentes.

– É jovem e capaz. Podia ter encontrado um trabalho honrado facilmente. Porém, decidiu dedicar a sua vida ao crime.

Ele desatou a rir-se, divertido.

– Rapariga, de todas as mulheres que encontrei, é decididamente a mais ousada. Ou a mais estúpida. Ainda não tenho a certeza.

– Disse-lhe para não me chamar «rapariga».

– É uma rapariga.

– Então, o senhor é apenas um pirralho que finge ser um homem.

Ele não pareceu ofender-se. Na verdade, esboçou um sorriso.

– Tem algum título, então? – inquiriu.

Ally olhou para ele com frieza.

– Pode chamar-me «menina».

– Então, quem é a menina e para onde ia?

– É tão estúpido que não reconhece uma carruagem pertencente ao conde de Carlyle?

Ally não soube se reconhecera ou não a carruagem, porque o bandido respondeu com uma pergunta, não com uma resposta.

– O que fazia na sua carruagem?

– Não a roubei – replicou ela.

– Isso não é uma resposta.

– É a única que vai conseguir.

Ele inclinou-se um pouco mais para Ally.

– Mas não é a resposta que procuro.

– Lamento imenso.

– Oh, não tem de me pedir desculpas... ainda. Limite-se a dar-me a informação que lhe peço.

– É um bruto e um ladrão. Não lhe devo nada.

– Sou um salteador de caminhos. E a sua vida e o seu bem-estar estão nas minhas mãos.

– Dê-me um tiro, então.

Ele abanou a cabeça, irritado. Ally ergueu o queixo. Tinha medo, porém, também se sentia estranhamente eufórica. O sangue corria velozmente pelas suas veias. Por muito ridículo que pudesse parecer, aquele desafio excitava-a. Curiosamente, não acreditava que aquele homem a magoasse. Havia qualquer coisa decente nas suas maneiras. Talvez fosse simplesmente o que ela queria: que finalmente acontecesse alguma coisa na vida. Sentia-se como se estivesse verdadeiramente viva, talvez pela primeira vez. Era uma pena que tudo estivesse prestes a acabar.

Ele desatou a rir-se e a sua gargalhada pareceu ligeira e agradável.

– Permita-me começar outra vez. Querida mademoiselle, faria o favor de me dizer o que fazia na carruagem do conde?

– Obviamente, vou visitar o conde.

– Ah... São amigos, então?

– É como um padrinho para mim – explicou ela.

– A sério?

– Sim, portanto será melhor ter cuidado, se não quiser ofender-me irreparavelmente.

– Receio que não me importe com quem possa ofender.

– O conde acabará consigo.

– Para isso terá de me apanhar primeiro, não lhe parece?

– Não o subestime.

– Nunca me ocorreria.

– Faça o favor de me dizer o que quer de mim. Lamento, mas não tenho nada de valor.

Ele continuava a sorrir e o seu pé continuava apoiado sobre o tronco. Ally deu por si a perguntar-se como era possível que um homem tão bem falado e tão bem vestido tivesse caído tão baixo.

– Há muitas formas de conseguir riquezas. Se o conde gosta de si, vale uma fortuna.

– Não gosta assim tanto de mim – disse ela, num tom cortante.

– Conte-me mais coisas sobre si! – ordenou ele, sorrindo.

– Conte-me mais coisas sobre si – replicou, cruzando as mãos sobre o colo.

– Eu perguntei primeiro.

– Mas já sabe mais coisas sobre mim do que eu sobre si – recordou-lhe ela.

– Ah, porém, eu sou um ladrão e a menina é a minha vítima – indicou ele.

– Precisamente. Ninguém espera que uma vítima coopere – replicou Ally.

– Supostamente, as vítimas têm de estar assustadas.

– Sabe o que penso?

– Diga-me, suplico-lho.

– Que não é perigoso.

– A sério?

– Parece-me que tem pelo menos um pouco de inteligência e que foi educado como é devido. E que, se quisesse, poderia viver bastante bem sem ter de recorrer ao roubo ou ao assalto de pessoas escolhidas à sorte.

– Receio – murmurou ele, – que não seja uma vítima escolhida à sorte.

Ela assustou-se e um calafrio de medo começou a gelar o seu sangue.

– Eu não tenho nada, porque havia de me escolher?

– Estava na carruagem do conde.

– Repito-lhe que não tenho nada que valha a pena roubar – garantiu ela.

– Poderia ser muito valiosa como refém – indicou ele.

– Oh! – exclamou ela, indignada. – É um néscio. O que se passa? Estão a acontecer coisas muito graves no mundo. Talvez dentro de pouco tempo nos encontremos no meio da anarquia. Foram assassinados dois homens. O povo está à beira do tumulto. E só se preocupa consigo próprio.

– Hum...

– Hum? Isso é a única coisa que lhe ocorre? – perguntou ela.

– Vai enfrentar sozinha todos os problemas deste mundo? – perguntou ele, com suavidade.

– E não está disposto a fazer nada contra a maldade deste mundo? – replicou Ally.

– Vejamos, posso mudar o mundo neste momento? Decididamente, não. Posso mudar a minha própria situação? Acho que sim. Porque a tenho a si, seja quem for, uma passageira da carruagem do conde de Carlyle.

– Por favor, já lhe disse que não valho nada.

– Vá lá... Não seja tão ingénua. Uma mulher tão... mundana...

Ela corou e desviou o olhar. Sentia-se como se um fogo a atravessasse. Como era possível que sentisse aquela maré de emoção por um bandido? Santo Deus, era patético. Não o permitiria.

– Pense o que quiser, porém, repito que nenhuma ameaça que possa fazer-me me tornará uma mulher rica. Vivo na companhia de várias viúvas, mulheres amáveis, generosas e afastadas do mundo. Têm muito pouco. Raramente saio do bosque.

– No entanto, quando sai, sai com estilo.

– Por sorte para mim, tenho amigos bem situados que se interessam por mim desde que era uma menina.

– Trabalha para o conde?

– Não.

– É...? – olhou para ela de cima a baixo com os olhos carregados de intenção.

– O que está a insinuar? – perguntou ela, indignada e, levantando-se, afastou-o com um empurrão. – A condessa é uma das mulheres mais belas e amáveis que conheci e garanto-lhe que o conde é da mesma opinião. Como se atreve? É apenas um bandido. A gentileza que achei intuir em si é apenas uma máscara que esconde muito mais coisas do que a que tem na cara. Acho que me fartei deste tête-à-tête ridículo. Agradeceria sinceramente se me levasse de volta à carruagem.

Ao princípio, temeu que ele reagisse violentamente. Empurrara-o com tanta força que ele cambaleara para trás. Ficou quieta por um momento e perguntou-se se se atreveria a fugir. Não estava familiarizada com a paisagem que a rodeava, contudo, fugir seria preferível a ser prisioneira daquele homem.

Ele, no entanto, não respondeu com violência, nem sequer lhe tocou. Desatou a rir-se e sentou-se no tronco caído.

– Bravo!

– Bravo?

– O conde é um homem sortudo por ter uma defensora tão enérgica.

– O conde é célebre pela sua força, pelo seu sentido ético e pela sua honestidade, coisa que o senhor saberia e apreciaria... se não fosse um canalha.

– Ah, oxalá fosse como ele.

– Qualquer homem teria de se esforçar para igualar os seus atributos.

– Qualquer homem poderia ter semelhante castelo? – perguntou ele, com ironia.

– Um castelo não faz um homem – respondeu ela.

– A riqueza também não? – inquiriu ele.

Ally não compreendia o seu tom. Havia certa amargura nele, talvez. De repente, percebeu que talvez corresse perigo, afinal de contas.

Conseguira pôr uma certa distância entre eles ao empurrá-lo e, enquanto estava sentado sobre o tronco, convencido de que dominava a situação, parecia ser o momento ideal para fugir. Crescer numa casa no bosque tinha muitas vantagens. Ally passara um sem-fim de dias a explorar os caminhos perto de casa, a brincar com amigos imaginários, a correr pelo bosque. Brincara com frequência com os filhos do lenhador que vivia por perto e, durante algum tempo, quando ainda era muito jovem, o filho do lenhador considerava-a um verdadeiro demónio. Portanto, era forte, ágil e veloz. Pensou que conseguiria ter muita vantagem.

E, ao princípio, foi assim.

Atravessou o riacho aos saltos, sem se importar com a água, e começou a correr por um caminho. A certa altura, até se atreveu a deleitar-se com o som da blasfémia que ele proferiu ao vê-la desaparecer. Depois, percebeu que não só a seguia, como o fazia velozmente.

Corria sob as árvores e saltava agilmente sobre raízes, rochas e ramos caídos. Continuou a correr pelo que parecia ser um caminho e perdeu-se entre a folhagem densa, esperando despistar o seu perseguidor.

Enquanto corria, pareceu-lhe que os ruídos da perseguição diminuíam. Ou talvez fosse o batimento do seu coração que silenciava tudo o resto. Finalmente, teve de parar. Ardiam-lhe os pulmões, o seu coração estava acelerado e sentia cãibras na barriga das pernas. As suas botas delicadas distavam de ser o calçado perfeito para correr pelo bosque.

Agarrou-se a uma árvore, inspirou, expirou e tentou aliviar a dor do seu peito e dos seus membros. O seu cabelo soltara-se e uma madeixa fazia-lhe cócegas no nariz. Afastou-a com um sopro, puxou-a para trás e pensou que devia parecer um desastre. Ao mesmo tempo, no entanto, percebera que conseguira fugir.

Escapara do salteador de caminhos. Exactamente quando começava a saborear aquele prazer, ouviu uma gargalhada suave. Virou-se bruscamente.

Ele estava apoiado contra uma árvore, com os braços cruzados, tão relaxado como se não tivesse preocupações. Nem uma só madeixa de cabelo fugira do seu rabo-de-cavalo. Não ofegava. Não parecia ter feito o mínimo esforço. Ally ergueu-se e olhou para ele com ar desafiante.

– Não consegue fugir, sabe?

– Fugi, de facto.

– Não, não fugiu.

Ela ponderou a sua situação. Sim, podia começar a correr outra vez. Porém, como o fizera? Como conseguira surpreendê-la tão facilmente? Ficou atónita ao perceber o seu erro. Estava tão decidida a não seguir um caminho claro que correra em círculos. Ele percebera o seu erro e esperara que ela voltasse por entre as árvores. Ally não voltaria a cometer aquele erro.

– Não o faça. É uma perda de tempo e de energia – avisou ele.

– Lamento muito. Estou a fazê-lo perder tempo? – perguntou ela, com sarcasmo.

Ele encolheu os ombros.

– A verdade é que hoje não tenho nenhum outro compromisso urgente.

– Sabe que, quando o conde de Carlyle perceber que a sua carruagem não chega, começará a procurar-me?

– Naturalmente... mas acho que isso só acontecerá dentro de um bom bocado.

– E porquê?

– Suspeito que está na cidade. Hoje há uma celebração no palácio de Buckingham. O aniversário de não sei quem. Acho que só chegará a casa à noite.

– Sabe muitas coisas sobre o conde de Carlyle – disse ela, tentando ganhar tempo. Precisava de descansar. Não ia dizer-lhe, certamente, que se enganava a respeito do conde.

– Leio os jornais, menina... Ah, sim, é verdade. Ainda não me disse o seu nome.

– Acho que não me disse o seu.

– Não é bom para si saber o meu nome. Isso torná-la-ia um perigo para mim, não acha?

– Então, não lhe direi o meu.

– Já descansou?

– Estou muito bem, obrigada.

– Não o faça.

– Fazer o quê?

– Fugir outra vez.

– Que outra coisa quer que faça?

– Disse-lhe que não tenho intenção de a magoar.

– E devia confiar em si?

– Se fugir, limitar-me-ei a apanhá-la outra vez.

– Talvez não consiga.

– Consigo, sim. E, quando o fizer, não gostará.

– Eu não gosto que me digam o que tenho de fazer, não gosto que me raptem e não gosto de conversar com um bandido.

– Faça o que tiver de fazer. Eu farei o mesmo.

Ela ergueu o queixo outra vez e tentou alisar as madeixas de cabelo loiro e embaraçado que lhe caíam pelas costas e a cara e lhe tapavam a visão.

– Poderia abandonar a sua vida criminosa. Vá-se embora. Transforme-se numa lenda. Procure um emprego bem remunerado. Vire a página.

– Podia fazê-lo.

– Então, deve fazê-lo – insistiu ela, com urgência.

– Lamento. Acho que não.

– Oh... – ela suspirou. Viu que os músculos daquele homem começavam a ficar tensos e compreendeu que se precipitaria para ela. Assim, embora não tivesse forças, começou a correr.

Ele apanhou-a depressa. Ally sentiu-o atrás dela antes de lhe tocar. Sentiu o vento que levantava, o seu calor e o seu poder. Depois, os seus braços rodearam-na. O impulso da sua fuga desesperada empurrou-os para a frente. Caíram ao chão. A boca de Ally pareceu encher-se de agulhas de pinheiro e de areia. Tossiu, tentou virar-se, mas ele estava em cima dela. Tentou pôr-se de barriga para cima, porém, não foi mais longe. Ele sentou-se sobre ela. Parecia divertido.

Ally tossiu outra vez enquanto olhava para ele com fúria. Um medo mais intenso apoderou-se dela. Estava verdadeiramente presa. Não tentou lutar com ele, não o forçou a levantar-se. Simplesmente, esmurrou o seu peito com todas as forças e remexeu-se freneticamente. Contudo, só conseguiu fazer com que ele se zangasse. Agarrou-lhe os pulsos e segurou-lhos por cima da cabeça, inclinando-se sobre ela. Ally percebeu, satisfeita, que o seu sorriso desaparecera.

– Quer parar de uma vez? – perguntou ele.

Ally não respondeu. Ficou perfeitamente quieta, olhando para um lado.

– Disse-lhe que não gostaria se tivesse de a apanhar – declarou, suavemente.

– É um mal-educado – sussurrou ela.

– Sou um ladrão – disse ele, com impaciência, – não um acompanhante como é devido.

Ela sentiu o seu contacto, a pressão das suas coxas, do modo como se mantinha sentado sobre ela sem a magoar. Depois, ele tocou nela. Estendeu o braço e afastou-lhe uma madeixa de cabelo da cara. Os seus dedos pareceram parar por um instante sobre a face dela.

A sua carícia foi muito leve e, no entanto, agarrara-a com força e não parecia ter intenção de a soltar. Ally não olhou para ele.

– E agora? – perguntou. – O que fazemos agora?

– Agora, diz-me o seu nome e o que quer, o que queria saber desde o começo – indicou ele.

Ally olhou para ele com o sobrolho franzido. O medo apoderara-se novamente dela. Sabia que devia manter a boca fechada, contudo, não conseguia.

– Não é... não é um antimonárquico? – sussurrou.

Assustou-se quando ele sorriu e lhe tocou no queixou, quase com ternura.

– Não, não sou. Deus salve a rainha. Sou um bom canalha inglês ao estilo antigo.

Ally acreditou. Estava deitada de costas, completamente à sua mercê, mas acreditava. Suspirou.

– E não tem intenção de me matar... Nem a mim, nem a mais ninguém?

– Não, rapariga.

– Por favor, não me chame «rapariga».

– Não vai dizer-me o seu nome?

Ally olhou para ele com dureza. A sua posição era muito íntima e a ideia fê-la corar. Aquele homem era um descarado e ela desprezava-se por pensar que era um homem atraente.

– Se fizesse o favor de se levantar... – sugeriu.

Ele levantou-se, estendeu-lhe a mão e ajudou-a a levantar-se sem esforço.

– O meu nome é Alexandra Grayson.

– O quê? – perguntou ele com aspereza e franziu o sobrolho tão bruscamente que ela ficou surpreendida e assustada.

Porque reagia assim? Não havia nada no seu nome, nem na sua pessoa, que pudesse significar alguma coisa para ele.

– Sou Alexandra Grayson, uma pessoa insignificante, garanto-lho. Já lhe disse. Vivo numa casinha no bosque com as minhas tias. O conde do Carlyle e a sua esposa são os meus padrinhos. Eles, e outros, ocuparam-se do meu bem-estar desde que me lembro.

– É... é Alexandra Grayson? – ele parecia quase não conseguir falar.

– O que é que o meu nome significa para si? – perguntou ela, temerosa de que tivesse enlouquecido.

– Nada... não significa nada para mim.

– Então...

– Pensava que era outra pessoa.

Ally pensou que estava a mentir. Contudo, não teve tempo de reflectir acerca dos seus motivos, porque ele lhe estendeu uma mão. Ela ficou a olhar para ela e engoliu em seco. Ele era muito alto e forte. Ally sentia o seu ardor e a sua energia vibrante, apesar de estar quieto. Tinha a estranha sensação de que, se se mexesse, se se apoiasse contra ele...

Seria doce... delicioso... excitante. Sentir-se-ia viva.

Ergueu-se, baixou a cabeça e cerrou os dentes. Aquele homem era apenas um delinquente!

Levantou o olhar. Ele continuava a olhar para ela intensamente.

– Venha – disse, finalmente. – Levá-la-ei à carruagem e poderá seguir o seu caminho.