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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2007 Robyn Carr. Todos os direitos reservados.

UM LUGAR PARA AMAR, Nº 17 - Julho 2012

Título original: Shelter Mountain

Publicada originalmente por Mira Books, Ontario, Canadá.

Publicada em português em 2010

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin, logotipo Harlequin e Romantic Stars são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-0589-7

Editor responsável: Luis Pugni

Imagens de capa:

Casal: YURI ARCUS/DREAMSTIME.COM

Paisagem: PUPPIE2008/DREAMSTIME.COM

 

Conversión ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

Um

 

Um vento violento e inoportuno de Setembro açoitava a chuva contra as janelas, enquanto o Pregador limpava o balcão do bar. Eram apenas sete e meia, mas já tinha anoitecido. Nenhum habitante de Virgin River sairia numa noite como aquela. Depois do jantar, as pessoas costumavam ficar em casa nas noites frias e húmidas do Outono. Os campistas e os pescadores também se teriam abrigado da tempestade. Estavam na temporada de caça, mas não era provável que com aquele tempo aparecesse algum caçador àquela hora. Jack, o seu companheiro e o proprietário do bar, sabendo que não haveria muito trabalho, tinha voltado para a cabana onde vivia com a sua esposa e o Pregador também tinha mandado Rick, o jovem de dezassete anos que os ajudava no bar, para casa. Assim que começasse a apagar o lume da lareira, poria o cartaz de «Fechado» na porta.

Serviu-se de um uísque, sentou-se na mesa mais próxima da lareira, pôs uma cadeira à frente dele e levantou os pés. Gostava daquelas noites tranquilas. Sempre fora um homem solitário.

Mas a tranquilidade não durou muito. Alguém empurrou suavemente a porta, fazendo-o franzir o sobrolho. O vento acabou de a abrir bruscamente e levantou o Pregador de um salto. Virou-se e viu que acabava de entrar uma jovem com um menino nos braços. Usava um boné de basebol na cabeça e uma mala ao ombro. O Pregador dirigiu-se imediatamente para ela. A recém-chegada virou-se, levantou o olhar para ele e os dois pareceram assustar-se.

Ela, porque o Pregador tinha um aspecto intimidante: era um homem alto e extremamente forte, usava o cabelo rapado e tinha uns sobrolhos densamente povoados.

Ele, porque debaixo daquele boné de basebol tinha visto um rosto bonito com uma nódoa negra na face e um corte no lábio.

– Eh, desculpe... Vi que estava aberto e...

– Entre. Não esperava ninguém esta noite.

– Ia fechar? – perguntou ela, enquanto levantava o menino nos braços.

Não devia ter mais de três anos e dormia com a cabeça apoiada no seu ombro.

– Entre – respondeu o Pregador, recuando para que pudesse entrar. – Não há outro lugar para onde ir. Sente-se ao lado do lume.

– Obrigada – respondeu a recém-chegada, com docilidade. – Mas não estava lá sentado?

– Não importa. Estava a beber um copo antes de fechar, mas não tenho pressa. Normalmente, não fechamos tão cedo, mas com esta chuva...

– Estava a pensar em ir para a sua casa?

O Pregador sorriu.

– Vivo aqui. Isso permite-me uma maior flexibilidade com os horários.

– Bom, se tiver a certeza de que não se importa...

– Claro que tenho a certeza. Quando faz bom tempo, abrimos até às nove horas.

A jovem sentou-se à frente da lareira, com o menino no colo. Deixou cair a mala ao chão, acomodou novamente o menino e abraçou-o com força.

O Pregador desapareceu na parte traseira do bar, deixando que aquecesse. Regressou com duas almofadas e uma manta. Pôs as almofadas numa mesa e disse:

– Pode deitar aí o menino. De certeza que pesa muito.

Ela olhou para ele com uma expressão que indicava que estava prestes a chorar. O Pregador desejou que não o fizesse. Odiava que as mulheres chorassem porque não sabia como reagir. Jack era capaz de lidar com aquele tipo de situações: era um cavalheiro, sabia como tratar uma mulher em qualquer circunstância. O Pregador sentia-se desconfortável com as mulheres, pelo menos, até ganhar confiança. Entre outras coisas, porque não tinha muita experiência com elas. Embora não fosse essa a sua intenção, o seu aspecto costumava assustar tanto as mulheres como as crianças. Mas o que eles não sabiam era que por baixo daquele semblante muitas vezes sombrio se escondia um homem tímido.

– Obrigada – voltou a dizer-lhe a jovem.

Deixou o menino sobre as almofadas e este aninhou-se imediatamente, e colocou o polegar na boca. O Pregador permaneceu à frente dele, segurando torpemente a manta. Ela não lha tirou, portanto, foi o Pregador quem acabou por tapar o menino. Enquanto o fazia, reparou nas faces coradas da criança.

A mãe do menino voltou a sentar-se e olhou à sua volta. Ao ver a cabeça de veado pendurada sobre a porta da entrada pareceu encolher-se. Continuou a percorrer o bar com o olhar, prestando especial atenção à pele de urso e ao esturjão embalsamado que decoravam a parede por cima do balcão.

– Isto é um abrigo de caçadores ou algo do género?

– Na verdade, não, mas vêm muitos pescadores e caçadores aqui. O meu sócio matou aquele urso em autodefesa, mas pescou intencionalmente o esturjão. Foi um dos maiores que se pescaram no rio. O veado cacei-o eu, mas prefiro a pesca. Eu gosto de tranquilidade – encolheu os ombros. – Sou o cozinheiro do bar. Se mato alguma coisa, é para que possamos comê-la. Se calhar, devia beber um copo – sugeriu, tentando que o seu tom não parecesse ameaçador.

– Antes, tenho de encontrar um lugar onde dormir. É verdade, onde estou exactamente?

– Em Virgin River, uma vila bastante remota. Como chegou até aqui?

– Eu... – soltou uma gargalhada nervosa. – Saí da auto-estrada para procurar uma vila onde houvesse um hotel...

– Estamos muito longe da auto-estrada.

– E também não há muitas vilas nos arredores. O facto é que vi o bar e também que estava aberto. O meu filho... acho que tem febre, portanto, não devia continuar a conduzir.

O Pregador sabia que não era possível encontrar nenhum hotel na zona. E também que aquela era uma mulher com problemas; não era preciso muita imaginação para o intuir.

– Hei-de arranjar-lhe alguma coisa – disse-lhe. – Mas, antes, não quer comer nada? Esta noite, preparei uma sopa deliciosa. E também tenho feijão com presunto e pão fresco. Eu gosto de fazer pão quando chove. Mas quer antes um brande para aquecer?

– Um brande?

– Ou o que quiser.

– Sim, pode ser um brande. E um prato de sopa. Há horas que não como nada, obrigada.

O Pregador colocou-se atrás do balcão e serviu-lhe o brande num dos seus melhores copos. Quase não os usava com os seus clientes habituais, mas queria fazer alguma coisa por aquela mulher que, tinha a certeza, se encontrava numa situação difícil. Levou-lhe o copo e regressou depois à cozinha.

Tirou a sopa do frigorífico, serviu uma tigela e meteu-a no microondas. Enquanto aquecia, levou-lhe o guardanapo e os talheres. Quando voltou à cozinha, a sopa já estava pronta. Pegou numa fatia de pão e aqueceu-a durante alguns segundos. Pô-la depois com um pouco de manteiga num prato. Ao sair da cozinha, viu que a recém-chegada estava a tirar o casaco. Pelas expressões que fazia, parecia estar dorida. A sua maneira de agir fê-lo parar um instante com o sobrolho franzido. A mulher olhava por cima do ombro, como se receasse que a surpreendessem a fazer alguma coisa de mal.

Enquanto lhe deixava a sopa na mesa, o Pregador pensava a toda a velocidade. Aquela mulher devia medir um metro e sessenta e era muito magra. O cabelo, escuro e encaracolado, estava apanhado num rabo-de-cavalo por baixo do boné. Parecia uma menina, mas imaginou que devia ter mais de vinte anos. Se calhar, tinha tido um acidente de carro, mas era mais provável que alguém lhe tivesse batido. A mera ideia fê-lo tremer por dentro de raiva.

– Tem muito bom aspecto – comentou, agradecida, a rapariga.

Enquanto ela comia, o Pregador permaneceu atrás do balcão. Viu-a a mexer a sopa, a barrar a manteiga no pão e a comê-lo com fome. Quando já tinha dado conta de metade do jantar, olhou para ele com um sorriso quase de desculpa. Partia-lhe o coração ver o seu rosto ferido, vê-la tão faminta.

Quando viu que estava a acabar a sopa com o último pedaço de pão, regressou à mesa.

– Vou buscar mais um pouco.

– Não, não é preciso. Acho que agora aceitarei o brande que me ofereceu. Saber-me-á bem. Depois continuarei a procurar...

– Relaxe – interrompeu-a o Pregador e desejou não ter parecido excessivamente duro. As pessoas demoravam a habituar-se a ele. Levou os pratos para o balcão e limpou a mesa. – Por aqui, não há nenhum lugar onde possa arranjar um quarto. E as estradas não são muito boas, sobretudo, com esta chuva. A verdade é que receio que não poderá ir a lado nenhum.

– Oh, não! Escute, só tem de me dizer o lugar mais próximo onde posso... Meu Deus, tenho de encontrar alguma coisa...

– Acalme-se. Eu tenho um quarto a mais. Pode ficar aqui. Está uma noite terrível – como era de prever, a rapariga olhou para ele com os olhos muito abertos. – Não vai acontecer-lhe nada e o quarto tem ferrolho.

– Não pretendia...

– Não se preocupe. Já sei que tenho um aspecto que costuma assustar as pessoas.

– Não, é só que...

– Calma, a sério. Sei como sou. Resulta optimamente com os homens. Consigo espantar qualquer um – sorriu.

– Não tem de fazer isto. Tenho um carro...

– Meu Deus, não seria capaz de a deixar dormir num carro! – exclamou e arrependeu-se imediatamente. – Desculpe, às vezes, falo num tom tão ameaçador como o meu aspecto. Mas digo-o a sério, é melhor que fique se o menino não se sente bem...

– Não posso. Não o conheço.

– Sim, eu sei e provavelmente provoco muitas dúvidas. Mas sou muito menos perigoso do que pareço. Ficará bem na minha casa, melhor do que em qualquer hotel da auto-estrada, pode ter a certeza. E muito melhor do que a tentar conduzir por estas estradas a meio de uma tempestade.

A jovem ficou a olhar para ele durante um longo minuto.

– Não. Tenho de me ir embora. Se me disser quanto lhe...

– Tem uma bela ferida – interrompeu-a o Pregador. – Não quer que lhe traga alguma coisa para o lábio? Tenho um estojo de primeiros-socorros na cozinha.

– Estou bem – respondeu ela, abanando a cabeça. – Porque é que não me diz quanto lhe devo e...?

– Não tenho nada para a febre do menino, salvo um quarto com ferrolho onde poderá sentir-se segura. Não pode rejeitar uma oferta assim, estando com um menino com febre. Sei que dou medo, mas garanto-lhe que comigo estará completamente segura – sorriu-lhe.

– Não me dá medo – respondeu, com timidez.

– Há muitas mulheres e crianças que ficam nervosas ao ver-me e garanto-lhe que é uma coisa que detesto. Está a fugir? – perguntou-lhe de repente.

A sua interlocutora baixou o olhar.

– O que acha? Que vou chamar a polícia? Quem lhe fez isso?

A rapariga começou a chorar.

– Eh, não, não chore... – suplicou-lhe.

Mas ela cruzou os braços sobre a mesa, apoiou a cabeça neles e continuou a soluçar.

– Não, por favor, não faça isso. Nunca sei o que fazer quando uma mulher chora – começou a acariciar-lhe as costas e ela endireitou-se bruscamente. O Pregador estendeu então a mão para a dela para lhe tocar. – Vá, não chore. Se calhar, posso ajudar.

– Não, não pode.

– Nunca se sabe.

– Desculpe – desculpou-se ela, enquanto secava a cara. – Suponho que esteja exausta. Foi um acidente. Parecer-lhe-á uma estupidez, mas estava a tentar colocar Chris... – interrompeu-se de repente e olhou nervosa à sua volta, como se receasse que alguém pudesse tê-la ouvido. Humedeceu os lábios. – Estava a tentar colocar Christopher no carro e bati contra a porta. Há coisas que é melhor fazer com calma, não é? Foi só um acidente, estou bem.

– Sim, claro. Mas de certeza que lhe dói.

– Ficarei bem.

– Claro que sim. Como te chamas? – ao compreender que não estava disposta a responder, acrescentou: – Não tens de ter medo, não vou dizer a ninguém. Se alguém perguntar por ti, nem sequer lhe direi que te vi – olhava, boquiaberta, para ele. – Bolas, não devia ter dito isto, pois não? Bom, a única coisa que pretendia dizer-te é que, se estiveres a fugir de alguma coisa ou a esconderes-te, não faz mal. Podes esconder-te aqui. Não te denunciarei. Como te chamas?

A mulher estendeu lentamente a mão para acariciar a cabeça do seu filho. E continuou em silêncio.

O Pregador levantou-se, tirou o cartaz da porta e trancou-a.

– Já está! – sentou-se ao lado da rapariga. – Tenta acalmar-te – disse-lhe suavemente. – Ninguém vai fazer-te mal. Posso ser teu amigo. E garanto-te que não me dá nenhum medo o covarde que foi capaz de fazer isso a uma mulher.

Ela baixou o olhar, como se quisesse evitar qualquer contacto visual.

– Fi-lo na porta do carro...

– Também não me dão medo os carros velhos – interrompeu-a.

A rapariga emitiu um som parecido a uma gargalhada, mas continuava a evitar o seu olhar. Levantou o copo de brande com a mão ligeiramente trémula e levou-o aos lábios.

– Além disso, se achas que o menino precisa de um médico, há um mesmo em frente. Podemos telefonar-lhe ou posso acompanhar-te até lá.

– Acho que só tem tosse.

– Mas se precisar de algum medicamento ou de qualquer outra coisa...

– Acho que está bem, a sério.

– O meu amigo, o proprietário do bar, é casado com uma enfermeira. Uma enfermeira especializada. Está capacitada para examinar pacientes, receitar medicamentos... É parteira e trata das mulheres da zona. Poderia estar aqui em menos de dez minutos. Se há uma mulher que pode realmente ajudar-te nestas circunstâncias é...

– Que circunstâncias? – interrompeu-o ela. O pânico reflectia-se nas suas feições.

– Refiro-me à porta do carro e a tudo o resto...

– Não, a sério! Não é preciso que venha. O meu único problema é que tive um dia muito longo.

– Sim, imagino. E a última hora que passaste a conduzir fora da auto-estrada deve ter sido horrível, se não estás habituada a estas estradas.

– A verdade é que estava um pouco assustada – admitiu, suavemente. – E ao não saber sequer onde estava...

– Agora, estás em Virgin River e isso é a única coisa que importa. As estradas são terríveis, mas a gente daqui é boa. Ajudamo-nos uns aos outros em tudo o que podemos, sabias?

A sua interlocutora esboçou um sorriso, mas continuava sem lhe olhar para os olhos.

– Como te chamas? – insistiu o Pregador. Ela apertou os lábios e abanou a cabeça. – Não vai acontecer-te nada – acrescentou o Pregador, suavemente, – a sério.

– Paige – sussurrou. Uma lágrima deslizou pela sua face. – Paige – repetiu, com um fio de voz.

– Tens um nome muito bonito. E aqui podes dizê-lo sem medo.

– E tu, como te chamas?

– John – respondeu ele e perguntou-se imediatamente porquê. – John Middleton, mas ninguém me chama assim. Todos me chamam Pregador.

– És padre?

– Não – replicou ele, rindo-se. – Absolutamente. Acho que a última pessoa que me chamou John foi a minha mãe.

– E como te chamava o teu pai?

– Miúdo – respondeu, com um sorriso. – «Eh, miúdo», costumava dizer-me.

– E porque é que todos te chamam Pregador?

– Bom – inclinou a cabeça, envergonhado, – não sei. Puseram-me essa alcunha há anos, quando estava nos Marines. Os outros diziam que era um puritano.

– E eras?

– Não, que ideia? Mas eu não gostava de ser desbocado e ia à missa quando se celebrava. Cresci rodeado de padres e freiras. A minha mãe era uma mulher muito devota. Nunca nenhum dos outros soldados ia à missa, pelo menos, que eu recorde. E quando iam embebedar-se ou à procura de mulheres, não os acompanhava. Não sei, nunca me senti cómodo a fazer esse tipo de coisas. E as mulheres não são o meu forte – sorriu, de repente. – Embora suponha que isso seja bastante óbvio, não é? E embebedar-me nunca me pareceu especialmente apetecível.

– Mas tens um bar.

– O bar é de Jack, mas ele cuida de todos. Não deixa que ninguém saia do bar se não estiver em perfeitas condições, sabias? Eu gosto de beber um copo no fim do dia, mas não entendo que prazer se pode ter em acordar de ressaca – sorriu-lhe.

– Como queres que te chame, John ou Pregador?

– Chama-me como quiseres.

– John – respondeu ela, – parece-te bem?

– Sim, se tu quiseres... Sim, claro que gosto. Além disso, há muito tempo que ninguém me chama assim.

Paige desceu o olhar um instante, antes de voltar a levantá-lo para ele.

– Agradeço-te muito o que estás a fazer por mim. Que tenhas deixado o bar aberto e tudo o resto.

– Não é para tanto. Na maior parte das noites o bar está aberto até mais tarde – inclinou a cabeça para o menino. – Não acordará com fome?

– Se calhar. Tinha um pouco de manteiga de amendoim e doce no carro e comeu quase tudo.

– Muito bem. O quarto que te ofereço fica por cima da cozinha. Podes descer até à cozinha para fazeres o que quiseres, deixarei a luz acesa. No frigorífico, há leite e sumo de laranja. E também há cereais, pão, manteiga de amendoim e sopa, está bem?

– És muito amável, mas...

– Paige, acho que precisas de descansar e, se o menino estiver doente, suponho que não queiras que saia com este frio.

Paige pensou durante alguns segundos e perguntou:

– Quanto vai custar-me?

O Pregador soltou uma gargalhada, mas ficou imediatamente sério.

– Desculpa, não pretendia rir-me. Só que... Na verdade, vou ceder-te o meu antigo quarto. Isto não é um hotel, nem nada parecido. Durante dois anos, vivi naquele quarto, mas depois Jack casou-se com Mel e deixou-me o seu apartamento. Como já te disse, o quarto fica por cima da cozinha. Cheira um pouco a café e a bacon de manhã, mas é grande e tem casa de banho. Para uma noite não é nada mau – encolheu os ombros. – Só estou a comportar-me como um bom vizinho.

– És muito generoso.

– Não é para tanto, ao fim e ao cabo, ninguém vai utilizar aquele quarto e fico contente por poder ajudar-te – pigarreou. – Tens uma mala ou alguma coisa que queiras tirar do carro?

– Só uma mala. Está no banco de trás.

– Vou buscá-la. A garrafa de brande está ali – disse-lhe. – Se quiseres, serve-te de mais um pouco. E eu acho que quereria, se estivesse no teu lugar, depois de ter atravessado todas estas montanhas à chuva – levantou-se. – Traz o copo e mostro-te o quarto. Fica no andar de cima. Hum... Queres que eu leve o menino?

Paige também se levantou.

– Obrigada – esticou os ombros, como se os tivesse tensos depois de ter conduzido durante horas, – se não te importares...

– Absolutamente. E ouve, para que não te preocupes, o teu quarto e o meu apartamento nem sequer são ligados. Estaremos afastados pelas escadas e pela cozinha. Portanto, tranca a porta e descansa.

Pegou no menino ao colo e gostou de sentir a sua cabeça apoiada no ombro. O Pregador não tinha muita experiência com crianças, mas gostou daquela sensação.

– Por aqui.

Conduziu-a para as escadas através da cozinha e abriu a porta do seu antigo quarto.

– Desculpa – desculpou-se, – está um pouco desarrumado. Deixei aqui parte das minhas coisas, como os pesos, mas os lençóis são lavados.

– Está óptimo. Além disso, sairei amanhã bem cedo.

– Não tens de te ir embora tão depressa. Podes ficar todo o tempo que precisares. Já te disse que o quarto está sempre vazio. Portanto, se o menino continuar com febre...

Deixou o menino na cama, quase com desinteresse. O calor daquele menino contra o seu peito era reconfortante. Quase não conseguia resistir à vontade de lhe acariciar o cabelo.

– Porque não me dás as chaves do carro? Assim, poderei trazer-te a mala.

Paige colocou a mão na sua mala e estendeu-lhe as chaves.

– Já venho.

O Pregador foi rapidamente ao carro. Era um carro pequeno, teve de empurrar o banco completamente para trás e, mesmo assim, os joelhos continuavam a tocar-lhe no volante. Levou-o para a parte de trás do bar e estacionou-o ao lado da sua carrinha, de maneira a que ninguém pudesse vê-lo da rua principal, caso estivessem à procura dela. Não tinha a certeza porquê, mas não queria que Paige tivesse medo.

Tirou depois a mala, uma mala demasiado pequena para alguém que pensava fazer uma viagem.

Quando regressou ao quarto, encontrou Paige sentada na beira da cama, ao lado do seu filho, e evidentemente tensa. O Pregador deixou a mala no chão e as chaves em cima da cómoda que havia ao lado da porta. Paige levantou-se e virou-se para ele.

– Olha – explicou-lhe o Pregador, – estacionei-te o carro atrás da minha carrinha. Agora, não se consegue ver da rua principal. Portanto, se não o vires onde o deixaste, não te assustes, está atrás do bar. Eu recomendo-te que descanses, que esperes que deixe de chover e que não saias de viagem até que seja de dia. Mas, se ficares nervosa por alguma razão, o bar pode abrir-se de dentro e tens aqui as chaves do carro. Caso... Caso queiras ir-te embora, podes deixar a porta aberta. Estamos num lugar seguro, de facto, às vezes, até nos esquecemos de trancar a porta. Mas, esta noite, como estás aqui tu e o menino, certificar-me-ei de a trancar. Eh... Paige, não precisas de te preocupar com nada. Sou um homem em quem se pode confiar. Se não fosse assim, Jack não me deixaria a cargo do bar, está bem? Agora, tenta descansar.

– Obrigada – sussurrou Paige.

O Pregador fechou a porta e ouviu que Paige a trancava, tentando proteger-se.

Permaneceu ali durante um longo minuto. E demorou aproximadamente cinco segundos a concluir que alguém, provavelmente o seu marido ou o seu namorado, lhe tinha batido e que ela decidira fugir com o seu filho. Como é claro, ele sabia que aquele tipo de coisas acontecia constantemente. Mas nunca tinha conseguido compreender que satisfação podia ter um homem ao bater numa mulher. Para ele não fazia sentido. Quando se tinha uma mulher, devia-se tratá-la bem. Devia-se fazê-la sentir-se segura, era-se obrigado a protegê-la.

Desceu para o bar, apagou as luzes, reviu a cozinha e, depois de acender a luz da escada caso Paige quisesse descer, foi para o apartamento que tinha atrás da cozinha. Estava lá apenas há alguns minutos quando se lembrou de que não havia toalhas lavadas na casa de banho de Paige. Meteu-se na casa de banho, tirou um jogo de toalhas lavadas do armário e levou-as para o quarto dela.

A porta estava ligeiramente aberta, se calhar, Paige já tinha ido à cozinha. Viu um copo de sumo de laranja em cima da cómoda e alegrou-se por se ter servido. Através da fresta, pôde ver o seu reflexo no espelho da cómoda. Paige estava de costas para o espelho, tirara a camisola e estava a tentar ver a parte superior dos braços: tinha-os cheios de nódoas negras. Tinha nódoas negras nas costas, num ombro e na parte superior dos braços.

O Pregador não acreditava no que estava a ver. Durante alguns instantes, foi incapaz de desviar o olhar.

– Meu Deus... – sussurrou, quase sem fôlego.

Recuou rapidamente e apoiou-se contra a parede, evitando aquela imagem. Estava sobressaltado, horrorizado e só era capaz de pensar em que tipo de animal era capaz de fazer uma selvajaria como aquela. Nunca na sua vida tinha imaginado nada igual. Ele fora soldado, tinham-no preparado para lutar e, mesmo assim, estava convencido de que jamais tinha infligido tanto mal a um homem que o igualasse em peso e tamanho.

Alguma coisa dentro dele lhe dizia que não deveria dizer a Paige que fora testemunha daquela monstruosidade. Ela tinha medo de tudo, também dele. Mas aquela mulher tinha sofrido uma sova brutal. E ele, que mal a conhecia, desejava matar o canalha que fora capaz de lhe fazer uma coisa assim.

Mas Paige não tinha de saber o que estava a sentir. Isso só serviria para a assustar ainda mais. De modo que respirou fundo, tentou recuperar a compostura e bateu à porta.

– Sim? – ouviu Paige a dizer. Parecia sobressaltada.

– Trouxe-te toalhas.

– Espera um pouco, está bem?

– Demora o tempo que quiseres.

Ao fim de alguns segundos, a porta abriu-se mais um pouco. Paige tinha voltado a vestir a camisola.

– Tinha-me esquecido de que não deixara nada na casa de banho. Suponho que precises de uma toalha. Não voltarei a incomodar-te.

– Obrigada, John.

– De nada, Paige. Dorme bem.

 

 

Paige empurrou a cómoda, tentando não fazer ruído, até a pôr diante da porta. Esperava que John não tivesse ouvido, mas, pelo que pudera ver até àquele momento, a cozinha ficava por baixo daquele quarto. E se aquele homem pretendesse fazer a ela ou a Christopher algum mal, já poderia tê-lo feito, para não mencionar que um simples ferrolho e uma cómoda vazia não bastariam para o impedir.

Por muito que lhe apetecesse tomar um banho quente na banheira, sentir-se-ia demasiado vulnerável nua. Da casa de banho não conseguiria ouvir Christopher se a chamasse, nem se alguém tentasse abrir a porta, por isso optou por se lavar rapidamente e mudar de roupa. Saiu e, sem apagar a luz da casa de banho, deitou-se na cama, em cima da colcha. Sabia que não conseguiria dormir, mas, ao fim de pouco tempo, conseguiu tranquilizar-se. Fixou o olhar nas vigas daquele tecto esconso. E recordou outros momentos da sua vida em que se encontrara numa situação parecida.

A primeira vez fora na casa onde tinha crescido. Era uma casa pequena de dois quartos e já era velha quando os seus pais se tinham mudado, mas o bairro era limpo e tranquilo naquela época, vinte anos atrás. Quando ela tinha nove anos, a sua mãe tinha-lhe preparado um quarto nas águas-furtadas. Era também uma divisão esconsa, com as vigas a descoberto. Tinha de a partilhar com as caixas que se empilhavam contra uma das paredes, mas era o seu espaço, o seu refúgio. Da cama ouvia com frequência as discussões dos seus pais. E depois da morte do seu pai, que tinha falecido quando ela tinha onze anos, as discussões de Bud, o seu irmão mais velho, com a sua mãe.

Pelo que tinha aprendido sobre violência doméstica durante os últimos anos, deveria ter imaginado que acabaria com um abusador, embora o seu pai nunca tivesse posto a mão em cima dela, nem da sua mãe e o máximo que se atrevera o seu irmão fora a dar-lhes um empurrão. Mas, certamente, se havia coisa que os homens da sua família sabiam fazer era gritar. Gritavam tão alto e com tanta fúria que muitas vezes estranhava que os vidros das janelas tivessem aguentado. Exigências, menosprezo, acusações, aborrecimentos e insultos. Era só uma questão de grau: um mau trato era um mau trato.

A segunda vez que se encontrara numa cama, com o olhar cravado nas vigas do tecto, fora pouco depois de sair de casa. Depois de acabar o liceu, tinha tirado um curso de cabeleireira e tinha continuado a viver com a sua mãe até aos vinte e um anos. Depois, tinha arrendado uma casa com duas amigas. Paige tinha ficado com o quarto das águas-furtadas. Adorava aquele quarto, embora não fosse maior do que o da sua infância e tivesse de se agachar para não bater com a cabeça no tecto.

Os seus olhos encheram-se de lágrimas porque os dois anos que tinha passado com Pat e Jeannie tinham sido os mais felizes da sua vida. Às vezes, sentia tanto a falta delas que lhe doía. Três cabeleireiras que tinham apenas o suficiente para pagarem a renda, a roupa e a alimentação, e, no entanto, parecia-lhes uma glória. Quando não tinham dinheiro para sair, compravam pipocas e vinho barato, e organizavam uma festa em casa. Falavam das mulheres que tinham penteado, de rapazes e de sexo, e riam-se à gargalhada.

E então tinha aparecido Wes na sua vida, um executivo seis anos mais velho do que ela. Surpreendeu-a pensar que naquele tempo Wes tinha a idade que ela tinha neste momento: vinte e nove anos. Tinha-lhe parecido um homem maduro e com muita experiência. Só era sua cabeleireira há alguns meses quando Wes a tinha convidado para sair. Tinha-a levado a um restaurante tão caro que até as empregadas eram mais elegantes do que ela. Wes conduzia um desportivo com bancos de couro e vidros fumados, e conduzia sempre a toda a velocidade, coisa que com vinte e três anos não lhe tinha parecido perigoso. Pelo contrário, era emocionante. E quando o ouvia a gritar com os outros condutores pensava sempre que tinha razão. Era um homem poderoso e, segundo os parâmetros de Paige, também rico.

Tinha uma casa própria e era corretor da bolsa, tinha um trabalho que requeria inteligência e grandes doses de energia. Estava disposto a sair todas as noites e comprava-lhe tudo. Tirava a carteira do bolso e dizia-lhe:

– Não sei o que queres, mas como sei que gostas de alguma coisa, compra o que quiseres. Porque a única coisa que realmente me importa é ver-te feliz.

Nem Pat nem Jeannie gostavam dele, mas era lógico. Não era nada amável com elas. Tratava-as como se fossem somente elementos decorativos. Respondia às suas perguntas com monossílabos. De facto, Paige nem sequer recordava o que as suas amigas lhe tinham dito quando tinham tentado acautelá-la contra ele.

Depois, tinha começado a loucura e ela tinha perdido completamente o controlo sobre a sua vida. Wes tinha começado a bater-lhe antes do casamento, mas, mesmo assim, ela tinha-se casado com ele.

A primeira vez fora no carro, devido a uma discussão sobre o lugar onde Paige devia viver. Wes pensava que estaria melhor com a mãe dela do que numa casa velha, num bairro questionável e «com duas ninfomaníacas», dissera. Fora muito desagradável. Mas ela também lhe respondera.

Wes dissera algo do género como:

– Quero que vás para a casa da tua mãe e não que continues a viver num prostíbulo.

– Mas quem raios achas que és para me dizeres que vivo num prostíbulo?

– Como te atreves a falar-me nesse tom?

– Insultas as minhas melhores amigas e queixas-te do tom com que falo?

– Eu só estou a pensar na tua segurança. Dizes que queres casar-te comigo e eu gostaria que continuasses a ser quem és quando isso acontecer.

– Pois, lamento, porque eu adoro viver onde vivo e não vou deixar que me digas o que devo fazer. Além disso, não vou casar-me com alguém que fala assim das minhas melhores amigas.

Tinha havido mais. Muito mais. Paige recordava vagamente que a tinha insultado. Dissera-lhe que era uma cadela. O facto era que os dois tinham contribuído para aumentar o nível dos insultos.

E, por fim, Wes dera-lhe uma bofetada. Fora-se abaixo imediatamente, pusera-se a chorar e dissera-lhe que não sabia o que lhe tinha acontecido, que, se calhar, era porque nunca tinha estado apaixonado. Tinha reconhecido que fora errado o que tinha feito, dissera-lhe que estava envergonhado, mas que queria passar o resto da sua vida com ela, que não queria perdê-la. Como é claro, desculpara-se pelo que dissera das suas companheiras de apartamento e inclusive tinha chegado a admitir que, se calhar, estava ciumento da lealdade dela para com elas. Amava-a tanto que estava a enlouquecer, dizia-lhe. Era a primeira pessoa por quem tinha sentido algo do género. Sem ela não era nada!

Paige tinha acreditado, mas nunca mais tinha voltado a pronunciar um insulto diante dele.

Não tinha contado a Pat nem a Jeannie nada do sucedido para não se arriscar a ouvir a desaprovação delas. Só tinha demorado alguns dias a superar a bofetada. Ao fim e ao cabo, não era para tanto. E não lhe tinha levado mais de um mês a esquecer quase por completo aquele incidente e a voltar a confiar nele. Via-o como um homem enérgico e seguro. Inteligente. Os homens passivos não podiam ter tanto sucesso como ele. E nunca tinha gostado de homens passivos.

E, num belo dia, Wes dissera-lhe que já não queria continuar à espera.

– Quero que nos casemos o quanto antes. Que organizemos um casamento espectacular. E depois não terás de voltar a trabalhar.

Cortar e pentear cabelos durante seis dias por semana não era um trabalho fácil, por muito que Paige gostasse. À noite, doíam-lhe as pernas e começava a ter joanetes. Muitas vezes, pensava que gostaria muito mais se só trabalhasse seis horas em quatro dias por semana, mas era um sonho impossível. Quase não se aguentava até ao fim do mês a trabalhar o que trabalhava e, desde que o seu pai tinha morrido, a sua mãe tinha dois empregos. Ao ver a sua mãe, imaginava o seu futuro. Via-se sozinha, fraca e a trabalhar até ao dia da sua morte. A imagem das suas companheiras de apartamento a segurarem a cauda do seu vestido de noiva e a sorrirem com inveja saudável perante a sorte, e a vida relaxada que teria enquanto casada tinham bastado para lhe dar o empurrão definitivo. E dissera que sim.

Wes tinha voltado a bater-lhe durante a lua-de-mel.

Durante os seis anos seguintes, Paige tinha tentado tudo: psicólogos, denúncias, fugas. Mas, das poucas vezes que a polícia tinha chegado a prendê-lo, quando tinha saído do posto de polícia a situação fora muito pior. Nem sequer a gravidez tinha detido os maus-tratos. Paige tinha descoberto de forma casual que podia haver um pouco mais naquela equação, uma certa substância química que lhe dava a energia para trabalhar durante horas e horas. Cocaína, talvez? Sabia também que Wes tomava alguma coisa que lhe dava o treinador pessoal, embora ele jurasse que não eram esteróides. Paige tinha consciência de que muitos correctores da bolsa tomavam cocaína e de que um regime à base de esteróides e cocaína poderia tê-lo feito enlouquecer. Não sabia quanto tempo poderia durar aquela situação, mas sabia que Wes estava louco.

Aquela era a sua última oportunidade. Através de um refúgio para mulheres maltratadas conhecera uma mulher que lhe dissera que podia ajudá-la a fugir, a mudar de identidade e a fugir. Havia uma rede disposta a ajudar mulheres na sua situação. Se Christopher e ela conseguissem chegar até ao primeiro contacto, poderiam ir mudando de lugar com identidades falsas. O lado positivo daquela solução era que realmente resultava. Se a mulher em questão seguisse as instruções que lhe davam, era um método quase infalível. O lado negativo era que era ilegal e, além disso, uma solução para toda a vida. Mas só tinha duas opções: continuar a viver como até então, sempre cheia de nódoas negras, receando que um dia a matasse ou transformar-se noutra pessoa, assumir a identidade de outra mulher e evitar, portanto, que voltasse a maltratá-la.

Andava há algum tempo a poupar parte do dinheiro que recebia para as compras da casa e tinha preparado uma mala que lhe tinha escondido o contacto que tinha feito no refúgio. Tinha conseguido quase quinhentos dólares e estava disposta a fugir com Christopher antes que surgisse um novo episódio de violência. Depois da última sova, tinha a certeza de que em breve seria demasiado tarde.

De modo que estava ali, com o olhar cravado num tecto esconso e perante uma nova encruzilhada. Tinha a certeza de que não conseguiria dormir. Quase não conseguira dormir durante aqueles seis anos. As preocupações não lho permitiam.

No entanto, acordou de manhã num quarto iluminado pelo sol, a ouvir os estalos regulares de um machado sobre a lenha. Alguém estava a cortar lenha para a lareira. Sentou-se lentamente e chegou até ela o cheiro do café. Portanto, finalmente tinha dormido, pensou. E Christopher também.

A cómoda continuava apoiada contra a porta.

Dois

 

O Pregador quase não tinha dormido. Passara grande parte da noite diante do computador. Era como se tivessem inventado aquela pequena máquina para ele, adorava aquele artefacto. Andava há algum tempo a tentar convencer Jack a informatizar o inventário, mas Jack preferia uma prancheta, que era como uma extensão do seu braço, e não queria saber nada das novas tecnologias. A ligação à Internet era lenta na vila, mas o Pregador tinha paciência e tinha conseguido encontrar a informação de que precisava.

Tinha passado o resto da noite a tentar conciliar o sono, que parecia evitá-lo constantemente. Levantara-se várias vezes da cama e espreitara pela janela para ver se continuava ali o carro de Paige. Por fim, levantara-se definitivamente às cinco horas, quando ainda não tinha amanhecido. Tinha ido à cozinha para fazer café e tinha acendido a lareira. No andar de cima não se ouvia nada.

A chuva tinha cessado, mas o céu continuava encoberto e fazia frio. Teria gostado de sair para cortar lenha para libertar parte da sua agressividade, mas era Jack quem fazia habitualmente aquele trabalho. Às seis e meia, Jack tinha chegado ao bar, cheio de sorrisos. Desde que se tinha casado, parecia o homem mais feliz de Virgin River. Era como se não conseguisse deixar de sorrir.

O Pregador, que permanecia atrás do balcão, levantou a chávena de café para cumprimentar o seu amigo.

– Choveu imenso, hã? – perguntou Jack.

– Jack, escuta, ontem fiz uma coisa...

Jack tirou o casaco e pendurou-o no bengaleiro da porta.

– Queimaste a sopa, Pregador?

– Tenho uma mulher no andar de cima.

Jack ficou completamente estupefacto. O Pregador não costumava sair com mulheres. Nunca as seduzia. Como é claro, Jack não sabia como vivia aquela situação, porém, ao fim e ao cabo, tratava-se do Pregador. Quando os marines que Jack tinha às suas ordens no Exército iam em busca de mulheres com quem passar a noite o Pregador nunca os acompanhava. Os seus companheiros, gozando com ele, chamavam-lhe «o Grande Eunuco».

– Ah, sim?

O Pregador pegou noutra chávena e serviu um café a Jack.

– Apareceu ontem à noite, durante a tempestade, com um menino doente. Deixei-os a dormir no meu antigo quarto, porque não havia outro lugar onde se hospedarem nesta zona.

– Bom – respondeu Jack, pegando na chávena, – parece-me um gesto muito amável da tua parte. Roubou o faqueiro de prata ou algo do género?

O Pregador esboçou uma careta. Não tinham faqueiro de prata, nem nada que se parecesse; a única coisa de valor que havia no bar era o dinheiro da caixa.

– Parece uma mulher com problemas – explicou a Jack. – Tenho a sensação de que está a fugir de alguma coisa.

– Ah, sim? – repetiu Jack, mostrando novamente a sua perplexidade.

O Pregador olhou-o então nos olhos.

– Acho que precisa de ajuda. Tem uma nódoa negra na cara.

– Hum... – murmurou Jack.

– Mel virá hoje ao consultório?

– É claro.

– Acho que devia dar uma olhadela ao menino. E Paige, a mulher, diz que está bem, mas talvez... Bom, se calhar, Mel pode... Não tenho a certeza, mas...

Jack bebeu um gole de café.

– Muito bem e depois?

O Pregador encolheu os ombros.

– Acho que quer ir-se embora. Está muito nervosa e parece assustada, mas eu gostaria que, pelo menos, Mel pudesse vê-la.

– Provavelmente, é uma boa ideia.

– Sim, é o que farei. Pedirei a Mel que a veja. Mas não sei se serei capaz de a convencer. Acho que deverias ser tu a fazê-lo. Poderias sugerir-lhe que...

– Não, Pregador, tu consegues lidar perfeitamente com esta situação. De facto, és tu que tens de o fazer. Eu nem sequer a vi. Tenta falar calmamente com ela, sem a assustares.

– Já está assustada, é por isso que acho que pode ter algum problema. O menino ainda não me viu porque ontem estava adormecido, mas, provavelmente, assim que abrir os olhos e me vir começará a gritar.

Às sete e meia, o Pregador preparou uma bandeja com cereais, torradas, café, sumo de laranja e leite. Subiu até ao andar de cima e bateu suavemente à porta. Esta abriu-se imediatamente. Paige já estava de banho tomado e vestida. Usava as mesmas calças de ganga da noite anterior e uma blusa azul de manga comprida. Pelo colarinho da blusa aparecia uma nódoa negra. Ao vê-la, o Pregador corou imediatamente, mas tentou disfarçá-lo. Concentrou-se então no seu olhar, naqueles olhos verde-esmeralda, e no cabelo húmido, que caía encaracolado sobre os seus ombros.

– Bom dia! – cumprimentou-a, num tom suave e tranquilo, como Jack teria feito no seu lugar.

– Ena, madrugaste!

– Já estou levantado há horas.

– Mamã? – perguntou uma vozinha atrás dela.

O Pregador olhou por cima de Paige e viu Christopher sentado com as pernas cruzadas, no meio da cama.

Paige abriu a porta para que o Pregador pudesse entrar. Este deixou a bandeja em cima da cómoda e cumprimentou o menino com um movimento de cabeça. Tentou relaxar as suas feições, mas não tinha a certeza de ter tido muito sucesso.

– Olá, miúdo, queres tomar o pequeno-almoço?

O menino encolheu os ombros, mas tinha os olhos fixos no Pregador.

– Não se relaciona muito bem com os homens – sussurrou Paige. – É muito envergonhado.

– Sim? Eu também. Mas não te preocupes, vou-me já embora.

Olhou para o menino e tentou sorrir. Então, o menino assinalou-lhe a cabeça e perguntou:

– Barbeaste-a?

Aquela pergunta fez o Pregador rir-se.

– Sim, queres tocar-lhe? – aproximou-se lentamente da cama e inclinou a cabeça. Depressa sentiu uma mãozinha sobre a sua cabeça. – Gostas?

O menino assentiu.

O Pregador aproximou-se novamente de Paige.

– A mulher do meu amigo, Melinda, estará esta manhã no consultório do médico e quero que vás vê-la. Pode dar uma olhadela ao menino.

– Disseste-me que é enfermeira, não foi?

– Sim, enfermeira especialista e parteira. Ajuda a trazer bebés ao mundo e esse tipo de coisas.

– Ah... – respondeu Paige, um pouco mais interessada, – provavelmente, é uma boa ideia. Mas não tenho muito dinheiro...

O Pregador desatou a rir-se.

– Aqui, não nos preocupamos com o dinheiro quando alguém precisa de ajuda. Não faz mal.

– Se tiveres a certeza...

– Claro que sim! Quando estiveres pronta, desce para o bar. Mel costuma chegar ao consultório às oito horas, mas demora o tempo que quiseres. Não costuma haver muitos doentes na zona e nem o médico nem ela têm muito trabalho.

– Está bem e depois ir-nos-emos embora.

– Eh... Se precisares, podes ficar alguns dias. Se o menino não se sentir bem ou se estiveres cansada de conduzir, podes...

– Acho que partirei ainda hoje.

– Para onde te diriges? Ontem, não me disseste.

– Para uma vila que fica um pouco mais longe daqui... Tenho uma amiga em... Vamos visitar uma amiga...

– Ah... Bom, de qualquer forma, pensa nisso. A oferta continua de pé.

 

 

Enquanto Christopher dava conta da tigela de cereais na cama, Paige maquilhava-se, vendo-se ao espelho da cómoda, tentando tapar a nódoa negra da face. E, pelo menos, conseguiu disfarçá-la. O que não conseguia disfarçar de maneira nenhuma era o corte do lábio. Christopher tinha-lhe tocado e dissera «mamã, dói-dói».

Reviveu então a última sova. O que mais a desconcertava era que nem sequer era capaz de recordar como tinha começado. Fora qualquer coisa sobre os brinquedos de Christopher, que estavam espalhados pela sala de estar, e depois tinha havido um problema com um fato de Wes. Recordava também que Wes não tinha gostado do jantar que lhe tinha preparado. Ou teria sido o que ela dissera sobre os brinquedos que tinha desencadeado a discussão?

– Meu Deus, Wes, claro que os brinquedos estão na sala de estar! O menino brinca com eles. Dá-me um minuto e...

Fora então que lhe dera uma bofetada? Não, fora depois, quando lhe tinha pedido que não ficasse nervoso, que iria apanhá-los.

Como era possível que não tivesse imaginado que ia reagir assim? Se calhar, porque nunca sabia como ia reagir. Andava tranquilos há vários meses. Mas, naquela tarde, quando Wes tinha voltado do escritório, tinha-o visto nos olhos dele. Tinha aquele olhar que lhe dizia que ia bater-lhe, sem que nenhum deles soubesse exactamente porquê. E, como acontecia sempre, quando se dera conta de que estava a entrar num terreno perigoso, já era demasiado tarde.

Depois daquela sova, tinha posto em acção o seu plano, consciente de que corria o perigo de perder o bebé que carregava na barriga, um bebé de que tinha falado a Wes há muito tempo. Mas isso não tinha impedido que Wes lhe batesse na barriga. Portanto, no dia seguinte, levantara-se da cama e tinha ido buscar Christopher à creche. Debbie, a rapariga da recepção, ficara petrificada ao ver-lhe a cara.

– O senhor... O senhor Lassiter pediu-nos que lhe telefonássemos se viesse buscar Christopher – dissera-lhe.

– Olha para mim, Debbie. Se calhar, nem que seja só por uma vez, podias esquecer-te de lhe telefonar.

– Eu não sei...

– Não vai fazer-te nada.

– Senhora Lassiter, devia chamar a polícia.

Paige tinha-se rido com amargura ao ouvi-la.

– Suponho que aches que não o fiz até agora...

Por fim, tinham conseguido sair da cidade com uma mala, quinhentos dólares no bolso e uma morada.

E ali estava, novamente sob um tecto esconso, terrivelmente assustada, porém, pelo menos, naquele momento, aparentemente a salvo.

Enquanto Christopher comia, esteve a bisbilhotar o quarto, sem tocar em nada. Não era um quarto muito grande, mas havia espaço suficiente para os pesos e para os aparelhos de ginástica do Pregador. Havia uma estante numa das paredes e também uma pilha de livros no chão. Enquanto olhava para eles, Paige permanecia com as mãos atrás das costas; força do hábito, Wes não gostava que tocasse nas coisas dele, só podia tocar livremente na roupa que tinha de levar para a máquina de lavar roupa. Os títulos pareciam-lhe arrepiantes: uma biografia de Napoleão, outro sobre a Segunda Guerra Mundial, outro sobre Hitler... Não havia nenhum livro de ficção, todos eram livros sobre o Exército ou sobre política, a maior parte exemplares antigos.

Quando Chris acabou o pequeno-almoço, Paige vestiu-lhe o casaco, depois vestiu o dela e pendurou a mala ao ombro. Deixou a mala de viagem fechada em cima da cama e pegou na bandeja do pequeno-almoço. Encontrou John na cozinha, com um avental, a virar um hambúrguer e atento também a uma omeleta.

– Entra, deixa a bandeja na bancada e já te atendo.

– Posso lavar isto, se quiseres...

– Não, eu faço-o.