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HarperCollins 200 anos. Desde 1817.

 

Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Os meninos da estrela amarela

Título original: Los niños de Le Chambon-Sur-Lignon

© 2017, Mario Escobar

© 2017, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Publicado originalmente pela HarperCollins Español uma divisão da HarperCollins Christian Publishing.

Tradutores: Rita Custódio e Àlex Tarradellas

 

Todos os direitos estão reservados, incluídos os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Christian Publishing, Nashville, U.S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

 

Imagem da capa: Shutterstock

 

ISBN: 978-84-9139-148-7

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Página de título

Créditos

Sumário

Carta do autor

Dedicatória

Citas

Prólogo

Primeira parte

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Segunda parte

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Terceira parte

Capítulo 26

Capítulo 27

Capítulo 28

Capítulo 29

Capítulo 30

Capítulo 31

Capítulo 32

Capítulo 33

Epílogo

Alguns esclarecimentos históricos

Cronologia

Agradecimentos

Sobre o autor

Galeria de imagens

Se gostou deste livro…

 

 

O livro Os meninos da estrela amarela deu-me a oportunidade de regressar aos misteriosos territórios da infância. Ao crescer perdemos a perspetiva daquela magnífica descoberta que significa nascer e contemplar o que nos rodeia com os olhos de uma criança. Cada centímetro que nos afasta do chão separa-nos irremediavelmente do mundo que sonhávamos mudar mas com o qual, na maior parte dos casos, temos de nos conformar. Este livro fala sobre esse tema: a capacidade que nós, os seres humanos, temos para transformarmos o mundo em cada geração, quando partimos novamente do zero e, para o bem ou para o mal, tudo volta a começar.

Os meninos da estrela amarela é um canto ao poder das pessoas comuns para mudarem a realidade. Há séculos que nos disseram que o povo é apenas um elemento passivo no futuro da História, mas a resistência civil foi, em muitos casos, a única capaz de resistir à tirania ou à opressão. Desde a rebelião da «plebe» na Roma Antiga, passando pela Revolução Americana até aos movimentos pacíficos pela independência da Índia ou o fim da segregação racial nos Estados Unidos, o poder das pessoas comuns sempre conseguiu transformar o mundo.

A primeira vez que entrei nos frondosos e verdes vales que rodeiam Le Chambon-sur-Lignon achei que estava no paraíso. Pequenas aldeias de pedra granítica com portadas de madeira de diferentes cores, hotéis vetustos com as suas fachadas enegrecidas por cem invernos despiedados, bucólicas quintas dispersas entre bosques frondosos de faias e abetos, que parecem absorver a intensa luz do estio. Ali tinha acontecido alguma coisa que mudou a História e que, de alguma forma, sabia que também me transformaria interiormente.

A história das crianças salvas pelos habitantes de Le Chambon-sur-Lignon e muitas aldeias limítrofes foi ignorada durante muito tempo. Depois da Segunda Guerra Mundial, os franceses preferiam esquecer o regime de Vichy e a perseguição daqueles a quem os colaboracionistas chamavam «párias» e «indesejáveis», mas, em 1989 o documentário Les Armes de l’Esprit resgatou esta bela história baseada em factos reais.

Os meninos da estrela amarela é a emocionante história de Jacob e Moisés Stein, os inesquecíveis protagonistas deste romance, que se converterão em pequenos heróis tendo como única arma a inocência para vencer o mal.

 

Madrid, 1 de julho de 2016.

 

 

A Elisabeth, Andrea e Alejandro, a minha maravilhosa família, que me acompanhou a Le Chambon-sur-Lignon, para viverem comigo a experiência transformadora deste livro.

 

Aos homens e mulheres de França que salvaram dezenas de milhares de judeus, refugiados políticos e apátridas das garras do Terceiro Reich.

 

 

«Quem salva uma vida salva o mundo inteiro.»

Talmude

 

 

«Um homem honesto refresca o ar viciado por um milhar de falsários.»

Memórias, Isaac Asimov

 

 

«Uma história extraordinária, que eleva assombrosamente o espírito.»

Newsweek (referindo-se ao que aconteceu em Le Chambon)

 

 

«We also remember the number 5,000 — the number of Jews rescued by the villagers of [the area of] Le Chambon, France — one life saved for each of [its] 5,000 residents [of the area]. Not a single Jew who came there was turned away, or turned in. But it was not until decades later that the villagers spoke of what they had done — and even then, only reluctantly. The author of a book on the rescue found that those he interviewed were baffled by his interest. «How could you call us.»

 

«Também recordamos o número 5000, o número de judeus resgatados pelos habitantes da área de Le Chambon, em França, uma vida salva por cada um dos seus 5000 residentes. Nem um judeu que ali chegou foi rejeitado. Mas só décadas mais tarde é que os habitantes falaram sobre aquilo que tinham feito — e mesmo assim, só de má vontade. O autor de um livro sobre o resgate concluiu que aqueles aos quais entrevistou se sentiam confusos com o seu interesse. “Como é que o senhor nos pode chamar bons?”, disseram. “Nós fizemos o que tínhamos de fazer.”»

O presidente Barack Obama fala perante o Capitólio sobre Le Chambon-sur-Lignon a 23 de abril de 2009.

 

 

«Ici, dans l’épreuve, s’est affirmée l’âme de la nation. Ici, s’est incarnée la conscience de notre pays. Le Chambon-sur-Lignon est un lieu de mémoire. Un lieu de résistance. Un lieu symbole de la France fidèle à ses principes, fidèle à son héritage, fidèle à son génie. Sur ce haut plateau, aux hivers rudes, dans la solitude, parfois le dénuement, souvent dans l’adversité, des femmes et des hommes portent depuis longtemps les valeurs, des valeurs, qui nous unissent. Dans ce qui fut l’une des régions les plus déshéritées de notre pays, bravant tous les périls, ils ont fait le choix du courage, de la générosité et de la dignité. Ils ont fait le choix de la tolérance, de la solidarité et de la fraternité. Ils ont fait le choix des principes humanistes qui rassemblent notre communauté nationale…»

 

«Aqui, na adversidade, confirmou-se a alma da nação. Aqui, teve origem a consciência do nosso país. Le Chambon-sur-Lignon é um lugar de memória. Um lugar de resistência. Um lugar símbolo da França fiel aos seus princípios, fiel à sua herança, fiel ao seu génio. Sobre este elevado planalto, em invernos duros, na solidão, às vezes na indigência, com frequência na adversidade, mulheres e homens transportam há tempo os valores, os valores que nos unem. Naquela que foi uma das regiões mais deserdadas do nosso país, desafiando todos os perigos, escolheram a coragem, a generosidade e a dignidade. Escolheram a tolerância, a solidariedade e a fraternidade. Escolheram princípios humanistas que reúnem a nossa comunidade nacional…»

Jacques Chirac, presidente da República, Le Chambon-sur-Lignon (8 de julho de 2004)

Prólogo

Paris, 23 de maio de 1941

 

«Cada geração alberga a esperança de que o mundo volte a começar.» Aquelas foram as últimas palavras do seu pai na estação de comboios. Tinha-se posto de cócoras com o seu fato cinzento acabado de passar a ferro até ficar à altura do seu filho Moisés. O menino tinha olhado para ele com os seus grandes olhos negros e tinha suspirado, sem compreender na totalidade aquilo que o pai lhe queria dizer. A estação encheu-se de um fumo branco com um estranho perfume adocicado. A sua mãe olhou-os com os olhos marejados de lágrimas e os pómulos avermelhados, como se acabasse de fazer um esforço sobre-humano. Moisés ainda se lembrava das suas luvas brancas e finas, do seu tato frio e húmido na última primavera e da sensação de que o seu pequeno mundo se desmoronava totalmente. O pai tentou esboçar um sorriso por baixo do fino bigode castanho, mas no fim o seu rosto contorceu-se numa careta dolorosa. O mais novo agarrou-se às pernas da mãe, a saia de lã verde colou-se ao seu nariz ensopado pelas lágrimas. Jana passou a mão pelo seu cabelo louro e baixou-se, apertou as duas bochechas rosadas do filho mais novo e beijou-o com os seus lábios púrpura enquanto as suas lágrimas se juntavam às do pequeno.

Jacob puxou o irmão, o comboio apitou pela última vez e o vapor começou a sair dos pistões como se aquela imensa estrutura de ferro e madeira estivesse a suspirar pelas almas que tinha de separar. A sua tia Judith abraçou-os pelo peito, com um gesto que era uma mistura de proteção e de inquietação. À sua volta, os soldados alemães moviam-se como traças atraídas pela luz e, embora naquela manhã não tivessem posto as estrelas amarelas ao peito, em alguns momentos a mulher pensava que os nazis os podiam detetar só ao escrutá-los com os seus olhares azulados e pétreos.

Eleazar e Jana viraram-se, os seus casacos esvoaçaram entre as pessoas que começavam a acenar em sinal de despedida. No meio daquele interminável oceano de braços no ar, Jacob e Moisés viram os seus pais a afundarem-se no nada até desaparecerem completamente. Moisés agarrou na mão da tia, apertou-a com força como se se quisesse assegurar de que pelo menos ela ficaria ao seu lado. Judith virou a cabeça e observou o cabelo cortado à tigela do seu sobrinho; as suas madeixas louras brilhavam sob o sol que se filtrava pelas claraboias da estação. Depois olhou para o outro menino. Jacob parecia impassível, com o cabelo castanho-escuro, encaracolado e os seus olhos negros e grandes. A sua expressão era de zanga, quase de ira. Na noite anterior tinha suplicado aos seus pais que os levassem de Paris, que se portariam bem, mas Eleazar e Jana não podiam aceder ao seu pedido, pelo menos até terem um lugar seguro no qual se esconder. Não fariam nada às crianças e a tia Judith era demasiado velha para fugir. Ela tinha-os acolhido seis anos antes, quando já não aguentaram mais a pressão em Berlim. Em certo sentido, a tia Judith era mais francesa do que alemã, ninguém a incomodaria.

Saíram da estação quando o céu começou a ficar de um azul plúmbeo e as primeiras gotas frias apareceram sobre as pedras da calçada. A mulher abriu o guarda-chuva verde e abrigaram-se os três em silêncio, a tentarem resguardar-se de um aguaceiro tão intenso que nada poderia evitar que chegassem ensopados ao seu pequeno apartamento do outro lado de Paris, precisamente onde a cidade perdia a sua beleza para se converter num cenário descascado e cinzento no qual o glamour dos cafés e dos belos restaurantes parecia uma miragem longínqua. Apanharam o metro, depois um troleibus oxidado e barulhento. Os dois rapazes acomodaram-se no banco de madeira da frente, enquanto a tia se sentou logo atrás, deixando que os seus olhos se tentassem desafogar do esforço que fez para não chorar. Moisés olhou para o irmão, que ainda permanecia com o sobrolho franzido; as suas sardas misturavam-se com as gotas de chuva, e os seus lábios contraídos pareciam estar prestes a explodir. Ele não entendia o mundo, o seu irmão chamava-lhe sempre «inconsciente», mas sabia que o que tinha acontecido era suficientemente mau para que os seus pais tivessem de deixá-los. Nunca tinham estado sozinhos. Para ele, a sua mãe era uma extensão de si próprio. À noite, apesar dos protestos do pai, dormia colado a ela, como se o simples contacto da sua pele o acalmasse. O seu cheiro era o único perfume que suportava e sabia que nos seus belos olhos verdes estaria sempre a salvo. O pequeno olhou pelos vidros sujos, as figuras fantasmagóricas dos transeuntes confundiam-se com as carrinhas de distribuição e com as velhas carroças que deixavam as ruas inundadas da pestilência dos seus cavalos de carga. Aquele era o seu mundo, ele tinha nascido na Alemanha, mas não recordava nada do seu país. A mãe ainda lhe falava na sua língua, embora ele sempre lhe respondesse em francês, como se de alguma forma quisesse deixar para trás aquele lugar do qual tinham tido de fugir. Para onde é que iriam agora? Sentia que o mundo começava a fechar-se atrás de si, como quando no pátio da escola os colegas o evitavam, como se a estrela amarela do seu peito lhes provocasse algum tipo de medo ou náusea. «Os meninos da estrela amarela», chamavam-lhes, mas ele sempre tinha pensado que as estrelas eram as luzes que Deus tinha criado para que a noite não conseguisse devorar tudo. Porém, o mundo parecia agora um firmamento órfão de estrelas, escuro e frio como o armário no qual se escondia sempre para pregar uma partida aos pais e do qual desejava sair o mais depressa possível, para que a imensa negrura não acabasse por engoli-lo para sempre.

 

PRIMEIRA PARTE

 

1

Paris, 16 de julho de 1942

 

Jacob ajudou o irmão a arranjar-se, fazia-o há tanto tempo que os seus movimentos eram automáticos. Mal falavam enquanto lhe tirava o pijama, lhe vestia as calças e a camisa e lhe calçava os sapatos. Moisés permanecia quieto, com o olhar perdido e uma expressão de indiferença que às vezes provocava no irmão uma certa angústia. Sabia que já tinha idade para se vestir por si próprio, mas de alguma forma Jacob queria demonstrar-lhe que não estava sozinho, que permaneceriam juntos até ao fim e que iriam ter com os pais à primeira oportunidade.

A primavera tinha passado rapidamente, mas o verão, caloroso e sem aulas, parecia interminável. A tia Judith saía muito cedo para o trabalho, mas eles tinham de preparar o pequeno-almoço, arrumar e limpar o apartamento, comprar alguma comida no mercado e ir à sinagoga para receberem a preparação para o bar mitzvá. A tia Judith tinha insistido muito nisso, Jacob já tinha quase a idade para se converter num bom judeu. Ele achava que aquilo tudo era uma estupidez. Os seus pais nunca os tinham levado à sinagoga, nem sequer eles sabiam praticamente nada sobre o judaísmo até chegarem a Paris. A tia era muito devota, sobretudo após a morte do marido na Primeira Guerra Mundial.

Jacob acabou de se vestir e ajudou o irmão a lavar a cara; depois dirigiram-se os dois à pequena cozinha de azulejos brancos, que tinham perdido o brilho de tanto esfregá-los. A mesa descascada, pintada de uma cor azul-celeste, já tinha numa cesta umas fatias de pão escuro e um pouco de queijo. Jacob pegou num bocadinho de leite, ferveu-o no humilde bico de gás e serviu-o fumegante em duas tigelas brancas.

Moisés comeu com avidez, como se alguém lhe fosse roubar o pedaço de pão. Aos seus oito anos, não passava nem um segundo no qual não sentisse uma fome devoradora. O irmão também era capaz de comer tudo o que estivesse ao seu alcance, por isso a tia guardava as provisões à chave numa pequena despensa que dava para a cozinha. Todos os dias lhes dava uma pequena dose para o pequeno-almoço e o almoço; à noite preparava-lhes um jantar frugal que costumava consistir numa sopa com pouquíssima aletria ou num creme de legumes. Aquela era pouca comida para dois jovenzinhos em pleno crescimento, mas a ocupação alemã, cada vez mais opressiva, estava a esgotar as reservas do país.

Os franceses, sobretudo os parisienses, tinham fugido em massa no verão de 1940 para o Sul do país, mas uns meses mais tarde tinham regressado aos seus lares, ao verem que a barbárie alemã não era assim tão terrível como tinham imaginado. A família de Jacob não tinha saído da cidade naquele momento, apesar de serem exilados alemães, mas o pai tinha tomado a precaução de se refugiar na casa da irmã, com a esperança de que os nazis não os encontrassem facilmente.

Jacob sabia que para os seguidores de Hitler a sua família era duplamente maldita: o pai tinha sido militante no partido socialista, durante anos tinha escrito várias obras satíricas contra os nazis, já para não falar de que tanto a sua mulher como ele eram judeus, uma raça maldita para os nacional-socialistas.

Paris encontrava-se sob o domínio direto dos alemães, representados pelo marechal Wilhelm Keitel. Os nazis deixavam o povo arruinado. Naquela primavera de 1942 era quase impossível encontrar café, açúcar, sabão, pão, azeite ou manteiga. Felizmente, a tia Judith trabalhava para uma família aristocrática que, graças ao mercado negro, estava sempre bem abastecida e lhe dava alguns alimentos básicos que teriam sido impossíveis de conseguir com os cartões de racionamento.

Após o frugal pequeno-almoço, os dois irmãos saíram à rua. A noite tinha estado muito abafada e a manhã pressagiava um calor infernal. Os dois meninos correram escadas abaixo. Nas suas camisas gastas e cerzidas pela tia destacavam-se as estrelas de David reluzentes com a sua intensa cor amarela.

O pátio interior distribuía o edifício em quatro blocos, os mais luxuosos davam para a rua e os mais pobres para o imenso pátio interior empedrado. Assim que lá chegaram, perceberam que havia algo que estava a correr mal. Dirigiram-se depressa à rua. Num lado do passeio estavam estacionados mais de vinte autocarros escuros com os tetos brancos. As pessoas amontoavam-se à volta deles, enquanto uns gendarmes com luvas brancas e cassetetes as empurravam para dentro.

Jacob sentiu um calafrio que lhe percorreu a espinha e agarrou na mão de Moisés com força, até que este se queixou e se tentou soltar.

— Porra, não largues a minha mão! — gritou Jacob enquanto franzia o sobrolho e voltava a puxar o irmão até ao edifício.

Mal tinham começado a entrar no prédio quando a porteira, apoiada na sua vassoura, olhou para eles com desprezo e começou a gritar aos gendarmes.

— Não vão levar estas ratazanas judias?

Os dois rapazes olharam um para o outro e começaram a correr para o seu bloco. Três dos gendarmes ouviram a voz estridente da porteira e viram os meninos a correr para o outro lado do pátio. O cabo fez um gesto com a mão e os seus dois homens seguiram-no, enquanto não parava de tocar um apito preto e de brandir um cassetete pelo ar.

Os irmãos correram pelo chão de madeira por envernizar, de escadas desgastadas e tábuas partidas, sem conseguirem evitar que os seus sapatos criassem um estrondo difícil de disfarçar. Os gendarmes levantaram os olhos até chegarem ao vão da escada. Enquanto o cabo subia pelo elevador, os outros dois agentes começaram a correr degraus acima.

Jacob e Moisés chegaram ofegantes até à porta da sua casa, o pequeno agarrou-se à maçaneta, mas o mais velho puxou-o e continuaram a subir até à açoteia. Os dois tinham passado muitas horas nos estendais, a esconderem-se entre os lençóis estendidos, a caçarem pombos com as suas fisgas ou a contemplarem a cidade do outro lado do Sena.

Quando chegaram à porta de madeira ofegantes, pararam uns segundos depois de atravessarem o limiar e apoiaram as mãos nos joelhos, como se tentassem lamber o ar daquele lugar negro e sujo. Depois, Jacob dirigiu-se ao fundo do prédio. Os telhados sucediam-se numa fila quase interminável de açoteias, telhas e grandes terraços que eram aproveitados por alguns parisienses para plantar hortaliças. Subiram por umas escadas de ferro oxidado coladas à parede e caminharam inseguros entre as telhas.

Os gendarmes viram-nos desde a açoteia. Então o cabo, que, apesar de ter subido pelo elevador, parecia esgotado, começou a tocar o apito de novo.

Jacob virou-se um instante, talvez para comprovar a distância que os separava daqueles homens vestidos de preto, ou simplesmente de maneira instintiva, como um pequeno veado que, perseguido por uma matilha de cães, tem dúvidas de se estes já o alcançaram ou não.

Os dois gendarmes mais novos subiram pelas escadas de forma desajeitada, depois seguiram-no, partindo meia dúzia de telhas à sua passagem, e em poucos segundos pareciam tê-lo quase alcançado.

Jacob pisou entre duas telhas e sentiu um estalido, a sua perna meteu-se por um buraco e foi invadido por uma dor insuportável na canela. Quando conseguiu tirá-la do buraco, o sangue corria-lhe pela perna até às meias brancas. Moisés ajudou-o a pôr-se de novo de pé e continuaram a correr até ao último prédio do quarteirão. Um abismo de pouco mais de dois metros separava o telhado da fachada da frente.

Moisés olhou para os seus perseguidores e depois para o abismo iluminado pela intensa luz do verão. Ao fundo, a escuridão parecia absorver tudo o que ousara cair no seu interior. Depois virou-se para Jacob com o rosto desfigurado, sem saber o que fazer.

O seu irmão reagiu com rapidez. Mesmo aos seus pés havia um pequeno terraço. Dali, uma cornija rodeava a fachada até à rua principal. Talvez pudessem entrar numa casa e daí regressar à rua para se tentarem confundir entre a multidão. Saltou sem pensar duas vezes e esticou os braços para ajudar o irmão mais novo mas, quando este já estava a voar no vazio, umas mãos agarraram-lhe com força as pernas. A criança desabou sobre o telhado com um forte impacto.

— Jacob! — gritou o pequeno, preso.

Por uns instantes, o irmão mais velho não soube o que fazer. Não podia abandonar Moisés, mas se subisse de novo ao telhado, iriam cair os dois nas mãos da polícia. Desconhecia as suas intenções, mas os pais já os tinham avisado de que os nazis os estavam a enviar para campos de concentração na Alemanha e na Polónia.

O cabo assomou-se ao abismo e viu o menino judeu a tentar alcançar a cornija.

— Maldito miúdo! — berrou enquanto arrebatava o pequeno das mãos do seu subalterno e o agarrava por um tornozelo, balançando-o sobre o telhado.

— Não! — gritou o rapaz.

O rosto do seu irmão mais novo estava arroxeado pelo medo e agitava-se como um peixe acabado de sair da água.

— Sobe para aqui. Não vais querer que o teu irmão caia, pois não? — disse o homem com um sorriso sinistro, enquanto tirava o menino do telhado.

O coração de Jacob começou a palpitar com força, podia senti-lo nas têmporas e na ponta dos dedos enquanto apertava os punhos. A sua respiração agitou-se, levantou as mãos e tentou gritar, mas a sua voz não lhe respondeu.

— Sobe para aqui, agora! Já nos fizeram perder tempo suficiente. Maldita raça dos diabos!

O pequeno observou nos olhos fundos do cabo um ódio que não entendia, mas que já tinha visto em muitas outras pessoas nos últimos meses. Subiu pela parede até ao telhado e colocou-se diante do cabo.

O homem era alto e gordo, a sua barriga parecia prestes a explodir no casaco da farda. Tinha o chapéu de lado e a gravata com o nó meio desfeito. O seu rosto estava vermelho, o seu bigode escuro mexia-se sem parar, enquanto os seus lábios se franziam como se cuspisse as palavras.

Assim que o jovem pôs os pés no telhado, os outros dois gendarmes agarraram-no pelos braços e levaram-no pelo ar até ao primeiro prédio. Depois desceram de elevador até ao rés-do-chão e meteram-nos de novo no pátio.

Ao passarem ao lado da porteira, esta sorriu, como se a captura dos dois irmãos lhe tivesse alegrado o dia. Quando passaram mesmo em frente dela viram como a velha lhes cuspia para cima.

— Escória estrangeira comunista! Não quero nem mais um judeu neste prédio.

Jacob olhou-a desafiante, conhecia-a muito bem. Era uma coscuvilheira e uma mentirosa. A sua tia tinha-a ajudado há uns meses a pedir os cartões de racionamento. A porteira não sabia ler nem escrever e tinha um filho deficiente que mal saía de casa. Foram muitas as vezes em que, à tarde, o subia a muito custo até ao pátio e o sentava numa cadeira, enquanto o jovem mal formado, coxo e cego se limitava a abanar-se sem parar.

Moisés, que mal se tinha recuperado do susto, olhou surpreendido para a mulher. Apesar de estar sempre a refilar com eles por entrarem a correr ou por incomodarem os vizinhos com os seus gritos ou pelo barulho que faziam ao subirem ou descerem as escadas, nunca lhe tinham feito nada.

Quando saíram à rua repleta de gente, os autocarros já estavam quase cheios. Os gendarmes empurravam as mulheres, batiam nas crianças e instavam os idosos a despacharem-se. Não havia muitos homens jovens, a maior parte estava escondida há meses. Aquele exército de desamparados movia-se impulsionado pelo medo e pela incerteza, como um rebanho de borregos silenciosos prestes a serem sacrificados, incapazes de imaginarem que aqueles gendarmes do país mais livre do mundo os levavam para o matadouro, perante o olhar impassível dos seus vizinhos e amigos.

Os autocarros começaram a arrancar enquanto Moisés olhava absorto pela janela. Sentiu algo parecido à emoção de um passeio. Ao seu lado, Jacob contemplava os rostos assustados dos restantes passageiros, que evitavam olhar diretamente para os seus olhos, como se se sentissem invisíveis perante o desprezo de um mundo do qual já não faziam parte.

2

Paris, 16 de julho de 1942

 

Os autocarros foram parando em frente de um gigantesco edifício, os gendarmes saíram dos seus camiões e colocaram-se numa longa fila para impedirem que os judeus se pudessem escapulir pelas ruas mais próximas. Nesse instante, o sol começava a afligir os desgraçados passageiros daquela viagem sinistra, mas Jacob e Moisés não paravam de olhar para a Torre Eiffel, que se podia ver atrás deles, como se não quisessem reconhecer a realidade que os rodeava.

Os gendarmes golpearam com os seus cassetetes a chapa dos autocarros para que os condutores abrissem as portas. Os passageiros olharam-se indecisos, ninguém queria ser o primeiro a sair. Em silêncio durante o trajeto, a incerteza tinha-se apoderado das suas almas de tal forma que a resignação parecia ser a única resposta perante a sua inesperada detenção. A maior parte eram judeus estrangeiros, embora também alguns franceses tivessem caído na teia de aranha tecida sobre toda a sua raça. Um homem mais velho vestido com uma bata de trabalho levantou-se e dirigiu-se aos passageiros assustados.

— Temos de agir com calma. Provavelmente, os franceses trazem-nos aqui para nos protegerem. Este país nunca permitiria que nos deportassem para a Alemanha. Talvez estejamos ocupados e a horda alemã domine as nossas vidas, mas os valores da República permanecem intactos.

Um dos poucos homens jovens que estavam no veículo empurrou o idoso e olhou desafiante para os outros passageiros.

— Vocês são borregos ou pessoas? Por acaso não viram que desde a ocupação o governo francês nos obrigou a registarmo-nos nos seus arquivos, nos proibiu de trabalhar em quase todos os ofícios e nos obrigou a usar estas malditas estrelas como na Alemanha? O que nos espera lá dentro é uma prisão, para depois nos enviarem em comboios para o Norte.

Uma mulher vestida com um fato elegante e um chapéu azul preparou-se para sair do autocarro, o homem meteu-se à sua frente e ela empurrou-o com força.

— Deixe-me passar, por amor de Deus! Não intimide estes coitados. Não sabemos qual será o nosso destino, mas por acaso não fomos sempre perseguidos e conseguimos sobreviver?

Os restantes passageiros começaram a inundar o corredor e a empurrarem-se uns aos outros inquietos. Fora dos autocarros, uma comprida fila de homens, mulheres e crianças marchava a passo lento até umas portas imensas. Sobre elas podia-se ler num cartaz com letras estilizadas: VEL’ D’HIV.

Jacob e Moisés conheciam aquele lugar. Uma vez tinham ido com o pai a uma corrida de ciclismo. O Velódromo servia para desfrutar de competições ciclistas no inverno e nele organizavam-se todo o tipo de celebrações.

Um rapaz que tinha estado sentado atrás dos irmãos inclinou-se para eles e perguntou-lhes:

— Vocês são os irmãos Stein?

Os dois rapazes viraram-se. Era um alívio conhecer alguém entre essa multidão de desconhecidos.

— Sim — respondeu Jacob enquanto se levantavam. Eram os últimos da fila que se tinha formado no corredor do autocarro.

— Eu sou o Joseph, o filho do canalizador. Estudávamos juntos na sinagoga, mas no verão o meu pai levou-me a trabalhar numas obras. Vocês não o viram?

— Não, és a primeira pessoa conhecida que encontramos — respondeu Jacob.

— Esta manhã esmurraram a porta da nossa casa, o meu pai saiu com uma chave inglesa na mão, mas ao ver que eram os gendarmes deixou-a no hall de entrada. Disseram-nos para levarmos uma manta por pessoa, uma camisa e mais nada. Quando descemos para os autocarros, perdi-os de vista.

— A nós não nos foram buscar, mas a porteira começou a gritar e fomos seguidos por uns gendarmes. Tentámos fugir pelos telhados, mas apanharam-nos — explicou o irmão mais velho.

Um gendarme assomou-se pela porta e gritou-lhes:

— Malditos miúdos! Saiam imediatamente daí!

Os rapazes caminharam temerosos até à porta. Moisés observou por uns segundos o condutor, este olhou-o diretamente nos olhos, mas depois baixou a cabeça. Aquele tinha sido o trabalho mais duro de toda a sua vida. Não sabia o que é que queriam fazer com toda aquela gente, mas tinha vergonha de ver os franceses a colaborarem com os nazis. Desde a ocupação, tinha tentado passar despercebido; qualquer um que tivesse sido militante num partido ou num sindicato era suspeito de alta traição na França.

Jacob saiu primeiro e olhou desafiante para o gendarme; o polícia franziu o sobrolho e indicou-lhes o caminho com o cassetete. Naquele curto intervalo, a maior parte das pessoas tinha entrado no edifício. Moisés agarrou-se ao seu irmão e Joseph seguiu-os por um corredor largo. À medida que se aproximavam do fim, começou a ouvir-se um burburinho que crescia até se converter quase em ensurdecedor. Entraram na gigantesca cúpula e olharam para as bancadas; depois, os seus olhos pararam na pista inclinada para as competições e no comprido retângulo central no qual se tinham colocado algumas tendas da Cruz Vermelha.

— Meu Deus! — exclamou Moisés. Tinha a boca aberta, os seus olhos eram incapazes de abranger aquele espaço imenso, mal se lembrava da vez em que visitaram o Velódromo com o pai.

— Há milhares de pessoas — comentou Joseph um pouco angustiado, sabia que não ia ser fácil encontrar a sua família.

Um funcionário sentado a uma mesa de madeira velha e gasta fez-lhes um gesto. As três crianças caminharam em fila até ele.

— Nome e apelido — disse o homem sem olhar para a sua cara. Tinha uns óculos redondos atados num cordel ao casaco; o seu pequeno nariz segurava as lentes num equilíbrio quase impossível. — Estão surdos, rapazes?

— Porque é que nos trouxeram aqui? — perguntou Jacob.

O funcionário ficou surpreendido com a ousadia do rapaz, deixou a caneta em cima da mesa e cruzou os braços.

— Onde é que estão os teus pais? Será que não te deram um pouco de educação? — perguntou o funcionário com a sua voz estridente.

— Educação? Tiram-nos das nossas casas a meio da noite, trazem-nos arrastados para aqui e fecham-nos como animais. Quer mesmo que lhe mostre mais educação? — respondeu Jacob levantando a voz.

O gendarme aproximou-se ao ouvir o tom do jovem, tirou o seu cassetete e, com o sobrolho franzido, aproximou-se dos rapazes.

Moisés puxou a manga da camisa do irmão e este virou-se mesmo a tempo. O cassetete bateu na mesa e, antes de o polícia o levantar de novo, os três rapazes começaram a correr em direção à turba. O gendarme seguiu-os, mas, quando se esconderam entre a multidão, vários homens começaram a rodeá-lo.

— Algum problema, gendarme?

O polícia compreendeu que não era boa ideia exaltar mais os ânimos, depois logo ia ter tempo para encontrar aqueles pirralhos. De qualquer forma, não poderiam sair dali.

Jacob olhou para trás, o gendarme afastava-se de novo até à porta. Nesse momento arrependeu-se por se ter alterado, talvez o tivessem informado sobre onde é que estava a sua tia Judith ou pudessem ter entrado em contacto com ela de alguma forma.

— O que é que vamos fazer? — perguntou Moisés, ofegante.

— Não sei — respondeu o irmão mais velho.

O menino abraçou-o e começou a chorar. Os seus pequenos soluços eram um sussurro no incessante burburinho das pessoas. Jacob ergueu o olhar. A luz entrava pelos imensos vidros do teto, estavam ao pé da pista. Lembrou-se daquela manhã de domingo com o pai há dois anos no Velódromo, mesmo antes de os nazis ocuparem a França. Naquele momento, o estádio tinha-lhe parecido um lugar mágico; agora, aquela jaula assemelhava-se demasiado a um túmulo do qual não havia escapatória.

— Tenho de encontrar os meus pais — disse Joseph, e começou a andar.

— Espera, nós vamos ajudar-te. Talvez a nossa tia também esteja aqui.

Os três começaram a caminhar à beira da pista. As pessoas encostavam-se e tentavam ficar confortáveis. O calor já começava a ser sufocante; à tarde, aquele lugar converter-se-ia num verdadeiro inferno.

Moisés olhou para uma mulher sozinha com dois gémeos. A jovem não parava de chorar enquanto contemplava os dois meninos ao seu lado. Uns metros mais à frente, um idoso em roupa interior ria-se enquanto a sua esposa tentava voltar a vestir-lhe a roupa. Uns rapazes corriam de um lado para o outro a explorarem o terreno. O mundo parecia ter-se desorganizado, como se a guerra os tivesse convertido a todos num medonho reflexo de si próprios.

Jacob pôs a sua mão no ombro do irmão, não queria que se perdesse, não tinha a certeza de poder voltar a encontrá-lo.

A multidão começou a acalmar, como uma seara que, após ser sacudida pela tempestade, volta pouco a pouco a uma quietude inquietante. Parte do burburinho desapareceu. As pessoas tinham perdido a vontade de falar, de se queixarem ou de reclamarem perante os gendarmes. Só procuravam um lugar no qual descansar, os mais fortes tiravam os mais fracos dos melhores lugares. As primeiras enfermeiras apareceram por uma das portas baixas, dirigiram-se às tendas e fecharam-se até avaliarem a situação.

De repente ouviu-se o primeiro golpe. Os três rapazes olharam para trás, não sabiam de que é que se tratava. Um burburinho de horror transformou-se em gritos de pânico. As pessoas começaram a afastar-se de alguma coisa ou de alguém. Jacob apoiou-se no corrimão e pôs-se em bicos de pés para ver melhor. O corpo ensanguentado de uma mulher agitava-se no estrado de madeira e começava a deslizar para baixo deixando um rasto de sangue.

— O que é que se passa? — perguntou Moisés.

Antes de o menino poder ver o que tinha acontecido, Jacob empurrou-o para dentro. Moisés queixou-se e tentou aproximar-se de novo. O seu irmão tapou-lhe os olhos com uma mão, enquanto com a outra o puxava para dentro.

Então ouviram-se outros golpes secos, os gritos de horror espalharam-se como um vento violento, enquanto o Velódromo começava a tingir-se de vermelho. Nesse momento, Jacob percebeu que tinha de tirar o seu irmão dali o mais depressa possível. Aquele lugar era o mais parecido ao inferno na terra que alguma vez tinha visto. Meteram-se nos corredores que comunicavam com os diferentes andares. Tinham uma missão, procurar a família de Joseph e tentar averiguar o que tinha acontecido com a tia, para fugirem dali antes que fosse demasiado tarde.

3

Paris, 16 de julho de 1942

 

O dia parecia interminável. Sentiam-se sedentos, esfomeados e cansados. Os bebés gritavam e choravam pelo calor, as enfermeiras tentavam distribuir o pouco leite que tinham às mães que discutiam e gritavam angustiadas. O sufoco era tão intenso que a maior parte dos homens estava em camisola interior, as mulheres abanavam as crianças com os seus chapéus ou com papéis. Alguns tentavam procurar os seus entes queridos dos quais se tinham perdido e gritavam os seus nomes numa cadência tão monótona e triste que as suas vozes se confundiam com as das famílias que tentavam comer com dentadas pequenas a pouca comida que lhes restava.

Os três rapazes caminhavam sem parar. Às quatro horas já conheciam quase todas as escadas, tinham visitado o hospital de emergência e tinham subido até à parte mais alta do edifício. Os gendarmes conformavam-se com controlar as saídas e não se atreviam a atravessar as portas. Vários maqueiros tinham tirado os corpos dos suicidas, mas os seus regueiros de sangue continuavam a secar sobre o circuito de madeira.

— Procurámos por todo o lado, acho que a tua família não está cá — disse Jacob ao seu amigo. O rosto de Joseph apagou-se de repente e deixou escapar umas lágrimas silenciosas, limpou-as com a mão e baixou a cabeça.

Jacob sabia exatamente como se sentia. A partida dos pais há mais de um ano tinha-lhe provocado uma sensação de solidão e insegurança tão grandes que acordava a meio da noite ensopado em suor e a gritar pelo nome da mãe.

— Anima-te, se calhar é uma boa notícia — disse o rapaz a apoiar as suas duas mãos nos ombros do menino.

— Se não estão aqui, onde é que estarão?

Um homem mais velho, vestido com um impecável fato assertoado, levantou-se e aproximou-se dos rapazes. Tinha ouvido tudo. Tirou os óculos e baixou-se um pouco.

— Alguns foram levados para o Campo de Drancy, a doze quilómetros a noroeste de Paris, talvez a tua família esteja entre eles. Devias dizê-lo aos voluntários da Cruz Vermelha ou a algum funcionário.

O pequeno tentou controlar o pranto, mas tinha um nó na garganta e a respiração entrecortada.

— Muito obrigado, senhor — respondeu Joseph.

Quando os três meninos deixaram o homem, Jacob disse em voz baixa ao seu amigo:

— Nem te atrevas. Pode ser que a tua família esteja nesse lugar, mas não vais poder ajudá-los se te levarem com eles.

— Não te estou a perceber. O que é que podemos fazer mais?

— Fugir — soltou-lhe Jacob, quase num sussurro.

Aquela ideia nem sequer tinha passado pela cabeça de Joseph. Durante as últimas horas tinham percorrido quase todo o Velódromo. As saídas estavam vigiadas, não podiam escapar pelo telhado, tentar fugir dali era uma verdadeira loucura.

— Por onde é que vamos escapar? — perguntou Moisés.

— De certeza que há uma maneira de sair daqui sem levantar suspeitas — disse Jacob com um tom firme, como se estivesse muito seguro do que dizia.

— Mesmo que houvesse, para onde é que vamos? — perguntou Joseph, a encolher os ombros.

— Vamos procurar a nossa tia Judith, ela vai saber o que fazer — respondeu Jacob. Sabia que aquela era uma resposta simples. Ele era do tipo de pessoa que preferia enfrentar cada problema depois de ter resolvido o anterior.

O rapaz levantou o olhar. Contemplou o estádio com outra perspetiva. Tinha de encontrar o seu ponto fraco e sair dali o mais depressa possível.

— Jacob, tenho sede — disse insistentemente Moisés.

A cara do seu irmão mais novo estava muito pálida e os seus lábios completamente secos. Depois olhou para as tendas da Cruz Vermelha.

— É melhor conseguirmos um pouco de água e de comida — disse, enquanto descia pela rampa para ir mais depressa.

— Nas casas de banho há torneiras — comentou Joseph, seguindo-o.

— Não passaste ao lado das casas de banho? O cheiro a urina é insuportável, não entraria ali nem por todo o ouro do mundo — disse Moisés, muito sério.

— Eles vão dar-nos água — disse Jacob e apontou para as tendas.

Quando chegaram à parte mais baixa viram os gendarmes. Pareciam custodiar os voluntários da Cruz Vermelha, mas na realidade estavam preocupados com o facto de as pessoas poderem roubar a pouca comida que havia no estádio.

— Onde é que vão? — perguntou um dos polícias quando viu os três rapazes a aproximarem-se.

— Não bebemos nem comemos nada durante o dia todo — disse Jacob a tentar pôr a sua cara mais triste.

O gendarme era muito jovem, a sua farda nova e reluzente parecia acabada de sair da lavandaria. Primeiro franziu o sobrolho, como se a presença dos três rapazes o importunasse, mas depois, quando verificou que os seus colegas não estavam a olhar para ele, tirou de um dos seus bolsos um bocadinho de pão e deu-o aos rapazes.

— Na cave há umas mangueiras anti-incêndios, aí podem beber um pouco de água fresca. Vão naquela direção.

O gendarme apontou para uma pequena porta disfarçada no chão de betão. Desceram umas escadas e abriram com cuidado, não queriam chamar muito a atenção. A sala estava às escuras, Jacob percorreu às apalpadelas a parede húmida e fria até encontrar o interruptor da luz. Acendeu-se uma lâmpada com pouca potência, coberta de sujidade, que projetava uma fraca luz empoeirada.

Desde a chegada ao Velódromo, era a primeira vez que não sentiam o sufocante calor de julho. Nas entranhas do estádio, a temperatura mantinha-se baixa e a sensação era quase de frescura. Caminharam por um longo corredor, acenderam vários interruptores e chegaram ao que pareciam duas bocas de incêndio.

Joseph abriu com dificuldade uma porca gigante e começou a sair água pela mangueira. Moisés agarrou-se a ela e bebeu com avidez. Quando ficou completamente saciado, foi substituído por Joseph e, por último, por Jacob.

Os três rapazes sentaram-se num monte de entulho de alguma possível avaria anterior e começaram a dividir o pão que o gendarme lhes tinha dado. Não era muito, mas pelo menos pareceu acalmar-lhes a fome durante algum tempo.

— Acho que descobrimos o melhor sítio do Velódromo — disse Joseph num tom triunfante.

Jacob observou o lugar, era uma cave horrorosa, escura e fedorenta, mas, comparada com o inferno que se estava a viver na parte de cima, era lógico que lhes parecesse o paraíso.

— Isto não altera os nossos planos, temos de sair daqui o mais depressa possível. Tu tens de procurar a tua família e nós a nossa tia Judith. No caso de estarem nesse outro campo de detenção, é melhor ficares connosco. Provavelmente, quando a guerra terminar, os alemães levar-nos-ão a todos de volta a casa. Dizem que o Hitler nos quer como mão de obra barata enquanto os seus soldados lutam na frente, mas depois já não lhes vamos servir para nada.

— Prefiro estar com a minha família, mesmo que seja num campo de concentração — respondeu Joseph muito sério.

Jacob entendia-o perfeitamente. Ele também percorreria o mundo inteiro para estar com os seus pais, embora isso implicasse meter-se nas próprias entranhas do inferno. Tinha muitas saudades deles. Dos seus sorrisos, das brincadeiras, de percorrerem juntos uma vereda para desfrutarem de um belo dia no campo. O menino começou a sentir um nó na garganta. Estava há doze anos com os pais, nunca se tinham separado e agora tinha de enfrentar sozinho uma situação como aquela. O que é que podia fazer? Como é que podia manter o seu irmão a salvo? Essas eram as perguntas que fazia a si próprio enquanto os outros dois rapazes começavam a conversar despreocupados, como se aquela situação já não fosse realmente difícil.

— Eu percebo, se for a única solução, levar-te-emos ao Campo de Drancy, esteja onde estiver, mas também podes ficar com a nossa tia.

— O que é que te leva a pensar que ela não está fechada noutro lugar? — perguntou Joseph um pouco incomodado. Não entendia a segurança do seu amigo, tinha a sensação de que preferia negar a realidade.

— A minha tia não estava inscrita como judia, já te disse que nos prenderam porque a nossa porteira começou a gritar.

— Mas vocês têm a estrela amarela — disse o rapaz.

— Sim, para podermos ir à escola e para o caso de nos mandarem parar na rua, mas estamos registados noutra morada, por isso achamos que a nossa tia está livre — comentou Jacob.

Os três rapazes ficaram um momento em silêncio. Os intestinos de Moisés começaram a fazer barulho e desataram a rir.

— Acho que devíamos ir procurar mais comida urgentemente — brincou Jacob a tentar mudar de assunto.

Saíram da cave com o mesmo cuidado com que tinham entrado. Depois fecharam a porta sem fazerem barulho. A noite tinha chegado precipitadamente ao Velódromo. Caminharam à volta das tendas, a essa hora só lá estavam dois polícias a fumar num dos lados do estádio. Aproveitaram para entrar numa delas. As caixas de comida acumulavam-se meio abertas. Latas de comida, pão de forma, várias caixas de fruta.

— Porque é que deixam as pessoas passar fome se têm tanta comida? — perguntou Moisés um pouco zangado.

— Imagino que não sabem quanto tempo é que vamos ficar aqui e que preferem que as pessoas comam primeiro a sua própria comida — disse Joseph.

— Nós não temos nada. É melhor ficarmos com algumas provisões — aconselhou Jacob.

Os rapazes encheram os bolsos de comida, depois saíram sigilosamente da tenda e regressaram ao seu esconderijo.

Jacob tirou a navalha que costumava usar para descascar paus ou fazer figuras de madeira e abriu a primeira lata de feijão. Não tinham colheres e tiveram de comer com os dedos. Pareceu-lhes tão divertido que passaram a maior parte do tempo a rir às gargalhadas.

Adormeceram depois de jantar, mas Jacob acordou poucas horas depois. Decidiu explorar um pouco os túneis; não achava muita graça à escuridão, mas preferia saber o que havia por baixo das entranhas do Velódromo e procurar uma possível saída. As lâmpadas só chegavam até uma parte dos compridos corredores, por onde passavam os canos, mas a escuridão impedia-o de continuar em frente. Recuou de novo até à entrada e abriu com cuidado a porta de uma pequena divisão, acendeu a luz e encontrou pendurado sobre a parede e nas gavetas de um móvel de carpinteiro algumas ferramentas e uma lâmpada a óleo. Procurou fósforos pelas pequenas gavetas até descobrir uma caixa deles meio vazia. Acendeu-a nervoso e depois contemplou a chama que crescia no interior da lâmpada. Ficou surpreendido com a intensidade que um pavio tão pequeno refletia. Pensou que às vezes a esperança era como essa chama, algo quase insignificante, mas capaz de guiá-lo no caminho.

Saiu em silêncio da divisão, mas antes de poder regressar ao túnel ouviu a voz do irmão.

— Onde é que vais? — perguntou-lhe inquieto, se havia algo de que Moisés tinha medo era de se separar da única pessoa que conhecia no mundo.