Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.
Núñez de Balboa, 56
28001 Madrid
Corrupção
Título original: The Force
© 2017, Samburu, Inc.
© 2017, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.
Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.
Tradutora del inglés: Mariana Mata
Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.
Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.
Desenho da capa: Diego Rivera
Imagens de capa: Shutterstock y Dreamstime.com
ISBN: 978-84-9139-144-9
Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.
Página de título
Créditos
Sumário
Dedicatória
Cita
O último tipo
Prólogo: O roubo
Parte 1: Natal branco
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Parte 2: O coelhinho da páscoa
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Parte 3: Quatro de Julho, o fogo desta vez
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Agradecimentos
Durante o tempo que demorei a escrever este romance, foram assassinados os seguintes agentes da lei no cumprimento do dever. Este livro é dedicado a todos eles:
Sargento Cory Blake Wride, Xerife-adjunto Percy Lee House III, Xerife-adjunto Jonathan Scott Pine, Guarda prisional Amanda Beth Baker, Detetive John Thomas Hobbs, Agente Joaquin Correa-Ortega, Agente Jason Marc Crisp, Vice-xerife Allen Ray “Pete” Richardson, Agente Robert Gordon German, Mestre de armas Mark Aaron Mayo, Agente Mark Hayden Larson, Agente Alexander Edward Thalmann, Agente David Wayne Smith Jr., Agente Christopher Alan Cortijo, Xerife-adjunto Michael J. Seversen, Agente de patrulha Gabriel Lenox Rich, Sargento Patrick Scott Johnson, Agente Roberto Carlos Sanchez, Agente de patrulha Chelsea Renee Richard, Sargento principal John Thomas Collum, Agente Michael Alexander Petrina, Detetive Charles David Dinwiddie, Agente Stephen J. Arkell, Agente Jair Abelardo Cabrera, Agente de patrulha Christopher G. Skinner, Delegado federal Frank Edward McKnight, Agente Brian Wayne Jones, Agente Kevin Dorian Jordan, Agente Igor Soldo, Agente Alyn Ronnie Beck, Chief of Police Lee Dixon, Xerife-adjunto Allen Morris Bares Jr., Agente Perry Wayne Renn, Patrulha Jeffrey Brady Westerfield, Detetive Melvin Vincent Santiago, Agente Scott Thomas Patrick, Chefe de Polícia Michael Anthony Pimentel, Agente Geniel Amaro-Fantauzzi, Agente Daryl Pierson, Patrulha Nickolaus Edward Schultz, Segurança Jason Eugene Harwood, Xerife-adjunto Joseph John Matuskovic, Segurança Bryon Keith Dickson II, Xerife-adjunto Michael Andrew Norris, Sargento Michael Joe Naylor, Xerife-adjunto Danny Paul Oliver, Detetive Michael David Davis Jr., Xerife-adjunto Yevhen “Eugene” Kostiuchenko, Xerife-adjunto Jesse Valdez III, Agente Shaun Richard Diamond, Agente David Smith Payne, Agente Robert Parker White, Xerife-adjunto Matthew Scott Chism, Agente Justin Robert Winebrenner, Xerife-adjunto Christopher Lynd Smith, Agente Edwin O. Roman-Acevedo, Agente Wenjian Liu, Agente Rafael Ramos, Agente Charles Kondek, Agente Tyler Jacob Stewart, Detetive Terence Avery Green, Agente Robert Wilson III, Delegado federal Josie Wells, Patrulha George S. Nissen, Agente Alex K. Yazzie, Agente Michael Johnson, Agente de patrulha Trevor Casper, Agente Brian Raymond Moore, Sargento Greg Moore, Agente Liquori Tate, Agente Benjamin Deen, Delegado Sonny Smith, Detetive Kerrie Orozco, Agente de patrulha Taylor Thyfault, Patrulha James Arthur Bennett Jr., Agente Gregg “Nigel” Benner, Agente Rick Silva, Agente Sonny Kim, Agente Daryle Holloway, Sargento Christopher Kelley, Guarda prisional Timothy Davison, Sargento Scott Lunger, Agente Sean Michael Bolton, Agente Thomas Joseph LaValley, Xerife-adjunto Carl G. Howell, Agente de patrulha Steven Vincent, Agente Henry Nelson, Xerife-adjunto Darren Goforth, Sargento Miguel Pérez-Ríos, Agente de patrulha Joseph Cameron Ponder, Xerife-adjunto Dwight Darwin Maness, Xerife-adjunto Bill Myers, Agente Gregory Thomas Alia, Detetive Randolph A. Holder, Agente Daniel Scott Webster, Agente Bryce Edward Hanes, Agente Daniel Neil Ellis, Chefe de Polícia Darrell Lemond Allen, Agente de patrulha Jaimie Lynn Jursevics, Agente Ricardo Galvez, Corporal William Matthew Solomon, Agente Garrett Preston Russell Swasey, Agente Lloyd E. Reed Jr., Agente Noah Leotta, Comandante Frank Roman Rodriguez, Tenente Luz M. Soto Segara, Agente Rosario Hernandez de Hoyos, Agente Thomas W. Cottrell Jr., Agente especial Scott McGuire, Agente Douglas Scott Barney II, Sargento Jason Goodding, Delegado Derek Geer, Delegado Mark F. Logsdon, Delegado Patrick B. Dailey, Major Gregory E. “Lem” Barney, Agente Jason Moszer, Agente especial Lee Tartt, Segurança Nate Carrigan, Agente Ashley Marie Guindon, Agente David Stefan Hofer, Xerife-adjunto John Robert Kotfila Jr., Agente Allen Lee Jacobs, Delegado Carl A. Koontz, Agente Carlos Puente-Morales, Agente Susan Louise Farrell, Agente de patrulha Chad Phillip Dermyer, Agente Steven M. Smith, Detetive Brad D. Lancaster, Agente David Glasser, Agente Ronald Tarentino Jr., Agente Verdell Smith Sr., Agente Natasha Maria Hunter, Agente Endy Nddiobong Ekpanya, Xerife-adjunto David Francis Michel Jr., Agente Brent Alan Thompson, Sargento Michael Joseph Smith, Agente Patrick E. Zamarripa, Agente Lorne Bradley Ahrens, Agente Michael Leslie Krol, Supervisor de segurança Joseph Zangaro, Oficial de justiça Ronald Eugene Kienzle, Xerife-adjunto Bradford Allen Garafola, Agente Matthew Lane Gerald, Segurança Montrell Lyle Jackson, Agente Marco Antonio Zarate, Guarda prisional Mari Johnson, Guarda prisional Kristopher D. Moules, Capitão Robert D. Melton, Agente Clint Corvinus, Agente Jonathan De Guzman, Agente José Ismael Chavez, Agente especial De’Greaun Frazier, Segurança Bill Cooper, Agente John Scott Martin, Agente Kenneth Ray Moats, Agente Kevin “Tim” Smith, Sargento Steve Owen, Xerife-adjunto principal Brandon Collins, Agente Timothy James Brackeen, Agente Lesley Zerebny, Agente Jose Gilbert Vega, Agente Scott Leslie Bashioum, Sargento Luis A. Meléndez-Maldonado, Xerife-adjunto Jack Hopkins, Guarda prisional Kenneth Bettis, Xerife-adjunto Dan Glaze, Agente Myron Jarrett, Sargento Allen Brandt, Agente Blake Curtis Snyder, Sargento Kenneth Steil, Agente Justin Martin, Sargento Anthony Beminio, Sargento Paul Tuozzolo, Xerife-adjunto Dennis Wallace, Detetive Benjamin Edward Marconi, Comandante-adjunto Patrick Thomas Carothers, Agente Collin James Rose, Agente de patrulha Cody James Donahue
— Os polícias são só pessoas — disse ela de forma irrelevante.
— Começam dessa forma — ouvi eu dizer.
RAYMOND CHANDLER, ADEUS, MINHA ADORADA
O último tipo na Terra que alguém alguma vez esperava ver acabar no Centro Correcional Metropolitano de Park Row era Denny Malone.
Podia pensar-se no mayor, no presidente dos Estados Unidos, no Papa. As pessoas de Nova Iorque apostariam mais depressa que os veriam atrás das grades antes do Detetive Principal Dennis John Malone.
Um polícia herói.
Filho de um polícia herói.
Um sargento veterano da melhor unidade de elite do NYPD.
A Força Especial de Manhattan Norte.
E, acima de tudo, um tipo que sabe onde todos os esqueletos estão escondidos, uma vez que ele próprio enfiou lá metade deles.
Malone, Russo, Billy O, Big Monty e os restantes fizeram destas ruas as suas e governaram-nas como reis. Tornaram-nas seguras e mantiveram-nas seguras para pessoas decentes ali tentarem ganhar a vida. E isso era o trabalho deles, a sua paixão e amor. E se isso significasse terem de limar umas arestas e serem demasiado zelosos de vez em quando, era o que faziam.
As pessoas não sabem o que às vezes custa mantê-las em segurança e é melhor que não saibam.
Até podem pensar que querem saber, podem dizer que querem saber, mas não querem.
Malone e a Força Especial não eram apenas uns polícias quaisquer ao Serviço. Há trinta e oito mil a vestir de azul. Denny Malone e os seus homens eram um por cento de um por cento de um por cento, os mais espertos, os mais duros, os mais rápidos, os mais corajosos, os melhores, os piores.
A Força Especial de Manhattan Norte.
«Da Força» soprava pela cidade como um vento frio, duro, rápido e violento, vasculhando as ruas e vielas, os parques infantis, jardins e bairros sociais, afastando o lixo e a sujidade, uma tempestade predatória a dar cabo dos predadores.
Um vento forte encontra o seu caminho através de qualquer fenda, pelas escadarias dos bairros sociais adentro, pelos prédios dos laboratórios de heroína, pelas salas das traseiras de clubes sociais, pelos condomínios de luxo do novo-riquismo, pelas penthouses da riqueza antiga. De Columbus Circle até à Henry Hudson Bridge, do Riverside Park até ao Harlem River, pela Broadway e Amsterdam acima, pela Lenox e St. Nicholas abaixo, nas ruas numeradas que atravessam o Upper West Side, Harlem, Washington Heights e Inwood, se havia um segredo que a Da Força não soubesse, era porque ainda não tinha sido sussurrado ou sequer pensado.
Tráfico de droga e tráfico de armas, tráfico de pessoas e propriedades, violações, roubos e assaltos, crimes incubados em inglês, espanhol, francês, russo, frente a um prato de frango com couve, porco assado, esparguete à bolonhesa ou refeições gourmet em restaurantes de cinco estrelas numa cidade feita de pecado e para o lucro.
Da Força atingia-os a todos, mas especialmente às armas e drogas, porque as armas matam e as drogas incitam a matar.
Agora com Malone na prisão, o vento tinha parado de soprar, mas toda a gente sabe que se trata do olho do furacão, apenas aquele silêncio de morte que vem antes de chegar o pior. Denny Malone nas mãos do FBI? Não dos Assuntos Internos, não do Ministério Público, mas dos federais, quando ninguém na cidade ousava tocar-lhe?
Toda a gente se escondeu, acagaçados à espera da explosão, do tsunami, pois com aquilo que Malone sabe, ele poderia derrubar comandantes, chefes e até o comissário. Ele poderia denunciar procuradores, juízes… Merda, ele poderia servir o mayor aos federais numa majestosa bandeja de prata com pelo menos um congressista e um par de bilionários do setor imobiliário como aperitivo.
Portanto, quando se veio a saber que Malone estava no Centro Correcional Metropolitano, as pessoas no olho do furacão ficaram assustadas, realmente assustadas, e começaram à procura de abrigo, mesmo na quietude, mesmo sabendo que não havia paredes suficientemente altas, nem caves suficientemente profundas — nem na sede da Polícia de Nova Iorque, nem no edifício dos tribunais penais, nem mesmo na Gracie Mansion ou nas penthouses apalaçadas que se alinhavam na Fifth Avenue e em Central Park South — para as manter protegidas daquilo que estava na cabeça de Denny Malone.
Se Malone quiser deitar toda a cidade abaixo com ele, é bem capaz disso.
E depois, também nunca ninguém esteve alguma vez a salvo de Malone e dos seus.
Os homens de Malone fizeram manchetes: do Daily News, do Post e dos Canais 7, 4 e 2 como os polícias-sensação. Eram os polícias reconhecidos na rua, os polícias a quem o mayor tratava pelo nome, com entrada gratuita no Garden, em Meadowlands, no Yankee Stadium e no Shea, os polícias que entravam em qualquer restaurante ou bar da cidade e eram tratados como realeza.
E Denny Malone é o líder incontestável deste pacote de alfas.
Entra em qualquer esquadra da cidade e os fardados e recrutas param e olham-no, os tenentes acenam-lhe com a cabeça e até os capitães sabem que não se devem meter com ele.
Ele ganhou-lhes o respeito.
Entre outras coisas, (Merda, querem falar dos roubos que ele parou, do tiro que apanhou, da criança refém que salvou? Das operações, detenções, condenações?) Malone e a sua equipa fizeram a maior apreensão de droga da história de Nova Iorque.
Cinquenta quilos de heroína.
E o dominicano que andava a traficá-la foi desta para melhor.
Juntamente com um polícia herói.
A equipa de Malone enterrou o parceiro com gaitas de foles, bandeira dobrada, faixas pretas sobre os distintivos, e regressou imediatamente ao trabalho porque os traficantes e os gangues, os ladrões, os violadores e os mafiosos, esses não tiram folga para fazer luto. Se quiseres manter as ruas seguras, tens de estar nessas ruas: dias, noites, fins de semana, férias, a qualquer custo. E as vossas esposas, elas sabiam naquilo em que se tinham metido, e os vossos filhos aprendem a compreender o que é que o papá tem de fazer para mandar os maus para trás das grades.
Só que agora é ele que está na gaiola, o Malone sentado num banco de aço numa cela de prisão como a escumalha que normalmente põe lá dentro, curvado, de mãos na cabeça, preocupado com os parceiros — os seus irmãos Da Força — e com o que lhes vai acontecer agora que ele está enterrado em merda até ao pescoço.
Preocupado com a família… a mulher que não se metera nisto, os dois filhos, um menino e uma menina demasiado novos para entenderem agora, mas que nunca irão perdoar a razão de terem crescido sem pai quando tiverem idade suficiente.
E depois há Claudette.
Completamente marada à sua maneira.
Carente, a precisar dele, e ele não vai lá estar.
Nem para ela, nem para ninguém, por isso não sabe o que vai acontecer às pessoas que ama.
A parede que está a fitar não tem qualquer resposta, nem sequer para como é que chegou ali.
Não, foda-se, pensa Malone. Ao menos sê honesto contigo próprio, pensa ele enquanto está ali sentado com nada em frente a não ser tempo.
Pelo menos, por fim, diz a verdade a ti próprio.
Sabes exatamente como chegaste aqui.
Um maldito passo a passo.
Os nossos fins conhecem os nossos começos, mas o reverso não é verdade.
Quando Malone era miúdo, as freiras ensinaram-lhe que mesmo antes de nascermos, Deus, e só Deus, sabe os dias das nossas vidas e o dia da nossa morte, e quem e em que é que nos vamos tornar.
Bem, eu adorava que ele tivesse partilhado essa merda comigo, pensa Malone. Que me tivesse dado uma palavrinha, uma pista, que me tivesse abafado, que me tivesse denunciado a mim próprio, me tivesse contado alguma coisa, qualquer coisa. Que me tivesse dito, ei, seu parvalhão, viraste à esquerda e devias ter virado à direita.
Mas não, nada.
Pelo que tem visto, Malone não é um grande fã de Deus e imagina que o sentimento seja mútuo. Tem muitas perguntas que gostaria de lhe fazer, mas se alguma vez o apanhasse numa sala, Deus provavelmente ia calar a boca, pedir um advogado, deixar que o próprio filho levasse com as culpas.
Neste tempo todo no Serviço, Malone perdeu a fé, portanto, quando chegou o momento em que estava a olhar para o diabo nos olhos, não havia nada entre Malone e o homicídio exceto quatro quilos e meio de gatilho.
Quatro quilos e meio de peso.
Foi o dedo de Malone que puxou o gatilho, mas talvez tivesse sido o peso que o arrastou para baixo — o implacável, imperdoável peso de dezoito anos no Serviço.
A arrastá-lo até onde está agora.
Malone não começou para acabar assim. Não lançou o boné ao ar no dia da graduação da Academia e prestou juramento, no dia mais feliz da sua vida — o mais brilhante, mais azul, o melhor dia — a pensar que ia acabar assim.
Não, ele começou com os olhos firmemente fixos na estrela guia, com os pés assentes no trilho, mas é essa a coisa acerca da vida que caminhas… Começas apontado para o verdadeiro norte mas desvias-te um grau, não interessa se talvez por um ano, cinco anos, mas à medida que os anos se acumulam, estás apenas a caminhar cada vez para mais e mais longe do sítio para onde começaste a ir. E nem sequer sabes que estás perdido até estares tão longe do teu destino original que já nem o consegues ver.
Nem sequer consegues regressar ao trilho para começar de novo.
O tempo e o peso não o permitem.
E Denny Malone daria muito para começar de novo.
Maldição, ele daria tudo!
Porque ele nunca pensou que ia acabar na prisão federal de Park Row. Ninguém pensou, exceto talvez Deus e ele não abria a boca.
Mas aqui está Malone.
Sem a sua arma ou o seu distintivo ou qualquer outra coisa que diga o que e quem ele é, o que e quem ele foi.
Um polícia corrupto.
Lenox Avenue,
Honey.
Midnight.
And the gods are laughing at us.
LANGSTON HUGHES, LENOX AVENUE: MIDNIGHT
Harlem, Nova Iorque
Julho 2016
Quatro da manhã.
Quando a cidade que nunca dorme por fim se deita e fecha os olhos.
Isto é o que Denny Malone pensa enquanto o seu Crown Vic desliza pela espinha do Harlem.
Atrás das paredes e janelas, em apartamentos e hotéis, prédios e torres de bairros sociais, as pessoas estão a dormir ou não conseguem, estão a sonhar ou para além dos sonhos. As pessoas estão a brigar ou a foder ou ambos, a fazer amor e a fazer bebés, a gritar maldições ou a falar suavemente, palavras íntimas dirigidas um ao outro e não à rua. Alguns tentam embalar bebés para que adormeçam de novo, ou estão simplesmente a levantar-se para outro dia de trabalho, enquanto outros cortam quilos de heroína para dentro de sacos transparentes que vão vender a viciados para o chuto matinal.
Depois das prostitutas e antes dos varredores de rua, é esse o intervalo de tempo que há para fazer um roubo, Malone sabe bem disso. Nunca nada de bom acontece depois da meia-noite, é o que o seu velho costumava dizer, e ele sabia. Ele era polícia naquelas ruas, chegando a casa de manhã depois de um turno da noite com o homicídio escrito nos olhos, a morte escarrapachada no nariz e um pingente de gelo espetado no coração que nunca derretia e que eventualmente o matou. Saiu do carro à entrada de casa uma manhã e o seu coração partiu-se. Os médicos disseram que ele morreu antes mesmo de cair no chão.
Foi Malone que o encontrou.
Oito anos, a sair de casa para ir a pé para a escola, viu o sobretudo azul na pilha de neve suja que ele tinha ajudado a limpar da entrada com o pai.
Agora ainda não amanheceu e já está calor. Um desses verões em que Deus, o senhorio, se recusa a desligar o aquecimento ou a ligar o ar condicionado — a cidade nervosa e irritável, à beira das chamas, uma briga ou um tumulto, o cheiro a lixo antigo e urina velha, doce, azedo, doentio e corrupto como o perfume de uma puta velha.
Denny Malone adora-o.
Mesmo durante o dia, quando está um calor abrasador e muito barulho, quando os membros dos gangues estão nas esquinas e as batidas do hip-hop magoam os ouvidos, e garrafas, latas, fraldas sujas e sacos plásticos cheios de mijo saem a voar pelas janelas dos prédios, e a merda de cão fede no calor fétido, ele não desejaria estar noutro lado qualquer do mundo.
É a sua cidade, o seu território, o seu coração.
A rolar pela Lenox agora, passado o velho bairro de Mount Morris Park e as suas vivendas graciosas, Malone venera os pequenos deuses do local — as torres gémeas de Ebenezer Gospel Tabernacle, de onde hinos flutuam aos domingos com vozes angelicais, depois a distinta espiral da Ephesus Seventh-Day Adventist e, mesmo ao cimo do quarteirão, Harlem Shake — não a dança, mas um dos sítios com os melhores hambúrgueres da cidade.
Depois lá estão os deuses mortos — o velho Lenox Lounge, com o seu icónico letreiro em néon, fachada vermelha e toda a sua história. Billie Holiday costumava cantar ali, Miles Davis e John Coltrane tocavam as suas cornetas e era local de poiso para James Baldwin, Langston Hughes e Malcolm X. Está fechado agora — a janela coberta com papel pardo, o letreiro apagado — mas há rumores sobre uma hipotética reabertura.
Malone duvida.
Os deuses mortos não se levantam de novo exceto em contos de fadas.
Ele atravessa a 125th, também conhecida por Dr. Martin Luther King Jr. Boulevard.
Os pioneiros urbanos e a classe média negra recuperaram a área, que os agentes imobiliários batizaram agora de «SoHa», um acrónimo misturado sendo sempre a sentença de morte de qualquer bairro antigo, pensa Malone. Está convencido de que se os promotores imobiliários pudessem comprar propriedade nos níveis mais baixos do Inferno de Dante, renomeavam-no de «LoHel» e começavam a vomitar boutiques e condomínios.
Há quinze anos, este troço da Lenox só tinha montras vazias; agora está na moda outra vez com novos restaurantes, bares e esplanadas onde os moradores mais abastados vêm comer e os brancos vêm para se sentirem modernos. Alguns daqueles apartamentos nos novos arranha-céus rondam os dois milhões e meio.
Tudo o que precisas de saber agora sobre esta parte do Harlem, pensa Malone, é que há uma Banana Republic ao lado do Apollo Theater. Há os deuses do local e os deuses do comércio e se tiveres de apostar quem vai ganhar, aposta todas as vezes o teu dinheiro no dinheiro.
Mais distante na periferia e nos bairros sociais ainda fica o gueto.
Malone atravessa a 125th e passa o Red Rooster, onde se situa o Ginny’s Supper Club, na cave.
Há santuários menos famosos, ainda assim sagrados para Malone. Ele foi a funerais no Bailey, comprou garrafas de cerveja na Lenox Liquors, foi cosido nas Urgências do Harlem Hospital, jogou basquetebol no mural do Big L no Fred Samuel Playground, encomendou comida através do vidro à prova de fogo do Kennedy Fried Chicken. Estacionou à beira da estrada e observou os miúdos a dançar, fumou erva no terraço no topo de um edifício, viu o sol nascer a partir do Fort Tryon Park.
Agora mais deuses mortos, deuses antigos — o velho Savoy Ballroom, o sítio do Cotton Club, ambos há muito desaparecidos antes do tempo de Malone, fantasmas do último Renascimento do Harlem a assombrar o seu bairro com a imagem do que foi outrora e nunca poderá voltar a ser.
Mas a Lenox está viva.
Na verdade, pulsa a partir da linha de metro da IRT que passa diretamente por baixo de todo o seu comprimento. Malone costumava apanhar o comboio #2, aquele a que antigamente chamavam de «A Besta».
Agora é a Black Star Music, a Mormon Church, o African American Best Food. Quando chegam ao fim da Lenox, Malone diz: — Dá a volta ao quarteirão.
Phil Russo, ao volante, vira à esquerda para a 147th e conduz em torno do quarteirão, pela Seventh Avenue abaixo e depois vira de novo à esquerda para a 146th, passando por um prédio abandonado que o dono devolve às ratazanas e baratas, perseguindo as pessoas de lá para fora na esperança que algum drogado a preparar o caldo lhe pegue fogo e ele possa receber o seguro e vender o lote.
Todos lucram.
Malone olha para detetar guardas ou algum polícia a dormitar num carro patrulha, embalado numa soneca no turno da noite. Só está um único vigia à porta. Lenço ao pescoço verde, ténis verdes da Nike com atacadores verdes fazem dele um Trinitario.
A equipa de Malone tem andado a vigiar o laboratório de heroína no segundo andar durante o verão inteiro. Os mexicanos transportam a droga e entregam-na a Diego Pena, o dominicano que domina Nova Iorque. Pena divide-o de quilos em doses e distribui-as aos gangues Domo, Trinitarios e DPP (Dominicans Don’t Play), e depois aos gangues de negros e porto-riquenhos nos bairros sociais.
O laboratório está cheio esta noite.
Cheio de dinheiro.
Cheio de droga.
— Preparem-se — diz Malone, a verificar a Sig Sauer P226 dentro do coldre na anca. Uma Beretta 8000D Mini-Cougar descansa no segundo coldre na curva das costas, mesmo abaixo do novo colete de placas cerâmicas.
Ele obriga a equipa inteira a usar os coletes durante as operações. Big Monty queixa-se de o dele estar muito apertado, mas Malone diz-lhe que é melhor um usar um mais justo do que um caixão. Bill Montague, também conhecido como Big Monty, é da velha guarda. Na cabeça dele, mesmo durante o verão, a sua imagem de marca é o chapéu de feltro de aba fina com uma pena vermelha do lado esquerdo. A cedência dele ao calor passa por uma camisa guayabera XXXL por cima de umas calças caqui. Um charuto Montecristo por acender pousa no canto da boca.
Uma shotgun Mossberg 590 semiautomática de calibre 12 com cano de 51cm carregado com balas cerâmicas redondas com pólvora pousa aos pés de Phil Russo, nos seus sapatos muito bem engraxados de pele vermelha de ponteira muito fina. Os sapatos dão com o cabelo — Russo é um dos raros italianos ruivos e Malone goza dizendo que só pode ter herdado traços irlandeses de algum lado. Russo responde dizendo que é impossível porque não é alcoólico nem precisa de uma lupa para encontrar a própria pila.
Billy O’Neill carrega uma submetralhadora HK MP5, duas granadas de fumo e um rolo de fita adesiva. Billy O é o mais novo da equipa, mas tem talento, esperteza e jogo de rua.
E coragem, também.
Malone sabe que Billy não vai roer a corda e fugir, não vai bloquear ou hesitar em puxar o gatilho, se precisar. Pelo contrário. A ser, seria o oposto — Billy talvez seja um pouco rápido demais a reagir. Tem aquele temperamento irlandês juntamente com uma boa aparência Kennedy. Tem outros atributos tipo Kennedy, também. O miúdo gosta de mulheres e as mulheres retribuem.
Hoje à noite, a equipa vai entrar com tudo.
E em grande.
Se enfrentarem narcotraficantes que estão cheios de coca ou speed, ajuda se estiverem farmacologicamente ao mesmo nível, por isso Malone mete dois comprimidos estimulantes para o caminho — Dexedrina. Depois enfia um corta-vento azul com NYPD escrito a branco e vira o cordão com o distintivo ao peito.
Russo dá a volta outra vez ao quarteirão. Vindo da 146th, acelera, faz uma corrida até ao laboratório e carrega a fundo nos travões. O vigia ouve o guinchar dos pneus mas vira-se já demasiado tarde — Malone saiu porta fora antes de o carro parar. Empurra a cara do vigia contra a parede e enfia-lhe o cano da Sig na cabeça.
— Cállate, pendejo. Um pio e rebento-te todo — avisa Malone.
Chuta e afasta os pés do vigia por baixo dele e deita-o no chão. Billy já lá está — coloca fita adesiva nas mãos atrás das costas e espeta-lhe uma tira sobre a boca.
A equipa de Malone protege-se contra a parede do edifício. — Ficamos todos atentos e vamos todos para casa hoje à noite — diz Malone.
A Dex começa a fazer efeito — Malone sente o coração a disparar e o sangue a aquecer.
Sabe bem.
Manda Billy O para o telhado para descer até à escada de incêndio e cobrir a janela. O resto entra e dirige-se às escadas. Primeiro Malone, a Sig à frente dele, preparada. Russo atrás dele com a shotgun, depois Monty.
Malone não se preocupa com a proteção da retaguarda.
Uma porta de madeira bloqueia o cimo das escadas.
Malone faz sinal a Monty.
O grandalhão aproxima-se, encrava a alavanca de arrombamento entre a porta e a ombreira. Cai-lhe suor da testa que desliza pela sua pele escura no momento em que pressiona os puxadores ao mesmo tempo e escancara a porta.
Malone avança, oscila a pistola em arco, mas não há ninguém na entrada. Olhando para a direita, vê nova porta de aço ao fundo do corredor. Há música machata a tocar num rádio lá dentro, vozes em espanhol, o zumbido de moinhos de café, o matraquear de um contador de dinheiro.
E um cão a ladrar.
Foda-se, pensa Malone, todos os narcos os têm agora. Tal como toda a miúda de East Side tem um pequeno Yorkie a latir dentro das suas malas hoje em dia, os traficantes têm pit bulls. É uma boa ideia — os espiões têm um medo que se pelam dos cães e as chicas a trabalhar nos laboratórios não arriscam ver a cara ser mastigada por roubarem.
Malone preocupa-se com Billy O porque o miúdo adora cães, até mesmo pit bulls. Malone teve conhecimento disto em abril passado quando se lançaram num armazém ao pé do rio e três pit bulls estavam a tentar saltar pela vedação de arame farpado para lhes rasgarem a garganta. Mas Billy O simplesmente não conseguia disparar ou deixar que alguém o fizesse, por isso tiveram de ir a toda a volta até às traseiras do edifício, subir a escada de incêndio até ao telhado e depois descer as escadas.
Foi uma chatice do caraças.
De qualquer modo, o pit bull apercebeu-se deles, mas os Domos não. Malone ouve um deles gritar «Cállate!», depois uma pancada forte e o cão cala-se.
Mas a porta de aço de alta segurança é um problema.
A alavanca não a vai abrir.
Malone pega no rádio.
— Billy, estás em posição?
— Nasci em posição, mano.
— Vamos explodir com a porta. Quando acontecer, lança uma granada — diz Malone.
— Certíssimo, D.
Malone acena a Russo, que faz pontaria para as dobradiças da porta e dispara dois tiros. A pólvora cerâmica explode mais rapidamente do que a velocidade do som e a porta vem abaixo.
Mulheres, nuas à exceção das luvas de borracha e redes no cabelo, fogem para a janela. Outras agacham-se debaixo das mesas enquanto as máquinas de contar dinheiro cospem notas para o chão como slot machines a dar fruto em papel.
Malone grita: — NYPD!
Vê Billy pela janela à sua esquerda.
A fazer rigorosamente nada, apenas a fitar através da janela. Por amor de Deus, lança a granada.
Mas Billy não lança.
De que merda é que está à espera?
Então Malone percebe.
O pit bull tem filhotes, quatro no total, enrolados numa bola atrás dela enquanto corre até esticar a sua corrente de metal, a tentar morder e a rosnar para protegê-los.
Billy não quer fazer mal aos cachorros.
Malone grita pelo rádio. — Porra, lança-a!
Billy olha para ele através da janela, depois pontapeia o vidro e lança a granada.
Mas atira-a a pouca distância, para evitar atingir os malditos cães.
O choque escaqueira o resto do vidro, pulverizando estilhaços na cara e pescoço de Billy.
Luz branca brilhante, ofuscante, gritos, berros.
Malone conta até três e entra.
Caos.
Um Trini cambaleia, uma mão sobre os olhos cegos, a outra a disparar uma Glock enquanto se dirige à janela e à escada de incêndio. Malone atinge-o com duas balas no peito e ele cai para cima da janela. Um segundo atirador faz pontaria para Malone debaixo de uma bancada mas Monty atinge-o com um tiro da sua 38 e depois um segundo para ter a certeza de que está mesmo morto.
Deixam as mulheres sair pela janela.
— Billy, estás bem? — pergunta Malone.
A cara de Billy O parece uma máscara de Halloween.
Golpes nos braços e pernas.
— Já fiz cortes piores em jogos de hóquei — responde ele a rir. — Vou levar uns pontos quando estivermos despachados aqui.
Dinheiro por todo o lado, em montes, nas máquinas, espalhado pelo chão. A heroína ainda está nos moinhos de café onde estava a ser cortada.
Mas isso é uma ninharia.
La caja — a caixa —, um grande buraco esculpido na parede, está aberta.
Repleta, do chão até ao teto, com fardos de heroína.
Diego Pena está calmamente sentado a uma mesa. Se as mortes de dois dos seus homens o incomodaram, não se nota na cara dele. — Tem um mandado, Malone?
— Ouvi uma mulher a gritar por socorro — diz Malone.
Pena sorri maliciosamente.
Um cabrão bem vestido. Fato cinzento Armani no valor de duas das grandes, relógio de ouro Piguet no pulso, cinco vezes isso.
Pena repara. — É teu. Tenho mais três.
O pit bull ladra selvaticamente, forçando a corrente.
Malone está a olhar para a heroína.
Pilhas dela, embaladas em vácuo em plástico preto.
Pó suficiente para manter a cidade em alta durante semanas.
— Poupo-te o trabalho de contar — diz Pena. — São cem quilos certos. Heroína mexicana de canela com sessenta por cento de pureza — a «Dark Horse». Podes vendê-la por cem mil dólares o quilo. O dinheiro que estás a ver deve ascender a outros cinco milhões. Leva a droga e o dinheiro. Eu apanho um avião para a Dominicana, nunca mais me vês. Pensa nisso, quando é que terás a próxima oportunidade de fazer quinze milhões de dólares só por virares as costas?
E vamos todos para casa esta noite, pensa Malone.
— Pousa a tua arma. Lentamente — diz ele.
Pena coloca lentamente a mão dentro do casaco para tirar a pistola.
Malone enfia-lhe dois tiros no coração.
Billy O agacha-se e apanha um quilo. Abrindo-o com a sua navalha K-bar, mergulha um pequeno frasco dentro da heroína, tira uma pitada e manda-a para dentro de um invólucro de plástico que tira do bolso. Parte o frasco dentro do saco de teste e espera que a cor se altere.
Fica roxa.
Billy sorri abertamente. — Estamos ricos!
— Despacha-te, porra! — diz Malone.
Ouve-se um barulho quando o pit bull parte a corrente e se atira a ele. Billy cai de costas mandando o quilo pelo ar. Rebenta numa nuvem em cogumelo e depois cai como um aguaceiro de neve para dentro das suas feridas abertas.
Mais uma explosão no momento em que Monty mata a cadela.
Mas Billy fica deitado no chão. Malone vê-o a ficar rígido, depois as pernas começam a ter espasmos, tremendo descontroladamente enquanto a heroína corre pela sua corrente sanguínea.
Os pés dele batem no chão.
Malone ajoelha-se ao lado dele, segura-o nos braços.
— Billy, não — diz Malone. — Aguenta-te.
Billy olha para cima para ele com um olhar vazio.
A cara dele está branca.
A sua espinha treme como uma mola solta.
E então morre.
O maldito Billy, o belo jovem Billy O, tão velho agora como sempre será.
Malone ouve o próprio coração partir-se e depois estouros. Primeiro pensa que foi atingido, mas não vê feridas nenhumas por isso depois pensa que é a sua cabeça a explodir.
Depois lembra-se.
É o Quatro de julho.
Welcome to da jungle, this is my home,
The birth of the blues, the birth of the song.
CHRIS THOMAS KING, WELCOME TO DA JUNGLE[1]
[1] Letra do álbum de hip-hop DIRTY SOUTH HIP HOP BLUES (2002). (N.T.)