Sumário




Sumário
Ficha Técnica
Sobre o autor
Introdução
Natureza
Bens Materiais
Beleza
Linguagem
Disciplina
Idealismo
Espírito
Perspectivas





Introdução

NOSSA era é retrospectiva. Constrói sepulcros aos antepassados. Escreve biografias, histórias e criticismo.

As gerações anteriores olhavam Deus e a natureza cara a cara; nós o fazemos através de seus olhos. Por que não desfrutaríamos também de uma relação original com o universo? Por que não haveríamos de ter uma poesia e uma filosofia que sejam fruto de nossa própria descoberta e não da tradição, e uma realidade que nos seja revelada, em lugar de ser a história daquela que foi revelada a eles?

Respaldados por um tempo em meio à natureza, cujos transbordantes fluxos de vida nos rodeiam e permeiam, e incitados pelos poderes que nos fornece para atuar em harmonia com ela, por que exumar os ossos secos do passado e submeter essa geração a um baile de máscaras tiradas de seu armário velho? O sol brilha também hoje.

Há ainda lã e linho nos campos. Há novas terras, novos homens, novas ideias. Permitam que busquemos nossas próprias obras e leis e cultos.

Indubitavelmente, não temos perguntas irrespon-díveis. Devemos confiar na perfeição do que foi criado e saber que, seja qual for a curiosidade que a ordem das coisas desperte em nossas mentes, a própria ordem das coisas poderá satisfazê-la. A condição de cada homem é a solução em hieróglifos às questões que ele mesmo formularia. Ele a desempenha enquanto vida, antes de apreendê-la como verdade. Da mesma maneira, em suas formas e inclinações, a natureza já está delineando seus próprios desígnios. Permitam-nos interrogar essa grande aparição que tão placidamente resplandece ao nosso redor.

Indaguemos: com que fim existe a natureza?

Toda ciência tem um propósito: encontrar uma teoria da natureza. Nós temos teorias acerca das raças e das funções, mas apenas uma remota ideia do que é a criação.

Estamos agora tão longe do caminho da verdade, que os teólogos das diversas religiões disputam e odeiam uns aos outros, e os pensadores são considerados mórbidos e frívolos. Porém, para um discernimento sólido, a mais abstrata das verdades é a mais prática. Quando quer que surja uma teoria autêntica, ela será a sua própria evidência, e o que a põe à prova é o que explicará todos os fenômenos. Atualmente, considera-se que muitos deles sejam não somente inexplicados, senão inexplicáveis; tal como a linguagem, o sono, a loucura, os sonhos, os animais, o sexo.

Filosoficamente considerado, o universo é composto pela Natureza e pela Alma. Logo, falando estritamente, tudo o que é distinto de nós, tudo o que a Filosofia distingue como não eu, ou seja, a natureza e a arte, o resto dos homens e meu próprio corpo, deve ser classificado sob esta denominação: NATUREZA. Ao enumerar os valores da natureza e obter sua somatória, utilizarei a palavra em ambos os sentidos: em seu teor coloquial e filosófico. Em indagações tão gerais como a que nos ocupa, a inexatidão não é substancial; não haverá confusão de ideias. Natureza, no sentido comum, refere-se às essências não modificadas pelo homem: o espaço, o ar, o rio, a folha. Arte se aplica à mescla da vontade do homem com essas mesmas coisas, como se dá em uma casa, um canal, uma estátua, um quadro. Porém, tomadas em conjunto, as operações do homem são tão insignificantes – mera escavação, cozimento, arrumação, lavagem – que, comparadas com a impressão grandiosa que o mundo deixa na mente humana, em nada alteram o produto.

Natureza

PARA estar em solidão, um homem necessita apartar-se tanto da sociedade como de seu próprio quarto. Eu não estou só quando leio e escrevo, ainda que ninguém esteja comigo. Se o homem há de estar só, que olhe as estrelas.

Os raios que vêm desses mundos celestiais se interporão entre ele e o que o toca. Diria-se que a atmosfera teria sido feita transparente com esta intenção: brindar ao homem, nos corpos celestes, com a presença perpétua do sublime.

Vistos os astros desde as ruas da cidade, quanta é a sua grandeza! Se as estrelas aparecessem apenas uma noite em mil anos, como creriam nelas os homens e as adorariam, e preservariam por muitas gerações a lembrança da cidade de Deus que lhes foi mostrada! Sem embargo, esses emis-sários da beleza chegam noite após noite e alumbram o universo com seu sorriso admonitório.

 

Os astros despertam certa reverência, pois ainda que sempre estejam presentes, são inacessíveis; mas todos os objetos naturais exercem análoga impressão quando a mente está aberta a seu influxo. A natureza nunca mostra uma aparência vulgar. Nem o mais sábio dos homens pode lhe arrancar seu segredo, nem é capaz de acalmar sua curiosidade descobrindo toda sua perfeição. Para os espíritos sábios, a natureza jamais foi um brinquedo; as flores, os animais, as montanhas refletiram a sabedoria de seus melhores anos, tal como haviam deleitado a simplicidade de sua infância.

Quando falamos da natureza deste modo, temos em mente um sentido diverso, sobretudo poético. Queremos significar a impressão global que causam os múltiplos objetos naturais. Isso é o que distingue o pedaço de pau, que tem diante de si o lenhador, da árvore do poeta. A encantadora paisagem que contemplei esta manhã é composta indubitavelmente de umas vinte ou trinta fazendas. Miller é o dono daquele campo, Locke daquele, e Manning do arvoredo mais adiante. Porém, nenhum deles possui a paisagem. Há uma qualidade no horizonte, da qual nenhum homem é dono; só o é aquele cuja visão pode integrar todas as partes, vale dizer, o poeta. É a melhor parte das fazendas desses homens e, no entanto, seus títulos de propriedade não lhes dão direito sobre isso.

 

Para falar francamente, poucos adultos são capazes de ver a natureza. A maioria das pessoas não vê o sol.

Ao menos, têm uma visão muito superficial dele. O sol ilumina unicamente o olho do homem, mas resplandece em contrapartida no olho e no coração do menino. O

amante da natureza é aquele cujos sentidos interiores e exteriores ainda seguem amoldados verdadeiramente um ao outro; aquele que conservou em sua maturidade o espírito da infância. Seu relacionamento com o céu e com a terra se torna parte de seu sustento diário. Em presença da natureza, um deleite selvagem flui através do homem, a despeito dos seus infortúnios reais. A natureza diz: Eis aqui a minha criatura, e apesar de suas impertinentes aflições, comigo estará contente. Não só o sol e o verão, senão cada hora e cada estação do ano rendem seu tributo de prazer; cada hora e cada mudança correspondem um distinto estado mental, desde o meio-dia sufocante até a tenebrosa meia-noite. A natureza é um cenário que se adapta igualmente bem a uma peça cômica ou trágica.

Quando alguém está são, o ar é um licor de incríveis virtudes. Cruzando sobre a neve fresca um campo despovoado, sob um céu nublado e crepuscular, e sem que me venha à mente nenhum augúrio particularmente bom, senti uma satisfação perfeita. Estou contente à beira do temor. Na mata, um homem também se desprende de seus anos, como uma serpente de sua pele, e em qualquer etapa de sua vida é sempre um menino. Na mata, está a perpétua juventude. Nessas plantações de Deus reinam a santidade e o decoro, luzem as galas e atavios de um festival perene, e o visitante não vê como poderia se cansar de tudo aquilo nem em mil anos. Na mata, retornamos à razão e à fé. Ali sinto que nada haverá de acontecer-me na vida – nenhuma desgraça, nenhuma calamidade (que não danifique minha vista) – sem que a natureza o possa curar. De pé sobre a terra nua, banhada minha fronte pelo ar leve e erguido ao espaço infinito, todo mesquinho egoísmo se dilui. Me converto em um globo ocular transparente; nada sou: tudo vejo; as correntes do Ser Universal me circulam; sou uma porção de Deus. O nome do meu amigo mais íntimo me soa então estranho e acidental; o sermos irmãos, o sermos conhecidos, o ser amo ou ser servo é uma minúcia e uma moléstia. Sou o amante de uma beleza incontível e imortal. Nos lugares silvestres, encontro algo mais caro e próximo a mim do que nas ruas ou povoados. Na paisagem tranquila e, especialmente, na distante linha do horizonte, o homem contempla algo tão belo como sua própria natureza.

O maior deleite que os campos e os bosques comu-nicam é a sugestão de uma oculta relação entre o homem e os vegetais. Não estou só, nem ignorado. Fazem-me sinais e eu lhes respondo. O balanço das ramas em meio a tormenta é para mim novo e antigo. Toma-me de sur-presa e, apesar disso, não me é desconhecido. Seu efeito é semelhante ao do alto pensamento ou à emoção sublime que me invade quando julgo que estou raciocinando com acerto ou que estou trabalhando corretamente.