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Ficha Técnica

Título original: Voyage of Innocence

Título: Uma Menina de Boas Famílias

Autora: Elizabeth Edmondson

Traduzido do Inglês por Margarida Luzia

Capa: Maria Manuel Lacerda

Imagem da capa: Condé Nast Arquive/Corbis/VMI

ISBN: Elizabeth Edmondson

Edições ASA II, S.A.

uma editora do Grupo LeYa

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Para Jean Buchanan,

uma verdadeira amiga

PRÓLOGO

OUTUBRO DE 1938

–É uma emergência, senhor.

O oficial de serviço tentou de novo, falando então mais alto e com maior urgência:

– Senhor! Comandante, acorde por favor. É uma emergência.

Reginald Sherston, comandante do SS Gloriana, navio de passageiros com destino à Índia, ergueu a cabeça grisalha da almofada branca e bem engomada. Abriu os olhos, os olhos de um azul desbotado de alguém que andava embarcado desde os catorze anos de idade, voltando-se em seguida para o imediato, um homem capaz, pouco dado a histerismos, e para onde o camareiro estava parado, segurando o seu uniforme.

– Conte-me tudo, Mr Longbourne.

Minutos depois, o comandante Sherston encontrava-se na ponte do navio.

Os oficiais, com os seus uniformes brancos, executavam em silêncio as tarefas respectivas e o timoneiro, concentrado na sua rota, mantinha-se alerta. Todos estavam interessados no que o imediato e o comandante estavam a dizer.

O navio continuou a vogar pelas águas do Mar Vermelho. Acima deles, o céu reluzia com as cintilantes estrelas que eram a dádiva das viagens oceânicas, reflectindo-se na negra e suave ondulação. O sussurro dos motores era compassado, tranquilizante.

– Essa tal Mrs Hotspur, passageira com destino a Bombaim, desembarcou em Port Said?

– Sim, comandante. Passou o dia em terra.

– Foi em alguma excursão? Visitar as pirâmides?

– Não, comandante. Foi a terra com amigos.

– Mas regressou a bordo.

– Sim, tanto quanto sabemos. O seu cartão de reembarque foi entregue.

– E a respectiva camareira diz que a cama dela não foi usada a noite passada? Quem é a camareira?

– A Pigeon, comandante.

– E ela não o comunicou?

– Acontece, comandante, que por vezes uma senhora pode… – o imediato olhou para o rosto presbiteriano do comandante Sherston e engoliu em seco – …passar a noite noutro lugar.

– Os camareiros da sala de jantar dizem que hoje não tomou o pequeno-almoço, o almoço, nem o jantar?

– Correcto, comandante.

– E essa criança de dez anos, Peter Messenger, afirma tê-la visto encostada à amurada no convés C por volta das nove horas, setenta minutos depois de termos zarpado de Port Said?

– Sim, comandante.

– Fale-me de Mrs Hotspur.

O imediato consultou então as suas notas.

– Mrs Verity Hotspur. Viúva, segundo consta. Uma senhora perfeitamente encantadora, prima de Lady Claudia Vere, que também se encontra a bordo; embarcou em Lisboa. Foi Lady Claudia quem deu o alarme.

– Lady Claudia Vere. Quer isso então dizer que a passageira desaparecida, prima de Lady Claudia, estará relacionada com uma série de pessoas importantes?

– Receio que sim, comandante.

O comandante Sherston soltou um profundo suspiro.

– Procedimentos de emergência para homem ao mar, Mr Longbourne.

– Sim, comandante.

Em seguida, após as ordens terem sido dadas, o imediato indagou:

– Ela não tem grandes hipóteses, pois não?

– Nenhuma. Se escapou às hélices, os tubarões apanharam-na na certa. Caso contrário, ter-se-á afogado.

PRIMEIRA PARTE

SETEMBRO DE 1938

1

Verity saiu para o convés num daqueles pálidos dias outonais que oscilam entre a chuva e o sol. Encrespando as águas do porto, uma rajada de vento avisava que o Verão estava a dar lugar ao Outono.

E apesar do fino casaco de lã que envergava, arrepiou-se, não só devido ao ar fresco que anunciava a chegada do tempo frio, mas também por um secreto e gélido medo que sentia. Medo dos tempos, com a sombra da guerra a pairar sobre o país que estava a deixar, e medo por si própria. Já não receava a guerra propriamente dita, pois nada podia fazer para a impedir ou se preparar para ela. O que a assustava então? Os seus pesadelos? Klaus e o seu sucessor, aquele homem de rosto inexpressivo sem personalidade aparente? O seu futuro, o destino do irmão?

Tudo isso.

As gaivotas esvoaçavam no céu acima da sua cabeça e oscilavam nas águas oleosas lá em baixo – e os seus gritos fantasmagóricos eram um contraponto aos apitos e silvos surdos dos rebocadores e dos outros barcos que entravam e saíam do atarefado porto. Vee inalou o ar salgado, o travo a alcatrão, a mar e a fumo das docas, sentindo na boca um gosto amargo. A vasta área das Docas de Tilbury, frenética com a agitação e a actividade de um dos portos mais movimentados do mundo, não tinha para ela qualquer encanto; Vee ansiava pela partida do navio, que a faixa de água entre a embarcação e o cais se alargasse até perfazer um braço, um fosso de cinquenta metros, que a terra se desvanecesse na distância, que só houvesse ondas cinzento-esverdeadas, espuma e céu.

Por capricho dos ventos, vozes elevavam-se do cais até ela e as palavras chegavam-lhe aos ouvidos com extraordinária nitidez. Uma animada voz feminina: «Oh, vejam, não é Mrs Verity Hotspur quem ali está em cima? Sempre tão elegante! Com o chapéu vermelho!»

«Quem é Mrs Hotspur quando está em terra?»

«É uma senhora de sociedade, viúva, o marido…»

As palavras perderam-se com o vento, recuperando depois a nitidez.

«Deve estar a ir para o Egipto, passar o Inverno.»

«Deve é estar a fugir para um lugar seguro», disse uma voz taciturna e nasalada. «Quem me dera poder fazer o mesmo.»

«Então, Jimmie», disse a voz animada, «sabes bem que é preciso lutar pela pátria. E, de qualquer forma, quem diz que vai haver guerra? Sejamos optimistas».

«Eles estão todos a fugir. Há uma lei para os ricos e outra para o resto.»

Fugir! Deus do Céu, se ao menos eles soubessem do que ela estava a fugir. Da guerra? Era patético. Inevitável, mas irrelevante e absolutamente dissociado do que a fazia estar no convés superior do SS Gloriana, partindo a qualquer momento – e já era tarde – para a Índia.

Vee apoiou os braços no parapeito de teca. O mundo a bordo era ordeiro. As madeiras e os metais eram polidos até resplandecerem, até reluzirem como espelhos. Era um mundo governado por sinetas e rotinas e pessoas que conheciam os seus deveres. Um mundo onde lascaris se levantavam antes da alvorada para esfregar e secar na perfeição os conveses antes de os pés dos passageiros ou dos oficiais os poderem pisar. Um mundo onde as refeições eram servidas com exemplar pontualidade e onde todos os dias a distância percorrida era impreterivelmente registada ao meio-dia.

Porém, era um mundo bastante mais mutável do que aquele que estava a deixar. À medida que o Gloriana progredisse resolutamente pelo mar, imperceptivelmente as estrelas afastar-se-iam das suas posições habituais até, certo dia, serem estrelas diferentes, as estrelas dos céus do Sul, e o navio teria viajado da Europa para o Oceano Índico.

Novos céus, um novo país, mas a mesma vida de sempre. Vee desejava que aquela viagem assinalasse uma mudança na sua existência, um daqueles pontos de viragem em que uma porta se fecha sobre o passado e nos deparamos com o início de algo completamente novo.

Mas quantas vezes acontecia isso numa vida? Quando nascíamos, naturalmente. Quando aprendíamos a andar – embora ninguém nunca o recordasse, pelo menos não de forma consciente – e que diferença isso representava para a vida: os primeiros passos, o primeiro cheirinho a independência. A escola talvez fosse um novo recomeço; para ela, Vee, a ida para o colégio interno marcara o fim da sua infância. Mas o maior passo – não, o maior salto – de todos fora quando embarcara no comboio no Yorkshire para ir para a universidade, onde, logo desde os primeiros anos, iniciara uma existência nova e adulta. Encarara-o como uma freira que ouve o chamamento do Senhor e segue a sua vocação. Que errada estava então. Quão piegas, quão ingénua, quão revoltada fora, julgando-se muito importante e detentora da verdade.

E fora por escutar essa falaciosa vozinha interior e ceder à sua ira que agora ali estava. A bordo do SS Gloriana, viajando a mando de outrem, cheia de medo e ódio, interrogando-se sobre se conseguiria cumprir o que dela era esperado, sabendo que não o queria fazer. Mas qual era o preço do insucesso? Uma vida.

Vee contemplou o lado íngreme do enorme paquete que se estendia por mais três níveis de parapeitos e conveses, seguidos de filas de vigias, até alcançar o nível do chão, onde o vento revolvia farrapos de papel e lixo ao longo do cais. Aí em baixo, quais peças num tabuleiro de xadrez, as pessoas aglomeravam-se com a aproximação da hora da partida.

Os últimos passageiros deixaram, apressados, a dependência alfandegária, conferindo passaportes e cartões de embarque. Viam-se carregadores a empurrar carrinhas com torres de bagagem de alturas improváveis, cada mala e caixa e baú devidamente etiquetado com autocolantes: P&O; SS Gloriana; iniciais, uma grande letra maiúscula dentro de um círculo, B para Brown, J para Jones, S para Smith; etiquetas de destino para Lisboa, Port Said, Bombaim; «Necessário na Viagem». A bagagem «Não Necessária na Viagem» fora toda levada para o porão, permanecendo arrumada em serenas filas até aos respectivos portos de desembarque; Vee desejava poder empacotar-se e fazer a viagem com a carga, na escuridão do porão. Era esse o seu lugar, entre os ratos e os detritos, e não aquele, no conforto e luxo da primeira classe.

«Ratos a abandonarem o navio, é isso que eles são», disse a voz nasalada. Vee contemplou as grossas amarras que se estendiam, retesadas, até aos cabrestantes do cais, segurando o navio firmemente no lugar. Ouvira dizer que os ratos percebiam de facto quando um barco estava a afundar-se, quando algo não estava bem, tendo sido vistos a descerem pelas cordas até terra. Não, ali não havia ratos. Para aquele homem o rato era ela. Ela e todos os outros passageiros.

«Toma conta do Sam e não sejas tão maldizente.»

Era de novo a mulher bem-disposta que a reconhecera e que certamente vira a sua fotografia na revista Tatler, ou nos pasquins mais ignóbeis quando… Não, ela não ia pensar nisso.

Vee semicerrou os olhos, tentando identificar quem, de todos os que enchiam o longínquo cais, a chamara de rato. Era aquele homem com o impermeável puído e um chapéu que já conhecera melhores dias. Ao seu lado estava uma jovem desenvolta com um casaco demasiado fino até mesmo para aquela altura do ano. Tinha uma expressão de obstinado bom-humor estampada no rosto, e o cabelo, soltando-se de um chapéu de veludo que fora escovado até levantar felpo, era de um louro berrante. Tinha demasiado bâton nos lábios, mas possuía personalidade, confiança em si própria. Vee invejava-a. Sentia que, fosse ela quem fosse, Miss Chapéu de Veludo tinha uma vida melhor, menos complicada que a sua. Provavelmente dormia toda a noite em paz, sem sonhos a atormentá-la, acordando cheia de curiosidade e entusiasmo face ao novo dia – ainda que certamente precisasse de trabalhar muito para assegurar uma parca existência, não tendo nunca muito que comer nem grandes esperanças num futuro melhor.

«O Sam não está a fugir, Jimmie. Tem uma função a cumprir lá fora, tal como tu e eu temos aqui.»

«Eu não disse que o Sam estava a fugir, tal como não acho que os outros que viajam em turística o estejam a fazer. São pessoas normais, como o Sam, como eu e tu. Não…» e com um gesto de desprezo apontou para o convés onde Vee se encontrava, «é aquele bando ali de cima que me irrita. Toda aquela gente da primeira classe cheia de não me toques, que não levanta um dedo para fazer coisa alguma. Refeições de sete pratos e baile todas as noites, sem se importarem com nada, limitando-se a sair de Inglaterra depressa antes que as bombas nazis cheguem e eles se possam ferir.»

«Mas como eu já disse, talvez não chegue a haver guerra.»

«Como se o sol não se levantasse amanhã. Essa cambada sabe perfeitamente que vai haver guerra. E se não conseguem fugir para a América, então acham que se podem esconder nalgum lugar quente onde a vida prosseguirá como sempre, com os seus criados e os whiskies, enquanto as outras pessoas são feitas em pedaços. Dá-me de facto uma volta ao estômago.»

«Tudo te dá a volta ao estômago, Jimmie.»

«Eu sei quem é essa Mrs Hotspur.» O tom de Jimmie era de indignação. «Veio tudo nos jornais quando o marido dela morreu. Cá para mim, o assunto tem muito que se lhe diga.»

Vee seguia com o olhar o voo errático de uma gaivota, mas não estava a ver nada. Estava a contemplar uma cena interior, uma outra realidade, um estúdio manchado de sangue. E as palavras de Klaus, naquele dia em Paris, vieram-lhe à mente: «Tomámos providências para que certas coisas aconteçam».

Certas coisas? Não, era impossível. Porque haveriam eles de o fazer? Mas, por outro lado, se eles eram responsáveis, quão segura estaria ela? Em Londres, ali, em qualquer outro lugar? As palavras rodopiaram-lhe pela mente. Não ponhas um pé em falso, faz sempre o que eles dizem, não há perdão nas suas almas. Não queiras ter um fim macabro…

Um cheiro a peixe encheu-lhe as narinas, peixe e algas, o odor da praia quando a maré vaza, revelando os detritos que repousam sob as águas.

«Olha, o Sam está a acenar.» Com o rosto iluminado, a jovem do chapéu de veludo pegara no lenço vermelho que usava ao pescoço, tendo começado a acenar em direcção à extremidade contrária do navio, onde os passageiros da classe turística apareciam no convés para fazerem as respectivas despedidas e verem a sua terra natal desaparecer no horizonte.

A rapariga olhou de novo para Vee e, durante alguns segundos, os olhos de ambas cruzaram-se. A rapariga voltou-se depois para o homem do impermeável puído e mais uma vez as palavras alcançaram os ouvidos de Vee. «Os escândalos perseguem-na. Aparece imenso na Tatler, e a prima também, Lady Claudia Vere, que é lindíssima, loura, com grandes olhos azuis. Há sempre fotografias dela nas revistas da sociedade.»

«Sim, e tem um irmão aristocrata que é completamente maluquinho e que não tardará a baloiçar do lampião mais próximo assim que chegar a revolução.»

«Oh, tu e a tua bendita revolução. Ouve bem o que te digo: não vai haver nenhuma revolução bolchevique, e quanto mais depressa o enfiares na cabeça mais feliz serás. Só assim poderás viver a tua vida em vez de te queixares dela.»

Vee virou-se então, desalentada com a familiaridade das palavras da rapariga. Sentia pena de Jimmie e das suas ilusões. Provavelmente, ainda antes do final do ano, estaria a usar uniforme e de tal forma próximo dos seus irmãos que viria a ansiar por um menor grau de camaradagem, sem um minuto por dia para pensar nos direitos dos homens ou na opressão dos trabalhadores.

Em baixo, no cais, havia uma enorme sensação de urgência; um carro surgiu a grande velocidade e as portas abriram-se de par em par ainda antes de o veículo travar. Três homens saíram para o cais, um carregador veio a correr para retirar as malas do porta-bagagem, um funcionário com uma pequena prancheta e uma expressão sisuda conduziu-os para a dependência alfandegária, consultando o relógio enquanto o fazia.

Vee empertigou-se, fixando o olhar num homem alto, moreno e de fato cinzento que estava parado ao lado de um cesto de verga. Não sabia o seu nome, nunca lhe fora apresentada, mas já o vira antes, várias vezes, sempre como uma presença furtiva, sombria. Um observador. No parque, onde ela e Klaus… E em frente ao seu apartamento. Um homem com um rosto ossudo. Indistinto. Porém, as suas feições estavam gravadas na mente dela. Usava o género de roupa que nunca sobressaía na multidão, era perito em passar despercebido.

O pânico instalou-se então. Se ele subisse a bordo, só poderia ter um significado.

Tinha de desembarcar. Aquilo era um enorme erro. Desembarcaria imediatamente do navio, naquele mesmo instante, e que se danasse a bagagem, que se danasse tudo o resto. Apanharia o comboio para Londres, e depois para a Escócia, para a Irlanda, para um lugar qualquer…

Mas não podia. O desespero submergiu-a como uma onda.

Estaria ele efectivamente a embarcar para a viagem? Não estava a avançar para o navio. Em vez disso, os seus olhos varriam os conveses de forma resoluta, sistemática. Vee recuou e aninhou-se por trás de um pilar de metal. Os olhos do observador detiveram-se, avançaram, voltaram atrás. Mas o seu olhar não estava focado nela. A sua mão ergueu-se num gesto casual de reconhecimento e depois ele virou-se, eclipsando-se na multidão de espectadores.

Afinal não estava à sua procura. De quem, então? Aparentemente alguém no convés de baixo, mais para a esquerda. Vee debruçou-se sobre o parapeito, mas só conseguia ver chapéus. Todos olhavam para baixo, para o cais, ou para os rebocadores que manobravam para se colocarem nas respectivas posições.

Correu então pelo convés, esgueirando-se por entre os passageiros, quase caindo pelas íngremes escadas de portaló de acesso ao apinhado convés inferior. Havia rostos sombrios, chorosos até, outros alegres. Qual deles procurava o homem? Vee vislumbrou alguém parecidíssimo com Joel. Não podia ser, naturalmente. Joel seria a última pessoa a deixar a sua faculdade e viajar antes do início de um trimestre.

Alguns dos seus companheiros de viagem reconheceram-na, desdobrando-se em sussurros e olhares curiosos. Mas nenhum deles correspondia ao tipo certo de pessoa; nenhum deles podia ser um associado do homem em terra.

Um coro de vivas elevou-se do cais, serpentinas de papel choveram dos conveses e as escadas de portaló foram afastadas. Choros e gritos de resposta ecoaram dos conveses, houve uma deflagração de vapor, um apito e depois um disparo da chaminé do SS Gloriana, um som estranhamente suave comparado com as notas surdas dos rebocadores. Uma banda tocava, fiadas de bandeirolas esvoaçavam e uma delas soltou-se, precipitando-se em direcção ao mar.

Centímetro a centímetro, o navio afastou-se do cais. Meio metro de água suja surgiu então, seguido de um metro e depois cinquenta. Depois o SS Gloriana, escoltado pelos acólitos rebocadores, começou a vogar serenamente pelos cinzentos trechos do Tamisa, passando lentamente por armazéns e barcaças. Pessoas em pequenos barcos acenavam e sirenes, buzinas e apitos soaram de novo pelo ar – a viagem começara.

Vee permaneceu no seu posto, observando distraidamente enquanto passavam por deselegantes cargueiros, atarracados e enferrujados, de porões escancarados, com engradados e redes repletas de mercadoria a serem descidos por guinchos para as suas entranhas.

Negócio, propósito, actividade.

Que gente tão sortuda.

Seria ela desafortunada?

O instante de autocomiseração passou antes mesmo de começar. Não se tratava de sorte. Era uma questão de ter tomado as decisões erradas, de se ter deixado levar pelo temperamento, pela insensatez, pela raiva. E de um erro desastroso. Um erro bem-intencionado que conduzira a outro e mais outro, e ainda outro, que a conduzira até ali, onde não desejava de todo estar, agindo e vivendo como uma marioneta, sendo conduzida por um mestre que não se interessava mais por ela, pela sua raiva ou temeridade do que se ela fosse de facto um boneco inanimado.

Se ao menos…

Os «se ao menos» já não eram novos e Vee sabia-o bem. Se ao menos a sua irmã Daisy não tivesse morrido. Se ao menos o avô não tivesse sido tão tirânico. Se ao menos…

A sua vida poderia ter seguido um rumo diferente. Se pudesse reaver aqueles anos passados, ter uma oportunidade mágica de os reviver, não estaria certamente ali, naquele barco.

E eis que a assaltavam de novo os terríveis pensamentos que martelavam incessantemente na sua mente. À noite precisaria de um comprimido para dormir, para conseguir uma hora ou duas do sono profundo desprovido de sonhos que tanto desejava. Nesse breve período de tempo, nenhum sonho conseguia transpor o véu farmacêutico dos seus comprimidos brancos: teria de tomar um antes de se deitar.

Estava profundamente grata a um amigo médico por lhos ter receitado.

– És uma tonta, Vee – dissera ele. – Isso não é solução. E se o teu próprio médico não tos receita, deve ter razão.

– Meu querido, ele é simplesmente antiquado. Segundo ele, eu só durmo mal por ser uma jovem sem marido nem filhos, não estando portanto a cumprir a minha «raison d’etre».

– Ele não te pode culpar por seres viúva.

– Mas pode culpar-me por ser uma jovem viúva abastada que, após um intervalo razoável de tempo, não tornou a casar. É uma afronta à ordem natural das coisas, quase tão escandaloso como Cynthia Lovelace ir viver para uma casa de campo em Gales com a sua corpulenta amiga que ensina Educação Física em Grandpont, ou os espécimes pouco femininos que optam por ir para a universidade e ter uma carreira em vez de sacrificarem a virgindade e a independência no altar de Himeneu a um qualquer jovem elegível e adequado. Portanto, não, ele não me dá os comprimidos.

Os pensamentos de Vee vaguearam momentaneamente para a prima Mildred, que tinha os seus próprios meios para lidar com os fardos e preocupações da vida: «Experimenta um pouco, minha querida, não há nada igual».

Era inevitável haver gente conhecida a bordo, muitos dos quais com os mesmos hábitos de Mildred. A maioria pertencia à ociosa classe dos ricos, não estando a partir para ir ocupar um posto, um emprego, como o desconhecido Sam, com os seus amigos Jimmie e Chapéu de Veludo a despedir-se dele no cais de embarque. Egipto? Índia? A sua semana de férias seria passada a caminhar em Gales ou numa modesta pensão na costeira vila de Weymouth; não teriam o luxo de semanas e meses de indolentes viagens em climas mais quentes, com substâncias caras para mudar a disposição e o humor caso sentissem necessidade.

Oh, sim, haveria na certa amigos e conhecidos no Gloriana, gente que ia passar o Inverno sob o sol egípcio, e estava-se na altura do ano em que amas e filhas que não tinham tido sucesso durante a temporada, ou várias temporadas, resolviam ir em peregrinação, partindo para terras distantes onde o calor e as fechadas comunidades britânicas poderiam produzir o esquivo par não encontrado nos salões de baile de Mayfair ou nas casas de campo do Shropshire e do Gloucestershire.

Vee desceu lentamente a larga e espelhada escada que unia os conveses superiores aos inferiores. E atraiu muita atenção: do oficial subalterno a caminho da sala de rádio com um maço de telegramas; da florista que seguia em sentido contrário com uma braçada de flores; de uma criada pessoal que corria apressada para o salão de beleza para comprar um qualquer artigo essencial esquecido; de passageiros ansiosos por encontrar os respectivos camarotes – todos eles repararam no particular encanto de Vee. Alguns observaram desinteressados, outros admiraram-na, alguns invejaram-na.

A própria Vee estava alheia à sua envolvência, bem como aos outros seres humanos. A sua capacidade de atrair a atenção dos que a rodeavam – de atrair afectos e desejos, há que o dizer – não era para si uma novidade, por isso já não lhe interessava.

Uma camareira estava parada no fim do corredor.

– Mrs Hotspur? Camarote sessenta e sete? É à esquerda, eu mostro-lhe. Está a viajar com a sua criada pessoal?

Não, Vee não estava a viajar com uma criada pessoal. Um sorriso, uma douceur, e aquela deselegante mas afável criatura seria sua escrava durante toda a viagem. Uma criada pessoal! Uma criada era a última coisa de que precisava naquela viagem.

Era um camarote individual, espaçoso para um transatlântico, com um toucador e armários e gavetas embutidos; um camarote exterior, com uma janela rectangular que dava para um convés semiprivado. Não eram permitidos curiosos nem gente barulhenta naquela extensão do convés. Era uma área reservada para os felizardos ocupantes dos camarotes sessenta e cinco a setenta e sete. A sua bagagem já ali estava, bem presa e etiquetada com um enorme H de Hotspur, passageiro de Primeira Classe com destino a Bombaim.

Vee sentou-se ao toucador e tirou o seu chapéu vermelho, pousando-o descuidadamente na superfície de vidro. A camareira, parada junto à porta, entrou e pegou no chapéu. Vee sorriu para ela.

– Como se chama?

– Pigeon, minha senhora.

– Obrigada, Pigeon.

– Quer que lhe desfaça as malas, minha senhora?

– Mais tarde, se não se importar.

Pigeon mostrava-se relutante em partir.

– Estávamos à espera que um tal de Mr Howard ficasse com este camarote.

– A minha marcação foi tardia, houve uma desistência.

Fora de facto um risco deixar a marcação para tão tarde, mas o funcionário da companhia de navegação sussurrara em confidência que havia sempre um camarote à última da hora. Não incomodava a companhia, pois havia sempre uma lista de espera, sobretudo para um navio como o SS Gloriana, e ainda mais naquela altura do ano.

Um sorriso, uma nota e Mrs Hotspur avançara para o topo da lista de espera. «O que acontecera a Mr Howard?» ponderou ela por um breve instante. Seria ele um cavalheiro de idade acometido por uma apoplexia? Um próspero homem de negócios com assuntos urgentes pendentes que o tinham impedido de viajar? Um indivíduo com posses, sem dúvida, para viajar num tal camarote. Um jovem caído em desgraça, a ser enviado para o Oriente pela desolada família? Enviar-se-iam ainda os jovens para a Índia para os manter afastados de perigos? O que teria acontecido se os seus pais tivessem enviado Hugh para a Índia? Não, ela não ia pensar em Hugh. O rol de pessoas e assuntos sobre os quais não queria pensar era alarmantemente longo. Mas regressemos a Mr Howard.

– Palpita-me que era um homem de família a fugir para uma vida nova – comentou Vee.

– Como, minha senhora? – inquiriu a espantada Pigeon.

Vee riu.

– Oh, não é nada. Estava apenas a pensar em voz alta. – E levantou-se, alisando as rugas da sua saia justa. – Vou dar uma volta. Entretanto poderá arrumar as minhas coisas. Nessa mala grande, na que está de lado, há um vestido cor de vinho que dará bem para esta noite.

– Será melhor falar com o comissário de bordo para tratar do seu lugar na sala de jantar, minha senhora – disse Pigeon, atirando-se à mala. – Vai querer estar numa boa mesa na segunda sessão.

*

Bastava olhar para Mrs Hotspur para perceber de imediato que era uma mulher elegante e uma verdadeira senhora, pensou Pigeon, enquanto estendia as mãos para receber as chaves das malas. O comissário de bordo ficaria encantado por ela se sentar onde quisesse. Mas não seria na mesa do comandante, se é que ela, Pigeon, sabia avaliar os passageiros. Era uma mesa demasiado enfadonha para uma senhora tão elegante e animada. Estava certa de já ter visto, por mais de uma vez, a sua fotografia na Tatler. Sentia-se satisfeita. Preferia de longe passageiros da classe alta à ralé que naqueles tempos subia a bordo.

2

Com todo o entusiasmo dos seus dez anos, Peter Messenger adorava transatlânticos. Adorava apanhar o comboio que fazia a ligação com o porto e chegar às docas onde os enormes e elegantes paquetes brancos estavam ancorados, presos com gigantescos cabos que se elevavam até às proas. Adorava o cheiro oleoso e salgado, as gaivotas, a sombria dependência alfandegária e as pilhas de malas, criteriosamente etiquetadas e aguardando para serem içadas para dentro do navio, onde parte delas desapareceria no porão, aquele lugar misterioso para onde seguia a bagagem não necessária na viagem, e as restantes apareceriam nos camarotes dos respectivos passageiros, esperando serem abertas e desmanchadas e depois guardadas pelo bagageiro responsável até ao fim da viagem, três semanas depois.

A primeira vez que estivera num navio, sentira-se assoberbado com o seu tamanho, com a noção de que algo assim tão grande pudesse de facto navegar sem se afundar. Mas desta vez subira com passos seguros a escada de portaló, à frente de Lally, a sua madrasta, com a tal Miss Tyrell a fechar o cortejo.

Miss Tyrell era o único estorvo à sua total felicidade. Por que razão resolvera a mãe levá-la com eles?

– Querido, eu não estou a levá-la connosco. Ela já estava a caminho da Índia para ir tomar conta do irmão, dos sobrinhos e sobrinhas. A cunhada faleceu recentemente, uma verdadeira tragédia, de uma doença tropical, segundo ela me contou.

Peter desejara que a própria Miss Tyrell fosse de imediato acometida por uma doença tropical, ainda antes de embarcarem.

– Mas ela é uma ama.

– Já não, e não só tomará conta de ti como de mim. Da minha roupa e afins. Não vou levar nenhuma rapariga. O teu pai diz que as criadas inglesas são inúteis na Índia, não se conseguem adaptar. Miss Tyrell irá ser-nos muito útil, e vais ver que acabarás por gostar dela.

– Sou demasiado crescido para ter uma ama.

– Não és demasiado crescido para precisares de alguns cuidados adicionais. Tens estado tão doente, querido. Quando eu não estiver presente, ficarei muitíssimo mais descansada sabendo que Miss Tyrell está a olhar por ti.

– E porque não hás-de estar presente?

– Bem, como tão bem sabes, há toda uma vida social a bordo do navio. Bridge e outros jogos, bem como bailes e afins à noite. Não quero estar sempre a preocupar-me contigo.

– Eu sou capaz de tomar conta de mim próprio.

– Claro que és. És o homem da família enquanto o papá não está connosco, mas ainda assim, ficarei satisfeita por termos Miss Tyrell a ajudar-nos. Não creio que seja uma pessoa complicada. Parece-me ser muito prática e sensata.

Lally guardou as suas reservas para si. Embora não o confessasse a Peter, Miss Tyrell fora-lhe basicamente imposta. A cunhada de Claudia telefonara-lhe.

– Mrs Messenger? O meu nome é Monica Sake. Conhecemo-nos em tempos, em Londres, quando estava em casa da Claudia, mas imagino que não se recorde de mim…

– Ah, com certeza…

– Soube pela Agnes que vai para a Índia.

O coração de Lally ensombrou-se, como sempre acontecia quando a sogra era mencionada.

– No Gloriana.

– Sim.

– Então gostaria de lhe pedir que levasse consigo a nossa antiga ama.

Visões de uma decrépita servidora de família assolaram a mente atónita de Lally.

– Oh, não, não creio que…

E afinal porque estaria a antiga ama a ir para a Índia?

– Estamos desolados por a perdermos. É a melhor ama que se possa imaginar, está com a família desde que era uma simples criadita, foi a ama do meu marido. E da Claudia, naturalmente. Foi ama de todos eles.

Era isso. Monica Sake era a esposa de Lucius; era a condessa de Sake. E a ama que Lady Sake lhe queria impingir tomara conta de Claudia e de Lucius, o qual fora apelidado pela irmã e por Vee – qual fora mesmo a palavras que elas tinham usado? – de maluquinho.

A voz de Monica continuara a cacarejar:

– Tentámos persuadi-la a ficar. Contudo, a esposa do irmão faleceu há pouco tempo, com uma qualquer doença estrangeira, e a ama Tyrell acha que é seu dever ir cuidar do irmão e da casa. Não é uma altura muito conveniente para nós, ela deveria ir para casa da Henrietta para tomar conta do bebé. Mas suponho que tenhamos de a deixar fazer o que ela entende ser melhor para si própria.

Lally começara a simpatizar ligeiramente com a desconhecida Miss Tyrell.

– Ela quer pagar a passagem com trabalho. É uma alma frugal. Soube que vai levar o seu enteado… o pobrezinho tem estado doente, não é verdade? Ainda não está suficientemente forte para ir para a escola? Ela será perfeita. Poderá tirar-lhe o rapaz das mãos. Não vai querer ser incomodada com um rapaz dessa idade numa viagem transatlântica. Ou vai levar a sua própria ama?

– Bem, a verdade é que não.

– Ou uma criada?

– Também não.

– Ela poderá desempenhar igualmente essa função. É extremamente competente, e será uma enorme ajuda para si. Está decidido então.

E, para desalento de Lally, assim fora. Ainda não dissera a Henry que ia levar consigo Peter, e esperava que as notícias sobre a doença do rapaz não tivessem chegado aos ouvidos do marido através das cartas que a sua família intrometida lhe escrevia sempre que tinha um momento livre. Felizmente, Henry quase nunca lia cartas privadas; Lally suspeitava que as suas eram as únicas a que ele dava alguma atenção e tinha sempre o cuidado de as manter sucintas.

– A correspondência oficial chega perfeitamente para um homem – dizia ele, abrindo uma longa e enfadonha missiva da mãe, folheando as várias páginas e amarrotando-as numa bola antes de as atirar para o cesto dos papéis.

Aquela não era a primeira viagem marítima de Miss Tyrell. Já atravessara o atlântico mais de uma vez, tendo inclusivamente acompanhado os Vere a Hong Kong – esse era de facto um país estranho – e passado seis meses em Bombaim. Miss Tyrell gostava da Índia. Gostava do calor e da energia, embora a pobreza extrema e os animais escanzelados a incomodassem bastante.

Estava contente por poder pagar a passagem com trabalho e não com dinheiro. Por um lado, tal significava que viajaria em primeira classe, algo a que estava efectivamente habituada. Se fosse obrigada a pagar, teria comprado um bilhete de turística, vendo-se forçada a partilhar um camarote nas profundezas do navio, viajando em companhia muito distinta do habitual. Porém, não estava muito segura em relação a Mrs Messenger. Lady Sake referira-se a ela naquele tom piedoso que os seus patrões usavam para falar de maluquinhos, aleijados e párias sociais.

– O Harry, claro está, é absolutamente um dos nossos, os Messenger são uma família antiquíssima, mas a Lally, como eles lhe chamam, creio que nome dela é Lavender, está longe de o ser. É americana, o que é de facto um outro mundo, não acha? Na minha opinião é bastante voluntariosa, mas a verdade é que deve ser necessário ter uma personalidade forte para lidar com o Harry. Nunca conheci um homem com tanta energia. O pai dela é politico, e ainda por cima de Chicago. Era médico antes de ir para o senado, irlandês, naturalmente, o apelido de solteira dela era Fitzpatrick. E é católica. Incomoda-a o facto, ama Tyrell?

Não possuindo grandes convicções religiosas pessoais e subscrevendo apenas o convencional anglicanismo dos seus patrões, Miss Tyrell respondera que não num tom de voz que deixara Lady Sake momentaneamente convencida de ter cometido um solecismo pelo mero facto de ter mencionado a religião.

– Espero de facto que não enjoe, Miss Tyrell. Nesta altura do ano o Golfo da Biscaia pode ser muito turbulento.

Enjoar? Ela? Nem pensar. À medida que o SS Gloriana entrava naquilo que a tripulação apelidava de noite ruim, o seu estômago permaneceu absolutamente sereno. Como precaução, administrou a Peter uma dose de tónico, não fosse o rapaz ser dado a arrelias de barriga, como ela designava qualquer distúrbio estomacal – o remédio ajudá-lo-ia também a ser regular, algo fundamental para uma criança que estava a convalescer. Era mais que óbvio que Peter era um rapazinho nervoso, embora isso pudesse dever-se ao facto de ter estado tão doente. E Mrs Messenger? Miss Tyrell sentiu pena dela. Não gostava de ver uma jovem com os olhos tão cansados nem com uma tal expressão de preocupação. Era verdade que a criança correra perigo de vida, mas já estava melhor e, além do mais, era seu enteado e do seu próprio sangue. Talvez esse fosse o problema. Mas ali estava ela, a caminho da Índia, para se juntar ao marido. Era uma ocasião festiva. Não era tempo para preocupações.

E pela sua cor, não parecia ser grande marinheira.

– Vá dar uma volta Peter, a mamã não se sente muito bem e não está com disposição para as suas conversas.

– Mas eu só estava a falar-lhe dos nossos conhecidos a bordo.

Miss Tyrell não tinha o direito de o tentar afastar da mãe. Mas depois o rapaz compreendeu.

– Ah, está enjoada – afirmou então num tom trocista.

3

Perdita Richardson contemplou o estreito camarote. Agradava-lhe a vigia redonda com um reconfortante e característico ar náutico; já que fora enviada numa viagem marítima, mais valia sentir que estava efectivamente a bordo de um navio e não num mero hotel flutuante. No ano anterior fora despedir-se da sua amiga Tish e do respectivo marido após o casamento dos dois. O casal reservara um camarote de luxo no Queen Mary – tinham ido passar a lua-de-mel com a família do marido na Nova Inglaterra – e Perdita ficara desapontada ao ver quão normal era o aposento. Era sem dúvida luxuoso, mas podia ser um quarto em qualquer hotel do mundo.

Aquele, porém, era inegavelmente naval: armários embutidos sob a cama, tudo no devido lugar. Perdita tirou o informe chapéu de feltro castanho que à hora da partida enterrara na cabeça por não ter então à mão nada mais apropriado e sacudiu vigorosamente o cabelo. Encaracolado e rebelde, costumava domá-lo – quando se dava ao trabalho – com um impressionante rol de ganchos e fixador. Normalmente deixava-o no seu estado natural. Era uma das vantagens de ser estudante de música: a aparência não contava grandemente. Na Royal Academy of Music a maioria dos seus colegas era jovem e pouco abonada, não se preocupando com coisas mundanas como roupas ou arranjar o cabelo.

Tentara cortar os espessos caracóis bem curtos, mas achara que ficava parecida com as ovelhas lanudas que pastavam em torno da sua casa em Westmoreland. E a verdade é que, muito de vez em quando, a elegância era passível de ser alcançada, caso o cabelo estivesse suficientemente longo para ser preso ao alto. Procurou na mala pela escova e atacou a desordem. Não alterava grandemente a sua aparência, mas pelo menos sentia que se esforçara.

Todos sabiam que na primeira noite não era necessário usar um vestido comprido… Portanto, vestiria… O quê? Apesar do diminuto camarote e do desalinho do cabelo, Perdita estava longe de ser uma estudante pobre, ou simplesmente pobre. A sua família era abastada e ela tinha os seus próprios rendimentos; podia comprar a roupa que quisesse, mas tinha dificuldade em encontrar peças já feitas que se adequassem à sua constituição alta e esguia, não gostando de perder tempo com modistas, como costumava dizer. O seu guarda-roupa era, portanto, uma estranha mistura de peças que lhe serviam, incluindo vários pares de calças de homem que achava bastante confortáveis e tinham o comprimento apropriado para as suas longas pernas. Na academia ninguém reparava nelas, mas agora, ao abrir a tampa da mala, interrogava-se se seriam adequadas para uma viagem marítima.

«Imagino que muitos dos passageiros sejam muitíssimo elegantes», disse para consigo. «Bem, terão de se contentar com a sua própria elegância. A minha aparência não poderá afectá-los». Pegou assim num vestido verde, um dos seus preferidos, deu-lhe uma sacudidela e abriu um estreito armário à procura de uma cruzeta.

Como que por magia, uma mulher de uniforme apareceu então à porta. Pequena e de expressão impertinente, olhou de forma reprovadora para a mala aberta da rapariga. Avançou depois pelo camarote adentro, levando Perdita a recuar até ficar encostada à bacia das mãos, segurando como um escudo o dito vestido verde.

– Eu arrumo-lhe a mala, menina. Sou a sua camareira. O meu nome é Merkin.

– Oh, obrigada. Mas eu posso perfeitamente fazê-lo.

Merkin não lhe prestou grande atenção.

– É melhor ir andando para a sala de jantar para dar o nome para a segunda sessão. Não se esqueça, não é a primeira. A primeira é para as criancinhas e para quem não se interessa pela vida social. As minhas passageiras optam sempre pela segunda sessão.

Tal era a força moral de Merkin que Perdita deu por si a deixar o camarote e a seguir as setas que conduziam ao convés G.

– Vai haver um exercício de salvamento meia hora após zarparmos, menina – gritou Merkin atrás dela. – O seu ponto de reunião é o vinte e três. E irá precisar do seu colete salva-vidas.

Exercício de salvamento? Colete salva-vidas? Aquela era a primeira viagem de Perdita e a rapariga estava desorientada. Mas não precisava de se preocupar, alguém lhe haveria de explicar tudo, dizer-lhe onde deveria estar e o que deveria fazer. As pessoas gostavam sempre de orientar os outros na direcção certa, sobretudo tratando-se de algo aparentemente tão institucional como um exercício de salvamento. Devia ser como as simulações de incêndio na academia – só que sem as descidas de escadas a meio da noite, normalmente à chuva, esperava ela.

Um cansaço súbito apoderou-se do seu corpo a fraqueza exasperou-a. Estava perfeitamente bem, todos tinham afirmado que estava completamente recuperada, precisando apenas de algum tempo para ganhar forças. Daí a viagem. Uma ida e volta à Índia, com um interregno de um mês em Deli em casa de amigos far-lhe-ia muitíssimo bem, assegurara-lhe o médico. Perdita não se mostrara interessada: não pretendia ir de viagem, nunca quisera ir à Índia, as pessoas em Deli eram amigas do seu avô e não dela, e não lhe agradava nada a ideia de ficar com um bando de estranhos naquele que sabia ser um país muito estranho.

Só que o avô entusiasmara-se tanto com a ideia… Ele próprio não andava nada bem de saúde e Perdita odiava desiludi-lo. Seria uma falta de educação, uma verdadeira indelicadeza, recusar a sua generosa oferta de bilhete e todas as despesas pagas.

E mais uma vez se interrogou se ele não estaria tão desejoso de a ver partir, não pela sua recente enfermidade, mas pelas crescentes perspectivas bélicas. Se a guerra rebentasse em breve, Perdita ficaria presa na Índia enquanto ela durasse. O que poderia perfeitamente agradar ao avô, mas não lhe agradava a ela. Que música havia para si na Índia? Além disso, se houvesse de facto guerra, queria estar no seu devido lugar, em Inglaterra, e não numa varanda distante, longe de todas as bombas e do terror. A última guerra durara quatro anos – e Perdita não conseguia imaginar-se longe de Westmoreland durante quatro anos.

Não, se o avô estivesse de facto preocupado com a sua segurança e a quisesse tirar de Inglaterra antes que a guerra começasse, tê-la-ia enviado para a América. Devia estar convencido de que a guerra que ele dava como certa só começaria dali a alguns meses.

Os seus amigos não se mostravam muito interessados em conversas sobre a guerra, mas os que falavam sobre o assunto defendiam que algo deveria ser feito em relação a Hitler e aos Nazis. Outros, cínicos recém-chegados da Áustria e da Alemanha, refugiados judeus com almas musicais que faziam os estudantes ingleses suspirar e perder as esperanças, afirmavam que a Grã-Bretanha e a França não lutariam pela Checoslováquia nem por qualquer outro país, e que tudo não passava de retórica. Hitler conseguira o que queria, conseguiria sempre o que queria, e lutar com a Inglaterra era a última coisa que pretendia.

A mente de Perdita regressou então ao presente e à sua música. A primeira coisa a fazer era encontrar um piano. Havia vários a bordo – fora algo em que ela insistira.

– Avô, não poderei ir se não puder praticar. Estou incrivelmente destreinada e passar mais semanas sem tocar será um verdadeiro desastre. Se puder trabalhar nas viagens de ida e volta, e se os seus amigos tiverem um piano, algo minimamente decente, poderei praticar enquanto estiver com eles.

Não eram os pianos objectos passíveis de serem comidos por formigas gigantes ou dados a empenar e desafinar irremediavelmente no calor húmido do inimaginável oriente?

Numa atenciosa carta fora-lhe assegurado que os amigos possuíam de facto um piano e de boa qualidade. Não estando possivelmente ainda comido pelos insectos. E o avô falara com o presidente da companhia de navegação, um velho conhecido seu, como seria de esperar, tendo-lhe sido garantido que a neta poderia praticar sempre que quisesse num dos vários salões existentes.

Perdita sabia bem o que era praticar e fazê-lo quando bem entendia, o que basicamente significava estar sozinha, sem ninguém presente. Pois bem, para ela era perfeito. Era por natureza madrugadora, facto esse que se intensificara de forma alarmante com a doença. Logo, se pudesse praticar algumas horas bem cedo, ninguém a incomodaria nem seria incomodado com uma hora ou duas de escalas e harpejos. E esquecendo por completo a sala de jantar, seguiu em busca de um piano.