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Ficha Técnica

Título original: THE CHOSEN ONE

Título: O Eleito

Autor: Sam Bourne

Traduzido do Inglês por: Ana Álvares

Capa: Ideias com Peso

ISBN: 9789892311838

Edições ASA II, S.A.

Uma editora do Grupo Leya

Rua Cidade de Córdova, n.º 2

2610-038 Alfragide – Portugal

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Fax. (+351) 21 427 22 01

© 2010, Jonathan Freedland

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Para a Fiona, minha irmã – e uma verdadeira heroína

PRÓLOGO

Nova Orleães, 21 de Março, 23h35

Não foi ele que a escolheu, mas ela a ele. Pelo menos foi o que pareceu. Embora, quem sabe, também isso fizesse parte dos seus atributos, do saber do artista.

Ele não demorara os olhos nela, não a fitara com aquele olhar que ele sabia desconcertar as raparigas. Ele não queria fazer ninguém sentir-se desconfortável. Por isso fingiu ser um daqueles tipos que estão de passagem, descontraídos e impassíveis. Em viagem de negócios, de visita a um bar de strip só para dizerem que provaram da verdadeira Nova Orleães – desinibindo-se e sentindo o gosto ao pecado. A cidade não se incomodava com estes indivíduos. Que diabo, Nova Orleães fazia deles modo de vida: turismo manhoso, com um embrulho bonito.

Portanto fez o que pôde para parecer desinteressado, chegando a baixar os olhos para o BlackBerry e apenas de vez em quando os passando pelo palco. Não que esta fosse a palavra certa. Grande de mais. A «área de actuação» era pouco mais do que um estrado comprido que se estendia por entre as mesas parcamente iluminadas, uns poucos metros quadrados que mal davam espaço para uma rapariga se desembaraçar da parte de cima do biquíni, abanar o silicone do peito, dobrar-se para mostrar o rabo de fio-dental e depois atirar uns quantos beijos aos homens que lhe tinham enfiado uma nota de vinte no cinto de ligas.

A excitação que estes sítios lhe provocavam já devia ter-se desvanecido há muito, mas mesmo assim não deixava de voltar: há anos que este lugar era um destino certo, todas as quartas-feiras à noite. Nem sequer era pelo sexo. Era do escuro que gostava, do anonimato. Tinha direito a um cumprimento e um sorriso de reconhecimento de trás do balcão, mas era tudo. Aqui os homens evitavam o contacto visual: se os olhares se cruzassem era do interesse comum desviá-los.

Ainda assim, não correu riscos. Não queria estranhos a reconhecê-lo, não com tudo o que acontecera. Não queria conversar. Precisava de pensar.

Tem calma, disse para si próprio. As coisas estão encaminhadas. Ele deitara o isco e eles tinham-no mordido. Que mal havia em ainda não terem dito nada? Devia dar tempo à coisa.

A dose âmbar de bourbon no fundo do copo era tentadora. Fitou-a, levou-a aos lábios e deitou-a abaixo de um valente trago. Queimava.

Voltou a olhar para o palco. Uma rapariga nova, que não tinha visto antes. O cabelo dela era mais comprido, a pele dela, vendo bem, não era tão regular e suave como a das outras. Os seios dela pareciam ser verdadeiros.

Ele continha-se para não lhe lançar o Olhar, mas era tarde de mais. Ela olhava directamente para ele. E também não era o olhar vazio e dopado das raparigas que se davam o nome de «Savannah» e «Mystery». Ela via-o, como se fosse transparente. Tê-lo-ia reconhecido, da televisão, talvez?

Voltou a brincar com o BlackBerry, escorregadio nas suas mãos húmidas. Debateu-se com o impulso de erguer os olhos, para logo lhe ceder alguns segundos depois. Quando o fez, ela ainda o tinha preso naquele olhar firme. Não era o olhar lascivo aprimorado pelas raparigas que sabem como fazer crer a um gajo careca e bêbado que ele é bom. Tratava-se de algo mais genuíno; caloroso, quase.

A intervenção dela terminara e ela desaparecera, tendo concluído com o obrigatório bambolear de traseiro. Até isso lhe parecia ter sido dirigido.

Para seu alívio, o aparelho vibrou-lhe na mão, forçando-o a ocupar-se de outra coisa. Uma mensagem nova. Passou os olhos pela primeira linha. Outro pedido dos média. Não aquilo por que aguardava. Examinou o resto do correio electrónico do dia, fingindo ler.

– Sabe o que se diz por aí: Nem só de pão…

– …vive um homem.

Ele interrompeu-a antes mesmo de ver o rosto dela. Ela pegara numa cadeira na mesa pequena e escura que ele se atribuíra. Apesar de nunca a ter ouvido falar, ele soube com a primeira sílaba que era ela.

– Você não parece um escravo do trabalho.

– E você não parece uma stripper.

– Ai não? Acha que não tenho o que é preciso para…

– Não foi isso que quis dizer. Queria dizer que…

Ela pôs a mão em cima da dele, para o silenciar. O calor que ele vira nos olhos dela no palco ainda estava lá. O seu cabelo, solto, dava-lhe pelos ombros. Não podia ter mais do que vinte e cinco anos – praticamente metade da idade dele – e ainda assim emanava uma estranha… era o quê? Maturidade. Ou qualquer coisa do género; algo que raramente se encontrava neste tipo de sítio. Ao lado dele, de mãos frias e húmidas a analisar o seu correio electrónico, ela era a personificação da calma. Fez sinal à empregada para lhes trazer de beber.

Então, com um sotaque que não era do Sul, talvez do Midwest, porventura da Califórnia:

– E que tipo de trabalho é que faz?

A pergunta fez-se acompanhar de uma agradável onda de alívio. Queria dizer que não o reconhecera. Sentiu os músculos das costas relaxarem.

– Sou uma espécie de consultor. Oriento…

– Sabe que mais – disse ela, com a mão ainda pousada na dele e os olhos procurando a porta. – Está muito abafado aqui. Vamos caminhar.

Sem dizer nada, ele deixou-se conduzir para a rua, para Clairborne Avenue, onde o trânsito continuava compacto apesar da hora tardia. Ele perguntava-se se ela conseguiria sentir, apenas pela mão que segurava, que a pulsação dele estava acelerada.

Por fim, viraram para uma rua lateral. Não estava iluminada. Ela andou mais uns metros, virando à esquerda num beco. Este dava para as traseiras de um bar, um dos poucos do sítio que sobrevivera ao Katrina. Ele notou que lá dentro havia uma festa, um brinde a ser transmitido por um altifalante abafado.

Ela parou e pôs-se de frente para ele, esticando-se na ponta dos pés para lhe sussurrar ao ouvido.

– Gosto cá fora.

Muito antes de ele absorver e compreender as palavras dela, já o seu sangue se precipitara para as suas virilhas. A sensação da voz dela, a respiração dela no seu ouvido, inundaram-no de desejo.

Ele encostou-a com força à parede, agarrando-lhe imediatamente na saia. Ela comprimiu a boca contra a dele, beijando-o com fervor. Os dentes dela morderam-lhe o lábio inferior.

A saia dela estava levantada e ele começou a desapertar o cinto. Ela afastou-se da boca dele, oferecendo-lhe antes o pescoço, ao qual a língua dele se atirou num ápice, absorvendo o odor dela pela primeira vez. Era familiar – e inebriante.

As mãos dela ignoraram o seu cinto desapertado e dirigiram-se para cima, em direcção ao seu rosto. Ela tocava-lhe, com dedos suaves, que desceram para o pescoço e de repente o apertaram.

– Gostas à bruta – murmurou ele.

– Ó sim – disse ela, com os dedos da mão direita agora firmes na traqueia dele.

Ele queria descer-lhe as cuecas, mas subitamente ela parecia estar mais afastada dele, já não sentia a pélvis dela junto à sua. Ele ouviu-se respirar com dificuldade.

Tentou tirar os dedos dela da sua garganta, mas não havia como os mover. Ela tinha uma força notável.

– Ei! Não consigo respirar – arquejou. Vislumbrou os olhos dela, duas contas brilhantes na noite. Calor, já não lhes via.

– Eu sei – disse ela, e a mão esquerda juntou-se à direita, abarcando-lhe a garganta.

Não houve alvoroço, somente um definhar lento às mãos dela, que lhe retiravam a vida até ao último sopro. Ele caiu silenciosamente; sons, se os houve, foram abafados pelo coro embriagado de Parabéns a você que saía do bar.

Ela compôs a saia, baixou-se para retirar o BlackBerry do bolso do casaco do homem e partiu, deixando um rasto de perfume atrás de si, na noite do Louisiana.

1

No dia anterior
Washington, D.C., segunda-feira, 20 de Março, 07h21

– Porra, porra, porra. Raios partam!

Primeiro pensara-o, mas agora dizia-o em voz alta, soltando as palavras nas rajadas de vento.

Maggie Costello girou o pulso para olhar novamente para o relógio, pela quinta vez em três minutos. Não havia como fugir. 7h21: chegaria atrasada. Mas não fazia mal. Tratava-se apenas de uma reunião privada com o maldito chefe de gabinete da Casa Branca.

Pedalou furiosamente, sentindo a tensão na barriga das pernas e a pressão do esforço nos pulmões. Ninguém lhe dissera que andar de bicicleta seria tão difícil. Os culpados eram os cigarros: estava em melhor forma quando fumava.

Isto é que era começar de novo… Emprego novo, dieta nova, dissera a si própria. Comida saudável; mais exercício; deixar os cigarros; o fim das noitadas. Se havia alguma vantagem em se ver subitamente descomprometida, era certamente poder agora começar cada manhã bem cedo e bem desperta. E não apenas um cedo normal de ser humano, que era seguramente o caso das 7h21 pelos padrões de Maggie. Não, começaria o dia como fazem em Washington, para uma reunião às sete e meia da manhã não ser como esbarrar em alguém a meio da noite. Para a nova Maggie, as sete e meia seriam uma altura como qualquer outra no meio do seu dia de trabalho.

Em todo o caso, tinha sido esse o plano. Talvez fosse por ter nascido e crescido em Dublin, tendo vindo para a América já adulta, que não conseguia adaptar-se. Fosse qual fosse a explicação, Maggie chegava rapidamente à conclusão de que estava dessincronizada por natureza de todos estes washingtonianos polidos e arranjadinhos, com os seus sapatos bem engraxados e disciplina imaculada, porque por mais que se esforçasse por adoptar o estilo de vida da cidade, levantar-se ao despontar da madrugada continuava a saber a castigo cruel e inusitado.

E assim, cá estava ela, novamente atrasada, a sibilar por Connecticut Avenue abaixo a uma velocidade letal, desejando que Dupont Circle lhe aparecesse à frente mas sabendo que, mesmo quando aparecesse, ainda faltariam pelo menos três a cinco minutos para a Casa Branca, e isso antes de prender a bicicleta, passar pela segurança pondo o saco e o BlackBerry no tapete rolante que alimentava a máquina gigante de raio-X, entrar disparada na casa de banho das senhoras, desfazer-se da T-shirt e das molas para prender as calças, passar água debaixo dos braços, se valer do secador de mãos para dar um jeito ao cabelo, se debater para enfiar o corpo ainda suado no malfadado uniforme regulamentar de Washington, que mal chegava a ser uma versão feminina do fato e camisa de homem – e de alguma forma transformar o seu aspecto de espantalho mal dormido em membro do Conselho Nacional de Segurança e reputada conselheira para os assuntos externos do Presidente dos Estados Unidos.

Eram 7h37 quando se apresentou, ofegante e ainda corada, diante de Patricia, secretária de Magnus Longley. Patricia estava com Longley há mais de quarenta anos, dizia-se: segundo constava, ele pescara-a do «ninho» das dactilógrafas no seu primeiríssimo dia de trabalho na sociedade de advogados do pai. Ambos estavam por lá desde sempre, ele um monumento na Washington permanente, ela o seu pedestal.

Tinha sido Patrícia a convocar Maggie para a reunião, com uma mensagem telefónica que a fizera acordar estremunhada às 6h29 da madrugada, o que não a impedira de passar pelas brasas por mais vinte e cinco minutos fatais.

– Ele está à sua espera – informou Patricia, espreitando por cima dos óculos, presos por um cordão à volta do pescoço, apenas o tempo necessário para lhe dirigir um olhar gravoso e reprovador, por conta do atraso, claro; mas por outras razões mais importantes também. Aquele lampejo gélido analisara o aspecto de Maggie dos pés à cabeça, tendo concluído que este deixava muito a desejar. Maggie olhou para baixo e reparou, algo horrorizada, que as suas calças, tão cuidadosamente passadas a ferro na noite anterior em preparação para o dia seguinte, mas enfiadas à pressa de manhã, estavam agora inadmissivelmente amarrotadas e marcadas nos tornozelos com uma linha de óleo de bicicleta. E ainda havia o seu cabelo, de um vermelho outonal, que, num gesto de rebelião, ela mantinha comprido e despenteado, numa cidade onde as mulheres tendiam a usá-lo curto e formal. A expressão de Patricia, mais eloquente do que quaisquer palavras, transmitia que jovem nenhuma que se prezasse iria trabalhar assim vestida no seu tempo. E sobretudo na Casa Branca!

Maggie passou mais uma vez a mão pelo cabelo, numa tentativa fútil de impor alguma ordem, e entrou.

Magnus Longley era um «resolve-tudo» veterano que, desde a era Carter, servira ou na Câmara, ou no Senado ou na Casa Branca. Era o ancião indispensável para contrabalançar – e aquietar quaisquer ansiedades a este propósito – a juventude do Presidente e a sua pouca experiência nos meandros de Washington. «Ele sabe dos podres todos», era o que todos diziam a seu respeito. «E sabe eliminar os que aparecerem.»

A sua cabeça magra e envelhecida estava abaixada quando ela entrou, absorto no exame de um monte de papéis cuidadosamente alinhados, de caneta na mão. Rabiscou um comentário na margem para depois erguer os olhos, revelando um rosto cujos traços permaneciam sempre regulares e imperturbáveis. Ele ainda tinha o cabelo todo, agora branco, penteado numa risca perfeita.

– Mr. Longley – interpelou Maggie, estendendo a mão. – Peço desculpa pelo atraso, fui…

– Então a menina é da opinião que o secretário da Defesa é um atrasado mental, é isso, Miss Costello?

Maggie, já sequiosa da corrida desenfreada de bicicleta, sentiu a garganta ficar seca. A sua mão, ainda esticada e ignorada, retirou-se, procurando trémula as costas da cadeira virada para a secretária de Longley.

– Devo repetir a minha pergunta? – A voz era grave e forte, surpreendente para um homem da sua idade, e o seu sotaque denotava dinheiro antigo e raízes em Park Avenue. Longley era um aristocrata de Nova Iorque; o seu pai fora compincha de F. D. Roosevelt. Falava como os americanos dos filmes da década de quarenta, com um sotaque a meio caminho do Atlântico em direcção a Inglaterra.

– Ouvi a pergunta. Mas não a compreendo. Nunca chamei…

– Não há tempo para jogos, Miss Costello. Não neste escritório, não neste edifício. E não há tempo para comportamentos infantis destes – palavra pontuada com um atirar sonoro dos dedos contra uma folha de papel.

Subitamente invadida pelo receio, Maggie tentou espreitar para o papel virado ao contrário. – O que é isso?

– É um e-mail que você escreveu a um dos seus colegas do Departamento de Estado.

Lentamente, uma memória começou a desenhar-se. Há duas noites ficara a trabalhar até tarde. Escrevera a Rob, da divisão da Ásia Central e Meridional do Departamento de Estado. Ele era um dos poucos rostos familiares do sítio; veterano, tal como ela, dos grupos de pressão, organizações humanitárias e, por fim, missões de paz da ONU em cantos do mundo horríveis e esquecidos.

– Devo passar a ler o parágrafo em questão, para ficarmos esclarecidos?

Maggie assentiu com a cabeça, e a recordação tornava-se cada vez menos difusa.

Longley aclarou a voz, com dramatismo. – Info sobre o AfPak sugere colaboração estreita com Islamabad, et cetera, et cetera, o que parece escapar completamente aos atrasados mentais do Pentágono…

Ela teve uma vaga suspeita do que se seguiria…

…especialmente do atrasado-mor, o Dr. Anthony Atrasado em pessoa. O homem repôs o papel na secretária e ergueu a cabeça, com um olhar glacial.

Agora ela lembrava-se de tudo. Maggie sentiu o coração cair-lhe aos pés.

– Como pode imaginar, o secretário da Defesa não está muito satisfeito com o facto de ter sido descrito nestes termos por uma funcionária da Casa Branca.

– Mas como raio é que…

– Porque… – Magnus Longley inclinou-se para a frente sobre a secretária, o que permitiu a Maggie ver os primeiros sinais de lentigos nas suas bochechas. – Porque, Miss Costello, o seu amigo do Departamento não é o crânio que você evidentemente pensa que ele é. Ele reencaminhou a sua proposta relativamente à cooperação com o Paquistão para colegas no Pentágono. Mas esqueceu-se de usar o botão mais importante destas malditas máquinas. – Longley esboçou um gesto na direcção do seu computador, cujo ecrã, Maggie notou, estava escuro e muito provavelmente coberto por uma camada de pó. – A tecla delete.

– Não. – A resposta horrorizada saiu-lhe num sussurro.

– Ó sim. A sequência toda. – Estendeu-lhe as impressões.

Ela olhou-as de relance, atentando na lista de altos funcionários do Pentágono que figuravam como destinatários de cópia da mensagem de correio electrónico – incluindo os conselheiros do secretário da Defesa, escolhidos a dedo e ultraleais – e sentiu o sangue sumir-lhe do rosto. Voltou a cravar os olhos no papel, desejando que não fosse verdade. No entanto, lá estava, preto no branco: atrasado mental. Como era possível que o Rob tivesse cometido um erro tão básico? E ela, como era possível?

– Tem algum argumento em sua defesa que queira apresentar?

– Tem a certeza de que ele sabe? – perguntou Maggie, a medo.

Ele esboçou o primeiro movimento de um sorriso escarnecedor.

– Talvez os assessores dele não lho tenham passado, talvez não lhe tenha chegado. – Ela conseguia ouvir o desespero na sua própria voz.

Longley ergueu as sobrancelhas, como que a perguntar se ela queria realmente prosseguir com esta linha de argumentação. – Foi ele que trouxe o assunto à baila. Pessoalmente, hoje de manhã. Quer vê-la fora daqui imediatamente.

– É apenas uma palavra num e-mail. Valha-me Deus…

– Não me fale nesse tom, menina.

– Não passa de conversa de escritório. É apenas um comentário…

– Miss Costello ao menos lê jornais? Ou quem sabe seja mais leitora de blogues? – Disse a palavra como se tivesse acabado de sentir o cheiro a um pano da cozinha nauseabundo. – Twitter, talvez?

Maggie decidiu que isto fazia parte do número de Longley, a dar uma de velha guarda: ele não podia ser tão antiquado como gostava de fazer crer, não quando estava no topo em Washington há tanto tempo. Recordou-se da entrevista na secção Style do Washigton Post, na qual Longley alegava que a última vez que entrara num cinema teria sido para ver a Deborah Kerr e o Burt Lancaster em Até à Eternidade. «Perdi muito desde então?», perguntara languidamente.

Agora estava recostado na cadeira, relaxado. – Porque talvez possa ter ouvido por aí que o nosso secretário da Defesa não é… Como dizê-lo? Um dos mais óbvios entusiastas do Presidente.

– Claro que sei disso. Adams disputou com ele a nomeação.

– Você está actualizada. Sim. Talvez até volte a ser seu rival.

– Concorrência nas primárias?

– Não é inconcebível. A equipa que o Presidente reuniu tem a admirável designação de «equipa de rivais». Contudo, no dizer de Lincoln, pode tratar-se de uma equipa, mas não deixam de ser rivais.

– Então ele…

– Então ele não vai deixar isto passar. O Dr. Adams quer dar provas de força, mostrar que o seu alcance não se restringe ao Pentágono.

– O que significa que ele me quer fora.

O chefe de gabinete ergueu-se. Maggie não estava certa se o rangido que ouvira seria da cadeira ou dos joelhos de Longley.

– É este o ponto em que estamos. A decisão final não é do Dr. Adams, claro. Reside neste edifício.

Que porra quereria aquilo dizer? Este edifício. Que seria ele a decidir – ou que a questão de Maggie conservar ou não o emprego seria resolvida pelo próprio Presidente?

Longley endireitara as espáduas, para tecer as considerações finais. – Miss Costello, temo que tenha esquecido a Primeira Regra de Longley para a Política. Nesta cidade, não escreva sequer um bilhete para o homem do leite que não se importe de ver publicado na primeira página do Washington Post. Acima da dobra.

– Pensa que o Adams deixaria passar a informação.

– Você não? Reanimar histórias do despique Baker-Adams, colocando-se implicitamente ao mesmo nível do Presidente? Não, obrigado. Ele está aqui para trabalhar connosco e não contra nós.

– O Presidente sabe disto?

– Parece ter-se esquecido de que Stephen Baker é Presidente dos Estados Unidos da América. Não é gestor de recursos humanos. – A boca dele pareceu retrair-se à menção da expressão, como se proferir um termo tão absurdo, tão modernaço, lhe maculasse os lábios. – Não pretendo ser desagradável, Miss Costello. Mas são centenas as pessoas que trabalham para o Presidente. Você não está numa categoria na qual o seu emprego constitua preocupação para ele. A não ser que tenha uma razão para pensar o contrário e, nesse caso, talvez tenha a bondade de ma revelar.

Significava então que a decisão final pertencia a Longley. Era o seu fim. As mãos de Maggie cerraram-se em dois punhos fechados ao sentir dois instintos degladiarem-se dentro de si: lutar e fugir. Queria certamente bater neste idiota hipócrita, que parecia divertir-se excessivamente com a situação; ao mesmo tempo queria correr para casa e atirar-se para baixo do edredão. Fazendo o que podia para se controlar, mordeu o lábio inferior, com tanta força que sentiu o sabor metálico do sangue.

Longley olhou com naturalidade para o relógio, um Patek Philippe vintage, elegante, despretensioso; assumidamente analógico. – Tenho uma pessoa à minha espera, Miss Costello. Falaremos brevemente, sem dúvida. – Chegara a hora de ela se retirar.

Ao sair, Maggie passou por Patricia e reparou que ela nem sequer ergueu os olhos, muito menos procurou estabelecer contacto visual. Um gesto de discrição, sem dúvida aprendido durante os longos anos de serviço a Magnus Longley, que, ao longo do tempo, provavelmente já despedira pessoas suficientes para encher o estádio Robert F. Kennedy.

Teve de esperar até estar na gaiola que lhe servia de escritório, um oitavo da área do do chefe de gabinete, para sequer respirar devidamente.

Uma vez segura de que a porta estava fechada, fez uso do antebraço para varrer tudo – duas pilhas periclitantes de documentos confidenciais, revistas, sacos de papel do pronto-a-comer, canetas mordiscadas e outros detritos variados – da secretária para o chão. O gesto fê-la sentir-se bem durante aproximadamente três quintos de segundo. Deixou-se cair na cadeira.

Seria esta a história deste ano, ter uma oportunidade mágica nas mãos para simplesmente dar cabo dela à grande e à francesa? Esqueçam o ano, seria esta a história da vida dela? E tudo por conta de um momento sumamente estúpido de honestidade desbragada. Não que Adams não fosse um atrasado mental: era-o, de Primeira Água. Mas ela tinha sido de uma ingenuidade absurda em pôr isso num e-mail. Que idade tinha ela? Quase quarenta, valha-nos Deus. Quando aprenderia? Para uma mulher que tinha feito nome como diplomata hábil, com negociações de paz a seu cargo, por amor de Deus – com toda a sensibilidade, discrição e firmeza requeridos – era realmente uma idiota. Eejit, quase conseguia ouvir a Liz, sua irmã, a implicar com ela num irlandês brejeiro.

Não é que ela não tivesse tido oportunidade. Quando regressara de Jerusalém – aclamada como a mulher que finalmente conseguira um avanço decisivo no processo de paz do Médio Oriente –, ela podia, todos lho diziam, escolher a sua próxima paragem. Fora atolada de ofertas de trabalho, já que todos os think tanks e universidades queriam ter o nome dela no seu papel timbrado. Podia dar aulas de relações internacionais em Harvard ou escrever editoriais na Foreign Affairs. Chegou mesmo a sussurrar-se na ABC News que, com a formação certa – e um guarda-roupa adequado – ela poderia ter os ingredientes necessários para ser um «talento» televisivo. Um executivo enviara-lhe um bilhete manuscrito: Acredito verdadeiramente que você é a mulher certa para trazer sensualidade às relações internacionais.

Mas não foi nada disto que tornou o seu regresso aos Estados Unidos, quase três anos antes, tão excitante. Foi que, para sua grande surpresa, as coisas tinham mesmo funcionado com Uri. Ela perguntara-se se a relação revelaria ser algo mais do que um romance de férias em estado de graça: afinal, eles tinham-se aproximado durante a mais estranha e mais intensa das semanas, em Jerusalém, e ele, desnorteado com a dor da morte de ambos os pais no espaço de poucos dias, mal conseguia pensar devidamente. Ela aprendera há muito a suspeitar de relações nascidas sob o signo da estrada, especialmente aquelas a que a presença constante do perigo e a proximidade da morte conferiam encantamento e significado. O amor entre bombas, delicioso na altura, raramente durava.

E, contudo, quando Uri a convidara para dividir com ele o seu apartamento de Nova Iorque ela não recusara. É certo que ela não conseguia propriamente assinar preto no branco onde se lia «em coabitação»: continuava com o apartamento dela em Washington, tendo planeado dividir o seu tempo entre os dois sítios. Mas, no fim de contas, tanto ela como Uri simplesmente concluíram que queriam passar a maior parte das noites na mesma cidade – e na mesma cama.

Não parecera haver razão nenhuma para algum dia terminar. Mas, por qualquer razão, poucas semanas antes, ela dera por si sentada nos degraus do Monumento a Lincoln, contemplando uma Washington reluzente – escovada de fresco e pronta para a investidura de um novo Presidente – com Uri a seu lado, de voz hesitante, a dizer-lhe que não havia mais caminho à frente dos dois. Que ele ainda a amava, mas que já não estava a resultar. Ela tinha feito a sua escolha, dissera ele. Ela votara de corpo inteiro, decidindo que a presença no trabalho levava a melhor sobre tudo o resto. «Acontece que, Maggie, te importas mais com o Stephen Baker do que te importas comigo. Ou connosco.»

E, mesmo com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, ela não tinha conseguido rebatê-lo. Que poderia dizer? Ele tinha razão: ela dedicara o último ano não a construir uma vida com ele, mas a ajudar Stephen Baker a tornar-se no homem mais poderoso do mundo. Ter conquistado a presidência – contra todas as expectativas – soube quase a um milagre. Ela deixara-se arrebatar de tal forma pela euforia deste triunfo que se esquecera de prestar atenção à sua própria vida. No fundo, pensara que, quando as coisas regressassem ao normal, se concentraria em fazer com que a sua relação com Uri resultasse; ela emendaria as coisas. Mas, subitamente, era tarde de mais: ele tomara a sua decisão e não houvera nada que ela pudesse dizer.

Por isso aqui estava ela, de novo, com outra relação oficialmente arruinada e na iminência de perder o próprio emprego que a sabotara. Era a história da vida dela. Dêem a Maggie Costello uma oportunidade de ser feliz ou de ter sucesso que ela dá cabo de ambas. Apetecia-lhe berrar muito alto, expelir toda a frustração e sofrimento: mas até no seu desespero sabia que não o faria. Washington era a cidade dos «engravatados». Não se querem cá manifestações exteriores de emoção. Era uma das razões por que ela começava a detestá-la, das profundezas da sua alma irlandesa. Por isso o que fez foi afundar a cabeça nas mãos e murmurar para si própria, uma vez e outra: Idiota, idiota, idiota.

O surto de culpabilização foi interrompido por algo a vibrar-lhe algures perto da coxa. Sacou do telemóvel. Onde devia ver-se o número figurava apenas: Confidencial.

Uma voz que ela não reconheceu falou sem a cumprimentar. – Maggie Costello?

– Sim.

– Por favor venha imediatamente à Residência. Ele quer falar-lhe.

Maggie retorquiu, confusa: – Quem quer falar-me?

– O Presidente.