Cover

Ficha Técnica

Título original: NIGHT & DAY

Título: Uma Mansão na Bruma

Autor: Elizabeth Edmondson

Capa: Maria Manuel Lacerda

ISBN: 9789892311883

Edições ASA

é uma chancela do Grupo LeYa

R. Cidade de Córdova, n.º 2

2160-038 Alfragide – Portugal

Tel.: (+351) 214 272 200

Fax: (+351) 214 272 201

© 2010, A.E. Books, Ltd.

Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor

www.asa.leya.com

www.leya.pt







Choro pela sorte da casa, pelo seu declínio da orgulhosa disciplina do passado. Agora por uma mensagem que brilha na escuridão, o fogo trazendo esperança, algum alívio das nossas mágoas…

Ei-lo – o sinal! As trevas iluminam-se, a noite transforma-se em dia – haverá folia e danças nas ruas para celebrar este golpe da fortuna.

Ésquilo, Agamémnon 18-24





Noite e dia não há ninguém como tu

apenas tu sob a lua ou sob o sol

Cole Porter

Cornualha, Maio de 1934

Sombras compridas projectavam-se sobre os relvados imaculados de Landrake House e o grito arrepiante de um dos pavões quebrou o silêncio da tarde.

Fitz Falconer encontrava-se na biblioteca no primeiro andar quando chegou a chamada transatlântica de Nova Iorque. Era uma sala elegante e serena, cujas estantes estavam separadas por bustos clássicos sobre colunas e duas grandes mesas de carvalho, uma das quais estava agora coberta com a máquina de escrever de Fitz, livros e papéis; tomava sempre conta da biblioteca durante as suas frequentes visitas a Landrake House. A irmã, que morrera há mais de doze anos, fora casada com Lord Landrake, e apesar de Fitz ser vinte anos mais novo do que Jerry Landrake, dava-se extremamente bem com o cunhado.

Quando os três minutos chegaram ao fim, ouviu o leve estalido do auscultador da extensão a ser pousado. A secretária de Lord Landrake, Mrs. Harbinger, havia estado à escuta, como sempre, maldita mulher. Nesse caso, o melhor seria dar rapidamente a notícia às raparigas antes que ela o fizesse.

Dirigiu-se à janela e contemplou a magnífica paisagem que nunca cessava de o encantar, captando o fragrante perfume das enormes flores de magnólia na árvore que subia em espaldeira pela parede por baixo das janelas da biblioteca. Depois de um dia agradável, o ar primaveril ainda estava ameno.

A sobrinha mais velha, Philippa Landrake, estava a atravessar o relvado, usando um vestido de ténis branco e com uma raqueta na mão. Estava a olhar para trás e a rir-se para o companheiro, um jovem com ombros de atleta.

– Philippa – Fitz chamou por ela. – Preciso de te dar uma palavrinha.

Ela levantou os olhos para ele, fazendo uma careta. – Agora? Tem de ser? Dá-me meia hora para tomar banho e mudar de roupa, estou cheia de calor.

– Agora. O teu pai ligou da América.

– Santo Deus, telefonou mesmo? Isso custa uma fortuna; o que é que se passa?

O jovem olhou de relance para Fitz e de novo para Philippa. Tirou-lhe a raqueta e enfiou-a no respectivo bastidor de madeira antes de lha devolver. – Vou andando. Porque é que não vens jogar outra partida em Bosworth amanhã?

– Talvez – disse Philippa, despedindo-se dele com um sorriso encantador.

Tinha o ar de uma jovem Diana ao subir num leve passo de corrida os degraus do terraço em baixo, baloiçando a raqueta. Dois minutos depois, estava à porta da biblioteca, ligeiramente curiosa, mas com a autocontenção que era parte essencial da sua natureza.

– O que queria o meu pai?

– Bem, foi uma surpresa, por sinal. Não vais gostar. Casou-se.

Calma era o epíteto que os amigos de Philippa mais usavam para a descrever. Os inimigos e as irmãs preferiam o termo fria. E os seus olhos eram gélidos quando fitou Fitz com incredulidade.

– Casou-se? Valha-me Deus, que imbecil! Diz lá, desembucha, com quem se casou? Não foi alguém da nossa classe, já percebi pela tua cara. Não me digas que perdeu o juízo e foi apanhado por uma empregada de mesa ou uma corista. E americana… poupa-me.

– Não é tão mau como isso. É inglesa. Uma actriz, e bastante famosa, por sinal. Já deves ter ouvido falar dela, Rosina Otway.

Os olhos azuis pestanejaram. – Rosina Otway? Já a vi, montes de vezes. É atraente, mas não é nova. Tem má fama, claro, montes de amantes. A que propósito é que o meu pai se foi casar com ela, porque é que não se limitou a pôr-se na fila para a cama dela?

– Chega de grosseria, Philippa – disse uma voz à entrada.

Era apenas uma questão de tempo até Mrs. Harbinger resolver aparecer. Prima dos Landrake, viera para Landrake House como secretária e dama de companhia da Viúva, e estava ali há tanto tempo que parecia fazer parte da mobília. Conhecia a casa como as palmas das suas mãos e sabia a maior parte dos segredos da família. Estava furiosa, era evidente pelas duas manchas brilhantes nas suas maçãs do rosto ossudas. – Não há necessidade de falares do teu pai nem da nova baronesa com desrespeito.

– Não me dês sermões, Harby, não estou com disposição. E porque não hei-de falar quando toda a gente vai fazer o mesmo? Deus do Céu, vai ser o bombo da festa.

– Em Landrake House não vai.

– O condado vai odiá-la.

Fitz abanou a cabeça. – Duvido, e desde quando é que o teu pai liga à opinião do condado?

Os pensamentos de Philippa haviam tomado outro rumo. – E o Esmond? Que idade tem esta maldita mulher?

– Trinta e nove – disse Mrs. Harbinger –, mas é melhor não levar isso a sério. Todas as actrizes com mais de quarenta anos têm trinta e nove durante muitos anos.

– Se tem trinta e nove anos, ou por aí, ainda é suficientemente nova para ter um filho e, se for um rapaz, lá se foi o Esmond.

– Tem uma filha adulta – informou-os Mrs. Harbinger. – A Jen lê essas revistas sobre estrelas de cinema e actrizes e disse-nos o que sabe. Essa rapariga espanta-me, nunca se lembra de onde deixou o pano do pó, mas não se esquece de nenhum pormenor trivial sobre actores ou actrizes. A filha tem vinte e seis ou vinte e sete anos, diz ela. Chama-se Cleo e trabalha na casa de alta-costura Joulbert, é tudo o que ela sabe.

– Manequim, suponho – disse Philippa, num tom de repulsa. – Seja como for, se a nossa nova madrasta é assim tão velha, talvez o Esmond esteja safo. Tenho de ir contar às outras. Suponho que todos os criados da casa já estão a par, não estão, Harby? É melhor antecipar-me. Que mais disse o meu pai, tio Fitz?

– Não muito. Embarcam hoje, chegam no fim-de-semana, manda-lhes abraços.

Philippa sabia onde estariam os outros e subiu rapidamente o primeiro lanço da escadaria principal até ao patamar e depois mais dois lanços. A Galeria Longa, uma das glórias da casa, corria a todo o comprimento do edifício no último andar. Janelas de pinázios, montadas em parapeitos pouco fundos, deixavam entrar raios do sol poente, iluminando os retratos escuros pendurados ao longo da parede interior.

A geração mais nova de Landrake há muito que reclamara a galeria como o seu feudo privado. Chamavam-lhe A Pista, mercê da sua extensão longa e estreita e soalho de madeira polida, perfeita para o bowling em dias de chuva. Possuía alguma mobília confortável, antigos sofás dos andares de baixo, poltronas em redor de uma das lareiras de pedra, que estava vazia num dia quente como o de hoje, e uma secretária, domínio particular de Tissy, que passava grande parte do seu tempo a escrever nela.

Ao fundo da sala, havia um piano de meia cauda e um homem de cabelo escuro, com cerca de trinta anos, estava sentado a tocar uma canção de Cole Porter que fazia furor naquele ano. Uma rapariga mais nova estava sentada de pernas cruzadas por baixo do piano, com os dedos nos ouvidos, totalmente absorta num livro.

Night and day, you are the one1 – cantava Esmond Landrake quando Philippa entrou. – O que é que se passa, Philippa? Estás com ar de quem foi atacada por algum bicho horrível.

– E fui. O pai ligou de Nova Iorque. Casou-se.

Fez-se um silêncio súbito. Tissy pousou a caneta e afastou o cabelo da testa. Matty saiu de baixo do piano e fitou a irmã mais velha com uns olhos de um azul ainda mais radioso do que os de Philippa.

As três irmãs eram extraordinariamente louras, desde as madeixas brilhantes de prata dourada de Philippa às ondas cor de cinza de Tissy e às tranças louras com reflexos avermelhados de Matty. Tissy era uma pálida imitação da beleza radiosa da irmã, os lábios exibindo um beicinho amuado que pouco favorecia a sua figura. Matty possuía o aspecto rechonchudo dos seus treze anos, mas talvez um dia viesse a exceder Philippa em beleza. Foi a primeira a falar.

– Estúpido. Para que é que foi fazer isso?

– Sexo – disse Tissy, desenhando uma margarida muito elaborada à margem das linhas de caligrafia perfeita. – Típico dos homens da idade dele.

– Que mal é que tem ter uma amante? Porque é que precisa de se casar?

Esmond levantou-se do piano. – Devias ter vergonha, Matty, com a tua idade.

Ela lançou-lhe um olhar de desdém. – Eu conheço os factos da vida, obrigada.

– Uma madrasta – disse Tissy, horrorizada. – Que pavor!

– Pode saber-se com quem casou ele? – disse Esmond baixinho. – E é… hum… nova?

– Casou-se com uma actriz, Rosina Otway.

Esmond soltou um assobio grave. – Não parece nada dele.

– Ela não é nova – disse Tissy. – Que diabo é que ele viu nela?

– É encantadora – disse Esmond. – E, pelo que ouvi dizer, tem montes de charme.

– É uma mulher fácil – disse Matty, que lia todas as revistas de Jen quando a criada acabava de as ler. – Sempre teve amigos íntimos e companheiros constantes e toda a gente sabe o que isso quer dizer. Acho que não quero uma mulher assim para madrasta, muito obrigada.

– Pois, mas pelos vistos tens – disse Philippa. – Mas as actrizes divorciam-se por dá cá aquela palha. Pode ser que não dure muito tempo. Ah, e não só perdemos um pai e ganhamos uma madrasta, como, sorte a nossa, ficamos também com uma irmã por afinidade. E adulta, devo acrescentar.

– Nesse caso, talvez nunca tenhamos de estar com ela – disse Tissy.

Pararam de falar quando ouviram o toque-toque familiar dos saltos de Mrs. Harbinger nas escadas. – A Harby pode dizer-nos mais – disse Matty. – Há-de ter escutado a conversa telefónica. Desembucha – continuou quando Mrs. Harbinger entrou na sala, a sua figura magra e hirta a transbordar de notícias e reprovação.

– Por sinal, ouvi quase tudo o que Sua Senhoria tinha a dizer. E uma coisa que Mr. Fitz não te disse, Philippa, foi que a nova senhora convidou a filha para vir a Landrake. Para conhecer o padrasto. E as irmãs por afinidade.

Um longo silêncio, desta vez quebrado pela voz sardónica de Tissy. – Que felicidade!

1 Noite e dia, não há ninguém como tu. (N. da T.)

22 de Junho de 1934
SEXTA-FEIRA À TARDE

1

–Asua mãe casou-se com um homem muito rico, Miss Otway. A resposta de Cleo foi imediata: – O seu cunhado casou-se com uma mulher muito bela e talentosa, Mr. Falconer.

Fitz demorara muito tempo a responder à pergunta de Cleo.

– Lord Landrake é dono disto tudo? – perguntara ela num tom indiferente, como se ainda não tivesse adivinhado a resposta.

Ele continuara a conduzir sem responder, pela sinuosa rua principal de Trewithiel, passando por casas rurais de cores vivas com portas de entrada que abriam sobre passeios elevados de cada lado da rua; passando por uma antiga estalagem que exibia um letreiro vistoso com um timbre e o nome brasonado, The Landrake Arms, e por uma loja de aldeia, cujo comerciante, de avental castanho comprido, ficou a olhar para o Lagonda descapotável.

Ele travara então, com bastante força, e desligara o motor, virando-se para olhar directamente para ela e, depois de tudo aquilo, não respondera à sua pergunta.

No silêncio que se seguiu às suas rápidas palavras, Cleo contemplou a paisagem rural da Cornualha que se alongava à distância, num mosaico de campos curvos, sebes e bosques. Um rio serpenteava através de um prado onde gado castanho pastava tranquilamente ao sol da tarde. O grito arrepiante de um maçarico-real ecoou através da água calma, e junto da ponte em arco o rio gorgolejava sobre pedras e seixos. Uma garça, empoleirada num pedregulho junto à água, levantou voo, levando um rebanho de ovelhas surpreendidas a levantar as cabeças, por um momento, da erva.

– Tudo isto? – perguntou ela novamente.

– O Jerry Landrake é praticamente dono de tudo quanto vê: terra, bosques, vacas, ovelhas e todas as casas da aldeia, incluindo a loja. E da estalagem, conhecida dos locais como o Duck and Dragon2.

– Porquê?

– O brasão de Landrake inclui um pato, que é um trocadilho com a palavra drake3, e um dragão. Vem da palavra latina draco, que significa dragão. Também significa serpente e verme, mas os Landrake ignoram isso. Vai ter oportunidade de ver melhor o brasão da família quando chegar à casa.

– Suponho que também é dono das aves.

– Se se refere às garças, aos maçaricos-reais e a esses melros barulhentos que não se calam, não. Esses são, como bem sabe, criaturas selvagens que não devem lealdade a nenhum senhor temporal. Se vir um faisão ou um lagópode-branco a passar, isso é diferente; pode assumir que esses pertencem ao Landrake, desde os bicos às penas das caudas.

– Os aldeãos também, de corpo e alma?

– A servidão acabou há muito tempo, mais ou menos quando o direito de captura saiu de moda.

– Direito de captura?

– Crimes cometidos dentro e fora da propriedade do senhor, parte da pitoresca vida da aldeia feudal.

Um caminho bifurcava da estrada estreita e levava a uma igreja, um edifício antigo com um campanário baixo e quadrado, de ameias, e uma porta magnífica. Erguia-se sólida e segura na paisagem, como decerto acontecia havia séculos.

– Dá ideia que um dos seus aldeãos foi desta para melhor, e está liberto de quaisquer laços feudais que ainda possam existir – disse Cleo, ao contemplar aquela cena suspensa no tempo, uma espécie de imagem de um livro de horas moderno. De um lado da velha igreja, num cemitério repleto de teixos e velhas lápides, estava a decorrer um funeral. Havia um pequeno grupo de pessoas reunido em redor de uma campa, terra castanha amontoada sobre a erva verde. Um clérigo de sobrepeliz branca que esvoaçava levemente ao vento estava a ler um grande livro de orações. Algumas palavras da cerimónia fúnebre flutuavam na direcção deles.

Pois nenhum de nós vive para si próprio,

e nenhum homem morre para si próprio.

Fitz Falconer saiu do carro. – Fique aqui, não demoro nada – gritou-lhe ao precipitar-se colina abaixo em direcção ao cemitério.

Deixada no banco do passageiro, Cleo observou-o a aproximar-se dos enlutados, tirando o chapéu quando chegou ao túmulo. Disse qualquer coisa ao homem mais próximo do clérigo, um senhor de cabelo grisalho e ar distinto, de vestuário formal, com uma cartola na mão.

Aquilo estava demorado. Cleo abriu a porta do carro e saiu, satisfeita por poder esticar as pernas depois da longa viagem. Inalou aquele ar estonteante, repleto dos odores do Verão, do mar e do campo.

O que estava a fazer ali? Era como uma extraterrestre que tivesse acabado de chegar de Marte. Ou melhor, como uma criatura terrena que tivesse acordado em Marte. Não tinha pontos de referência, não pertencia ao lugar, estava noutro país. Maldita mãe, pensou com súbita raiva. Maldita Rosina por tê-la metido nisto. Uns quinze dias antes, ainda o telegrama não chegara, tencionava tanto visitar a Cornualha como fazer uma viagem à Mongólia. Para ela, a Cornualha era um condado distante, onde as gentes da terra extraíam estanho e os londrinos iam passar férias. Os entusiastas falavam efusivamente dos seus encantos; se Cleo desejasse luz brilhante e litorais gloriosos, teria ido para o continente e não para esta ponta remota de Inglaterra.

Cleo escutou os sons rurais pouco familiares. O chilrear de pássaros, o ronco de um tractor distante, um chapinhar suave no rio quando um peixe subiu à superfície. Bem, não tencionava ficar ali sentada à espera de Mr. Falconer, que não dava, entretanto, sinais de voltar. Após um momento de hesitação, meteu pelo caminho que levava, através de um portão de cemitério, à porta oeste da igreja.

A entrada encontrava-se sob sete arcos de pedra, todos eles intricadamente esculpidos. Alguns exibiam desenhos torcidos de grãos de cevada, outros ostentavam imagens animadas de folhas e gavinhas onde animais estranhos se contorciam e fitavam Cleo. No centro do último arco estava um rosto de cuja cabeça, olhos e boca saíam, em espirais, folhas esculpidas. Era um rosto intemporal, fixando com olhos inexpressivos um espaço para lá da visão de Cleo.

Cleo era londrina, nascida e educada nas luzes da cidade. Para ela, o campo significava a ruralidade comedida do Surrey, a uma mera meia hora de distância de comboio e não a sete horas de carro até à Cornualha. Nada do que vira no Surrey podia tê-la preparado para a beleza selvagem e verdejante desta estranha região de Inglaterra do outro lado do rio Tamar. O rosto assustava-a e começou a empurrar abruptamente a pesada porta de madeira em arco.

Saiu da luz radiosa do sol e penetrou na obscuridade do interior da igreja. Os seus sentidos foram assaltados por diversos odores: cera e pedra e livros empoeirados e, sobretudo, a fragrância de flores. A igreja estava repleta de flores. Cleo ficou espantada, pois não vira flores na campa lá fora e, por qualquer razão, estas flores, na sua profusão de cheiros e cores, não eram, de forma alguma, flores fúnebres. Flores nupciais, disse para consigo. Os seus olhos acostumaram-se à obscuridade e ela avançou. Não estava sozinha na igreja, ouvia vozes ao fundo. Duas mulheres estavam a fazer arranjos de flores. Uma delas, de cabelo castanho ondulado e usando um simples vestido de algodão estampado, estava a cortar caules de lírios com uma tesoura de poda. A outra, uma mulher mais velha com um saia-casaco informe em tweed e umas lunetas presas a um nariz extraordinário, grande e demasiado protuberante para um rosto magro e severo, estava a recuar sobre sapatos firmes de tacão alto, a cabeça inclinada de lado.

– Precisamos de mais alguns lírios do lado do dec4 – disse ela em voz alta, um tanto enigmática.

Cleo enfiou-se nas sombras, ao fundo da igreja, relutante em sair mas não querendo ser vista. A porta rangeu de novo e duas figuras mais pequenas entraram na igreja. Eram raparigas de cerca de doze ou treze anos, uma claramente a filha da mulher de cabelo castanho, a outra uma rapariga anafada com tranças louras bem repuxadas que revelavam um rosto descontente.

A mulher de cabelo castanho levantou a mão e perscrutou o fundo da igreja, fazendo então sinal às raparigas. Estas caminharam rapidamente pela coxia central para irem ter com as duas mulheres diante do altar. Em seguida, desapareceram as quatro por um lado, as suas vozes desvanecendo-se quando a porta se fechou atrás delas. Sozinha na igreja, Cleo esperou um momento e depois começou a encaminhar-se lentamente pela coxia do lado esquerdo, que era dominada por um enorme monumento.

Cleo não era pessoa de frequentar igrejas. Em criança, andava na catequese, na igreja vizinha de St. Lawrence, um edifício vitoriano feio construído em tijolo vermelho, que não cheirava a idade nem a incenso, mas sim às panelas de caldo que as mulheres da paróquia preparavam, algures nas profundezas da igreja, fazendo sopa para os pobres da paróquia.

Esta pequena e antiga igreja rural não podia ser mais diferente da arrogância do século XIX de St. Lawrence. Esta possuía um telhado de madeira, estrelas pintadas quase invisíveis e arcos normandos em lugar de arcos altos góticos do século XIX, e as janelas desta igreja eram pequenas e transparentes, em contraste com os vistosos vitrais da igreja de St. Lawrence.

Haviam sido colocadas flores ao longo dos estreitos rebordos de pedra que corriam por baixo das janelas, rosas brancas e cor-de-rosa, lírios e, entrelaçados ao longo dos peitoris de pedra das janelas, ramos de madressilva rosa e amarela, quase opressiva graças à potência da sua fragrância.

Sob as janelas havia placas comemorativas planas, de mármore, que celebravam a vida e a morte dos paroquianos. Um nome chamou a atenção de Cleo: Virginia Landrake, e, por baixo dele, as datas 1909-1915 e algumas palavras, encobertas por uma profusão de rosas. Cleo estendeu uma mão. As rosas estavam pejadas de espinhos mas, se conseguisse afastar as flores, podia ver melhor a placa. A igre­ja pareceu mergulhar ainda mais na escuridão, como se uma nuvem tivesse passado em frente ao sol, e com a sombra veio uma súbita aragem fria. E Cleo escutou, sobressaltada, alguém a falar, mas como ouviria ela com tanta clareza quando o serviço fúnebre decorria lá fora? Deus, na Sua infinita misericórdia, escolheu levar para junto de Si a alma desta jovem criança…

Criança?

E nesse momento surgiram das sombras duas figuras, duas mulheres de véu, enlutadas da cabeça aos pés, os seus vestidos arrastando-se sobre as lajes poeirentas. Voltaram-se para olhar para o altar, invisíveis do outro lado da igreja e, ao virarem-se novamente para a frente, uma delas levantou o véu, e o olhar que dirigiu a Cleo era tão sombrio e gélido como o ambiente à sua volta.

As figuras voltaram a mergulhar nas sombras, deixando no ar um intenso aroma a rosas.

A igreja iluminou-se novamente, e uma voz atrás dela disse, no tom distinto e frio da mulher inglesa de educação esmerada: – Posso ajudá-la? Estava à procura de alguma coisa em particular?

Cleo rodou nos calcanhares e deu por si cara a cara com a mulher de cabelo grisalho.

– Estou apenas de visita. Como a porta da igreja estava aberta, entrei. Se calhar não devia estar aqui, por causa do funeral. Acabei de ver duas pessoas de luto.

– Ai sim? Tenho as minhas dúvidas. E o funeral é lá fora, no cemitério, e não aqui dentro.

– Estas flores são para o funeral?

A mulher soltou uma gargalhada estrondosa.

– Espero bem que não. Ninguém dispensaria uma rosa para o Arthur Foxton. Vai haver um casamento amanhã, estamos prestes a começar um ensaio.

Diante do altar, a mulher de cabelo castanho estava a falar com as duas raparigas que olhavam atentamente para ela. A sua voz bem modulada flutuava distintamente até ao fundo da igreja. – Depois ela entrega-vos as flores.

A mulher de cabelo grisalho estava a olhar para Cleo com mais atenção. – Eu sei quem é. Deve ser Miss Otway.

Como é que esta mulher sabia o seu nome? – Sim, sou a Cleo Otway.

– Bem me quis parecer. Não se parece nada com a sua mãe.

Era quase uma acusação, mas uma observação a que Cleo estava tão habituada que a aceitou com naturalidade. – Não, não pareço nada. Saio ao meu pai.

– Mr. Falconer trouxe-a de Londres, não trouxe? Onde é que ele está?

– À minha espera, suponho – disse Cleo. – É melhor ir an­dando.

A mulher estendeu a mão. – Bem-vinda a Trewithiel e a Landrake, Miss Otway. Eu sou Mrs. Harbinger. Havemos de nos voltar a encontrar. Estou certa de que há-de achar a sua estadia aqui uma experiência interessante.

2 Pato e Dragão. (N. da T.)

3 Pato macho. (N. da T.)

4 Decani, parte do coro na zona sul da igreja. (N. da T.)

2

Cleo saiu da igreja e apressou-se a subir o caminho até à estrada. Fitz Falconer estava à sua espera, encostado ao capô do Lagonda. Tirando do bolso uma cigarreira, estendeu-a a Cleo. Ela abanou a cabeça e ele tirou um cigarro, bateu com ele no lado da fina cigarreira de prata, pô-lo na boca e apalpou o bolso à procura de um isqueiro. – A ver as atracções? A igreja é normanda e vem em todos os guias de viagem.

Abriu-lhe a porta e ela entrou, reclinando-se no banco de couro.

– Há um monumento enorme lá dentro – disse ela.

Fitz sentou-se ao volante mas não pareceu querer arrancar. – De mármore, branco, vermelho e preto, pilares, brasões no topo, isabelinos de rufos ajoelhados a toda a volta? É o jazigo de família dos Landrake.

– E também têm placas na parede? Vi uma para Virginia Landrake.

Fitz fez uma pausa antes de responder. – Ginny. Era sobrinha de Jerry. Morreu quando era criança.

– Parece que estão lá umas pessoas a ensaiar para um casamento.

– A filha do vigário casa-se amanhã. O nosso vigário é primo dos Landrake, é aquele que está acolá a celebrar o serviço fúnebre.

– Era alguém seu conhecido? É uma criança que está a ser enterrada?

– Santo Deus, não. É o velho Foxton, que entregou finalmente a alma ao Criador. Estava doente da última vez que cá estive. Ninguém sabe que idade tinha, mas devia ter mais de noventa anos.

– Não pertencia à família então – disse Cleo. – Não era um Landrake.

– Não. Era o velho mais maldoso da aldeia e os Foxton vivem aqui provavelmente desde o tempo dos Normandos. Não me acredito que alguma vez, em toda a sua vida, tenha ido mais longe do que St. Jermyn, a vila mais próxima daqui, a cerca de oito quilómetros. Era o guarda de caça, assumiu o posto no tempo do último Lord Landrake e manteve o lugar quando o Jerry herdou o título e a casa. Antes de o Foxton se tornar guarda de caça, era o caçador ilegal mais astuto por estas bandas. Quer-me parecer que há bastantes vizinhos que estão contentes por vê-lo partir… era um velho intrometido e cruel e não havia nada que se passasse na aldeia e na região que ele não soubesse.

Recostou-se, o fumo do cigarro elevando-se em espirais, os olhos postos na cena em baixo. O vigário fechara o livro de orações e estava a afastar-se da campa, falando com o homem de vestuário formal.

– Quem é o homem de cartola? – perguntou Cleo.

– Presumo que não se refere aos agentes funerários ao pé da sebe. O homem que está a falar com o vigário é o seu novo padrasto, Lord Landrake. É muito meticuloso nos seus deveres de senhor feudal. Foi simpático da parte dele ter vestido roupa formal, e estar presente no último tributo ao velho patife.

Fitz abriu o cinzeiro no painel de instrumentos em nogueira e apagou o cigarro antes de ligar o motor. – Já tinha estado na Cornualha antes? – perguntou, mudando de velocidade para levar o carro pela subida íngreme.

– Nunca.

– Era um reino, há muito tempo. Segundo muitos córnicos, ainda é.

– O rei Marco e Isolda, claro, e o rei Artur. – Cleo refugiou-se no conforto das lendas familiares, cuja ilusão parecia mais real do que o túnel verde pelo qual estavam a circular, um túnel formado pela abóbada dos ramos frondosos das árvores de cada lado da estrada estreita e poeirenta. A luz tremeluzia por entre as folhas, uma extraordinária combinação de verdura exuberante primaveril e luz do sol radiosa, muito mais brilhante do que alguma vez se vira através do manto de fumo de Londres.

O Lagonda saiu do túnel e Cleo, espantada, sentiu o olhar ser atraído para cima. Sobre eles agigantava-se uma imensa casa de pedra, um exército de janelas de pinázios reluzindo à luz do sol da tarde.

– Bem-vinda a Landrake – disse Fitz, mudando de velocidade quando a estrada se tornou mais íngreme.

– É Landrake House? Não fazia ideia. Sabia que era uma casa grande, mas não tinha imaginado nada a esta escala.

– Não é assim tão grande para uma casa isabelina. Casas prodigiosas como Longleat e Wilton House são muito maiores. Mas é imponente quando se vê assim por cima de nós. Daqui a nada perdemo-la de vista quando a estrada curvar outra vez. – Enquanto falava, a estrada descreveu uma curva e a casa desapareceu atrás de um muro de árvores.

Súbita e inesperadamente, a estrada acabou. À frente deles encontrava-se um grande portão de granito em arco. Fitz buzinou e um homem saiu por uma porta lateral. Olhou para o automóvel, tocou com o dedo na testa e desapareceu. Um minuto depois, o portão foi aberto e Fitz avançou.

Ao transporem o arco, Cleo levantou os olhos e viu as extremidades pontiagudas de uma ponte levadiça que se aninhava no seu habitáculo de pedra. – Impede, com certeza, a entrada de visitantes indesejáveis – comentou ela. – Muito Elsinore, não é?

– Há muito tempo que essa ponte levadiça não é descida e não vamos recebê-la com tinas de óleo a ferver. Nem vamos montar um espectáculo de assassínios e feitos sobrenaturais. Costumava haver aqui um fosso, mas já desapareceu há muito.

Depois de passarem o arco, ele parou o carro ao lado da casa da guarda, um pequeno mas elegante edifício de pedra, e gritou uma saudação ao porteiro que fechou o portão e se aproximou do carro.

– Prazer em vê-lo de volta, Mr. Fitz – disse o homem, mas os seus olhos estavam fixos em Cleo.

– Esta senhora é Miss Otway, a filha da nova Lady Landrake. Vi que o vigário estava ocupado a enterrar o Foxton.

– Bem-vinda a Landrake, Miss Otway – disse o homem. – Sim, é verdade, estão a pôr o velho Arthur debaixo de sete palmos de terra, se bem que as palavras bondosas do pastor não o levem a nenhum lado a não ser lá abaixo; devo dizer que Satanás andou a rondar a cama dele nestes últimos dias, à espera de deitar a mão ao que é dele.

Continuaram então, avançando por um longo caminho de paliçadas brancas. Outra curva e mais uma vez os contornos de Landrake House, nítidos contra o sol, surgiram sobre eles. O caminho subia até à casa, numa sucessão de curvas, de tal modo que, num momento, Cleo estava a olhar para a grande mansão isabelina e, no seguinte, para a aldeia de Trewithiel atrás, onde distinguia agora figuras minúsculas a sair do cemitério lá em baixo.

Saindo da última curva do caminho, chegaram diante de outro portão, desta vez aberto, entre duas couceiras de pedra, cada uma delas encimada por brasões gastos presos entre as garras de dragões desgastados pelo tempo.

Cleo susteve a respiração quando Fitz transpôs o portão e parou junto da enorme porta de entrada em carvalho. Landrake House estava construída em forma de «E», com o traço central mais curto do «E» formando um pórtico que se erguia a toda a altura da casa. Sobre a porta, estava gravado na pedra outro conjunto da cota de armas dos Landrake. Mais acima, o pórtico elevava-se até dois pilares de pedra rematados com basiliscos que miravam, ameaçadores os recém-chegados. O edifício respirava força e poder, e Cleo foi invadida por uma sensação algo semelhante ao desespero. Sentiu-se oprimida pelo seu tamanho, pela sua pedra sombria, pela nuvem de história que pairava sobre ele. Foi como se tivesse saído da verdura do campo para outro mundo, um mundo estranho, diferente e ameaçador.

– Quantas divisões há aqui? – perguntou Cleo.

Fitz saíra do automóvel e estava a contornar o carro até ao lado dela no momento em que a grande porta de carvalho se abriu e um lacaio de libré saiu para o cumprimentar.

– Boa-tarde, Sam – disse Fitz. – As malas amarradas atrás são de Miss Otway. Eu só trouxe uma maleta e levo-a pessoalmente. – Virou-se para Cleo. – Julgo que há cerca de cem divisões, mas nunca contei. – Vendo a sua expressão de espanto, riu-se. – Inclui as salas nas águas-furtadas e todas as outras pequenas divisões e escritórios que existem numa mansão como esta. Há uma ala nas traseiras que actualmente está fechada, e o pessoal doméstico não é nem a quarta parte do que era antes da guerra. Embora o meu cunhado goste de receber, não o faz a ponto de requerer estas divisões todas.

Cleo seguiu-o pelos degraus pouco fundos mas, antes que pudessem entrar, o lacaio chamou-o para lhe fazer uma pergunta sobre o carro. Ele deteve-se e com um sorriso breve indicou a Cleo que deveria entrar, que não tardaria a juntar-se a ela. Depois voltou-se e desceu as escadas, deixando-a sozinha.

A porta da frente fechou-se atrás dela com um rangido e um ruído surdo. Ela pestanejou, os seus olhos adaptando-se à obscuridade no interior. Sentiu o cheiro a cera e um vago odor doce que poderia provir da taça de prata com rosas pousada na mesa de mármore de um lado do átrio. Para lá desta entrada, havia uma larga escadaria de madeira que subia, dava para um patamar e continuava a subir sem fim.

Aqui o ar estava novamente gélido, a mesma frieza que sentira dentro da igreja. Susteve a respiração quando o seu olhar foi atraído para um retrato enorme que dominava o vestíbulo. Num tamanho maior do que o natural, era o retrato de uma mulher com um vestido de noite preto, da década de mil oitocentos e noventa, com um enorme leque de penas pretas na mão. A pose era convencional, mas a mulher nunca poderia ter sido uma pessoa convencional. Uns olhos de falcão ardiam num semblante régio; devido aos efeitos da luz, pareciam os mesmos olhos que vislumbrara na igreja. Devia ter visto uma reprodução deste retrato algures, daí ter imaginado esta mesma mulher a emergir das sombras. Recuou em direcção à porta, querendo escapar àquele olhar que parecia trespassá-la.

A porta abriu-se e Fitz juntou-se a ela. – Ah, é um retrato da Viúva. Era a mãe de Lord Landrake. Extraordinário, não é, a forma como os olhos parecem seguir-nos? Alguns retratos são mesmo assim. Era uma mulher excepcional.

Uma das portas largas de um lado do átrio abriu-se, a luz derramando-se pela entrada, e a mãe dela surgiu, numa entrada perfeita, com o ar absoluto da castelã desta casa extraordinária. Rosina cumprimentou a filha com palavras de alegria e boas-vindas, suaves e harmoniosas, cingindo Cleo no seu já familiar abraço perfumado.

– Querida, que prazer ver-te. Não fiques aí como uma alma perdida, entra. – Um homem alto e magro, de traje severo, aparecera no átrio. – Vamos tomar já o chá no salão, Franklin.

– Imediatamente, my lady.

My lady! Desde que tinha memória, Cleo vira a mãe ser tratada em cena de todas as formas, de vossa majestade para baixo, mas a mãe não estava agora num palco. Já não era Miss Rosina Otway, agora era Lady Landrake, uma baronesa, possuidora de um título que lhe pertencia legitimamente e não lhe fora conferido enquanto uma peça estivesse em cena.

Com vontade de rir devido ao absurdo da situação, seguiu a mãe pela porta e deu por si de volta ao passado. O salão estava apainelado do chão ao tecto em madeira escura, com um friso intricadamente esculpido de uma cornija que confinava com o elaborado estuque do tecto. As janelas de pinázios estavam rodeadas de pedra e as pequenas vidraças quebravam a vista em dezenas de paisagens minúsculas.

Rosina sorriu ao ver Cleo a admirar a sala. – Vais habituar-te, querida. É uma casa extraordinária, e parte dela encontra-se exactamente como estava na época isabelina; Shakespeare pode tê-la visitado, pensa só nisso! Não ponhas esse ar alarmado, uma coisa que a casa tem, graças ao Jerry, são casas de banho e sanitários adequados.

Era típico de Rosina: de Shakespeare a retretes de uma assentada.

A porta abriu-se e o mordomo entrou com uma grande bandeja de prata na qual estava um bule, canecas, açucareiro e várias outras peças de prata cuja utilidade Cleo apenas podia adivinhar. Seguia-o uma criada a empurrar um carrinho onde se viam pratos repletos de torradas com manteiga, bolos, muffins e minúsculas sanduíches. A criada era, por sua vez, seguida por Fitz, que olhou com um ar aprovador para a comida no carrinho e disse que esperava que fossem sanduíches de pepino.

A criada dispôs de forma rápida e eficiente as chávenas e pires delicados na mesa baixa ao lado de Rosina, e pôs-se depois em sentido enquanto Franklin perguntava se Sua Senhoria pretendia mais alguma coisa.

Cleo reparou noutra criada à porta. Esta usava um vestido preto de criada de sala, um avental branco debruado a renda e uma touca branca. Embora impecável, bem brunido e imaculadamente engomado, era de corte antiquado, muito mais do que o uniforme da outra criada. Era o género de vestido que ela teria usado para uma criada numa peça passada no princípio dos anos vinte e não hoje. Virou a cabeça quando a mãe lhe dirigiu a palavra e, quando voltou a olhar, a criada desaparecera.

Fitz estava a atacar as sanduíches e Cleo, que adorava bolo de chocolate, preparava-se para aceitar uma fatia quando a mãe disse, num tom de advertência: – Querida, tem cuidado para não comeres de mais porque, como vais perceber, o jantar é uma refeição substancial.

Rosina, escrupulosamente atenta à sua figura, era cuidadosa com o que comia desde que Cleo tinha memória. Pessoalmente, Cleo fora abençoada com um excelente apetite e uma figura esbelta inalterável que, na sua opinião, tinha a ver com o facto de nunca pensar se o que lhe apetecia comer engordava ou não. Assim, serviu-se do bolo sem mais do que um sorriso à mãe, que pegou numa chávena de chá sem leite e, usando uma pinça de prata, deitou lá dentro uma rodela de limão.

Entretanto, Fitz, que possuía claramente a mesma abordagem de Cleo à comida e que, Cleo adivinhava, pouco tinha senão osso e músculo por baixo da roupa de boa confecção, encheu o prato com sanduíches de pepino e foi sentar-se à janela a comê-las.

– Vimos o Jerry na igreja – disse ele enquanto comia. – Imagino que foi certificar-se de que o velho Foxton era bem enterrado. A cerimónia estava quase no fim, suponho que o Jerry estará aí a chegar.

– Tem um grande sentido do dever – murmurou Rosina. – E vai ter um fim-de-semana terrível na igreja, com o casamento amanhã e o baptizado no domingo à tarde.

– Junte a isso a aula no domingo de manhã e há-de estar quase tão ocupado como o vigário – disse Fitz.

– Devem ser eles agora – disse Rosina, quando soou o motor de um carro a aproximar-se e a afastar-se logo de seguida. – Vai levar o carro para a cocheira, suponho.

Ouviram-se passos e vozes no átrio. A porta abriu-se e Lord Landrake entrou no salão, ainda com o traje negro. Sem olhar para Cleo, dirigiu-se imediatamente a Rosina e beijou-a na face.

– A dar cabo do estômago com chá? Bolo de chocolate, óptimo, vou comer uma fatia.

– Querido Jerry, esta é a Cleo.

– Valha-me Deus – disse ele. – Peço desculpa por não tê-la visto logo. Não te teria reconhecido como filha da Rosina e a minha nova enteada.

Era um homem de estatura média, rosto magro, com cabelo a embranquecer bem-arranjado e um bigode impecavelmente aparado. Um homem habituado a ser obedecido; um homem que podia muito bem desafiar o talento inato de Rosina para manipular os homens.

Apertaram a mão. Um aperto firme, um sorriso que não lhe passou da boca, e Cleo teve a impressão de que, quando saísse da sala, ele não seria minimamente capaz de a descrever. Passou os olhos por ela, não para registar nada, mais por indiferença. – Bem-vinda a Trewithiel e a Landrake House. Sei que vives e trabalhas em Londres, é de louvar a maneira como vocês, raparigas modernas, fazem por ganhar a vida, e espero que consideres agora Landrake House como a tua casa.

Considerar esta casa extraordinária como sua? Ele estaria a ser sarcástico? Provavelmente não, não parecia ser um homem naturalmente dado ao sarcasmo. Apesar da cortesia das suas palavras, não havia afectividade na sua voz. Usava um belo fato, era evidente que recorria a um bom alfaiate.

– Tens de conhecer as minhas filhas – continuou Lord Landrake. – As tuas irmãs por afinidade. – Riu-se, não de divertimento mas como se a ideia de irmãs por afinidade constituísse um embaraço. – Imagino que estão na galeria.

Rosina levantou-se da cadeira. – Querida, eu levo-te lá.

Lord Landrake franziu a testa. – Não há necessidade disso. Tenho a certeza que a Cleo se orienta; chamamos uma das criadas para a levar. Prometeste-me um jogo de croquet.

– Quero dar à Cleo o presente que lhe trouxe da América, prometo que não demoro. E tu precisas de mudar de roupa. – Tocou-lhe no braço, num gesto afectuoso e possessivo. – Antes de desceres já eu estou no relvado. Prometo.

3

Rosina conduziu Cleo para fora da sala, através de uma outra porta e ao longo de um corredor estreito e com lambris. – É mais rápido do que se formos pela escadaria principal – disse.

– Para onde vamos? – perguntou Cleo, enquanto a mãe a levava por uma longa e confusa série de corredores e escadarias.

– Para o teu quarto – respondeu Rosina, detendo-se em frente a uma porta apainelada. Nesta havia um pequeno suporte de latão com um cartão que tinha o nome de Cleo impresso numa letra elegante. – A casa de banho é a segunda porta à direita – acrescentou, abrindo a porta, e Cleo deu por si num quarto que lhe fez lembrar o cenário de uma peça isabelina. Tudo em tons de carmesim, com tecidos ricos nas janelas e em volta da cama de dossel, onde viu também uma capa de damasco de um vermelho intenso e uma pilha de almofadas de seda. Havia uma pequena poltrona de brocado de um dos lados da lareira, e depois de percorrer a divisão com o olhar, Rosina deixou-se cair nela.

– É um quarto encantador, querida, com uma vista deslumbrante.

Cleo lançou um olhar aprovador à mãe. O vestido que escolhera para o chá era perfeito, pois embora não fosse demasiado vistoso, em Rosina possuía uma certa aura dramática.

– Que lindo vestido – disse. – Não é propriamente o teu estilo habitual, mas assenta-te bem.

– Sim – disse Rosina. – Tão confortável… é um alívio, porque não preciso de usar um espartilho apertado. – Descalçando os sapatos, pôs os pés em cima da poltrona e reclinou-se contra as almofadas. – O teu presente está em cima da mesa.

Cleo pegou no magnífico embrulho. – Tiffany, mas que extravagante!

– É só uma lembrancinha. – Rosina indicou a cadeira do outro lado da lareira. – Senta-te, querida, preciso de falar contigo.

Cleo sentou-se e desembrulhou o presente, retirando o papel de seda e revelando um alfinete em forma de Fénix, ao estilo art déco.

– Que bonito!

– É para usares, não para guardares numa gaveta. Vai ficar-te lindamente, tem muito mais a ver contigo do que as pérolas e o estilo de coisas que agradam mais a jovens como a Philippa Landrake.

Cleo apercebeu-se de que a mãe estava a fazer conversa. Voltou a colocar a jóia na caixa e pousou-a no colo. – Então?

– Tem a ver com o Jerry – disse a mãe, soltando um leve suspiro. – Reparaste como anda preocupado?

Realmente, Lord Landrake parecera preocupado. – Como é que posso saber que anda preocupado, se não o conheço? Pode ser a sua expressão habitual – disse Cleo.

– Querida, eu nunca me casaria com um homem que traz os problemas do mundo às costas, sabes isso. No dia do nosso casamento, era a pessoa mais despreocupada do mundo, acredita. Só depois de chegarmos a Landrake é que ficou assim e é a razão da preocupação dele que quero discutir contigo.

Os motivos das preocupações do padrasto eram indiferentes a Cleo, desde que não tivessem nada a ver com Rosina.

Não tinham.

– O Jerry está a ser vítima de chantagem – disse Rosina.

Cleo pestanejou. Nunca esperou que a mãe dissesse tal coisa. Por momentos, ficou demasiado surpreendida para conseguir dizer alguma coisa. Depois recompôs-se. – Lord Landrake? Vítima de chantagem? Por quem? Porquê?

Rosina abanou a cabeça. – O problema é esse, não faz ideia. Nunca se sabe, pois não? Não é essa uma das principais características da chantagem?

– Ele disse-te que estava a ser vítima de chantagem?

– Não propriamente.

– Estás a ser evasiva – disse Cleo. – Como é que sabes que ele está a ser vítima de chantagem se ele não te disse? Encontraste alguma carta com ameaças a exigir dinheiro, foi isso?

– Já sabes que não me agrada muito pôr os óculos – disse Rosina.

Cleo sabia-o bem. A visão da mãe nunca fora boa, mas sempre detestara usar óculos. Agora atingira uma idade em que a visão estava a piorar e, vaidade ou não, precisava realmente da ajuda dos óculos. – Arranja um par de óculos vistosos, uma coisa diferente. Além disso, quando estás na tua própria casa, quem se importa ou não que leias de óculos?

– Não sejas ridícula, querida. Vê-me o Jerry, e é ele que importa, não é?

– Não tarda muito estás cega que nem um morcego, mais vale resignares-te e consultares alguém decente que saiba o que está a fazer. Bem, mas não interessa, diz-me o que é que os teus olhos têm a ver com esta história de chantagem? – Cleo pensou que sabia a resposta e tinha razão.

– Abri por engano uma carta dirigida ao teu padrasto. Vinha num envelope como os que a Felicity usa, lembras-te da Felicity Farren, não lembras? A actriz? Usa sempre envelopes grossos, num tom creme. Por isso, abri-o sem prestar muita atenção ao nome e ao endereço. E lá dentro estava uma folha de papel horrível escrita à máquina em letras maiúsculas.

– Eram palavras recortadas de jornais?

– Jornais? De que é que estás a falar?

– Não é o que fazem os chantagistas e as pessoas que mandam cartas anónimas?

– Não faço ideia. Esta carta estava escrita à máquina. Não a teria lido, mas só quando cheguei a meio é que percebi que não era para mim. Eram instruções para mandar uma grande soma de dinheiro, em notas de libra, para uma morada em Londres.

O coração de Cleo caiu-lhe aos pés. Em que estaria Lord Landrake metido? – Podia ser um pedido de pagamento de uma factura pendente.

– Não. Esses pedidos não acabam com ameaças: «Pague, senão tudo o que sei será revelado à sua família, à polícia e aos jornais.»

Cleo teve de concordar com Rosina; tratava-se de chantagem. – Havia alguma indicação da causa da chantagem?