Ficha Técnica

Título original: A Costa dos Murmúrios

Autor: Lídia Jorge

Capa: Atelier Henrique Cayattc, com a colaboração de Rita Múrias

ISBN: 9789722042024

Publicações Dom Quixote

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VIII

Mas deixemos a chuva. Helena telefonou para o hall, e eu voltei à casa italiana. Deveria não ter voltado, mas voltei. Todo o epílogo começou aí. Voltei, pisando centenas, milhares de gafanhotos caídos. As formigas levavam-nos e comiam-nos. Os gafanhotos arrastados pelas forcas das formigas lembravam miniaturas de estátuas egípcias carregadas por escravos, a caminho das areias. Havia pelas ruas um mar de formigas puxando gafanhotos. Era impossível o pé não os pisar, a caminho da casa de Helena. O machimbombo passava o rodado sobre eles como os tornados passam sobre os campos e as praias. Tudo tinha semelhança com tudo, a caminho da casa de Helena.

Parei à entrada. Havia um bulicio de água sobre as folhas e a atmosfera estava cinzenta, quase roxa. Choveu? Não, não choveu verdadeiramente, mas dir-se-ia que os mainatos estão a regar alguma coisa saturada de água. Pelo corpo dos mainatos a água escorre e leva-lhes os calções pelas pernas abaixo. Seven-Up segura os seus no último instante. É por isso que a mainata Odília ri. Helena tem de trancar as janelas para não ouvir nem ver o espectáculo da rega. São dez da manhã. Faz dois meses e meio que Helena não sai do recinto heptagonal da casa italiana. Helena tem o cabelo tão comprido que nem dá para empeçar. Ou não o empeça e não arma sobre o empeço dos caracóis, porque a sua tristeza, como no dia anterior, ainda é descomunal. Diz, como se falasse duma doença incurável, que esperou e não aconteceu — Agora já não acredita. Desistiu de acreditar.

Fico a olhá-la. Evita sabia que um demónio a espreitava para lhe entregar para a mão a forquilha do garfo dentado. Um demónio metafísico, reluzente, encarnado. Evita avaliava quanto a árvore da sabedoria era do demónio, e a erva da inocência pertencia a Deus e seus correligionários. Helena está triste, desceu à simplicidade, e por isso está com Deus, está sob a alçada da sua santa guarda. Evita está espreitando junto da peluda barriga do demónio. É por isso que Helena só diz o que Evita sabe antecipadamente que Helena vai exarar — Helena deseja morrer. Quer morrer, porque não suportará o regresso de Jaime contra quem se fechou em casa durante oitenta dias, negociando o desaparecimento de Jaime, negociando com Deus. A religiosidade de Helena atrai e perturba. Nem sempre, contudo, Deus negoceia com as pessoas coisinhas preciosas como pensões de viuvez, medalhas póstumas, cerimónias lindas com viúvas de guerra ouvindo as salvas e as morteiradas. Helena não foi ouvida, e por isso vai querer morrer. Ela já recebeu a notícia de que chegou um rádio com um texto indestrutível — eles vão voltar dentro de três dias, e nada, absolutamente nada, aconteceu. Helena, contudo, quer aniquilar-se quando os mainatos estiverem bêbedos como cachos. Quer embebedá-los com bom vinho, para quando acordarem, já ela estar definitivamente morta, e acordando eles possam ir correndo, chamar o capitão à base, com os seus enormes pés pretos e descalços. Quando o capitão chegar, ela não quer estar viva.

O demónio? Pois o demónio sabe, não ri mas sabe que não é verdade, sabe que ela não quer morrer, ela só quer imaginar como a chorariam depois de morta, para se certificar do choro, da pena e da impossibilidade de ser substituída no coração das pessoas que a estimam, que a conhecem e amam. Helena de Tróia diz que quer matar-se com aquela veemência, só porque quer viver. Morrer significaria ter a coragem de renunciar à imaginação de que se é amado, e Helena não tem coragem — ela é a pessoa mais débil que inspira e expira naquela costa. Evita sabe — o diabo não ri, o diabo espera.

Helena despe-se para morrer a morte fingida. De costas, tira a camisa, fica nua, quer que mais uma vez uma pessoa pense que é impossível encontrar uma mulher assim, quer que a descreva, que a elogie, que bendiga o fragmento da Natureza que ela encerra e constitui. Mostra os braços, a veia azul deles, espreme-a, diz que vai à tina, que vai abrir a veia azul para dentro da tina, que me quer ali para eu a ver abrir os rios principais do seu corpo. Imagina a água morna da tina passar de incolor a cerise, e de cerise a vermelho intenso. Imagina que se esvai como uma planta, que eu a tomo, pálida como um puré de ananás, e a coloco na cama, vestida de azul. Imagina que há um momento em que todos a abandonamos, eu, os mainatos do vinho, e que pela janela aberta entram os mosquitos, as formigas, as vorazes formigas de África, as baratas voadoras do tamanho de pássaros, que batem nas janelas às trombadas como os pássaros, e a chuva dos gafanhotos. E cada espécie, a seu modo, com sua espécie de mandíbula, a rata, a engole e devora. Devora?

Helena sobressaltou-se. Sentou-se na borda da tina, o italiano tinha-a feito de mármore, é um belo recipiente oval aquele onde Helena está sentada com o vestido azul nos joelhos, de encontro ao peito nu. Não, não... Tinha chegado ao limite. Nesse quarto, rejeita a última etapa, transpira, ultrapassa as patas de todos esses animais indecentes de África, enxota-os e sacode-os, quer-se incólume. Tem de escolher outro dia, recomeçar, reiniciar outra vez aquela imagem, porque o seu desejo de morte é duma furiosa vitalidade. Evita adorava ver a vitalidade.

«Você está a imaginar um projecto lindo, adoro ouvir um projecto assim, com tanta coragem, tanta beleza! Cumpra, por favor, esse plano! Tátá!» — disse-lhe. Deixo-a sozinha na borda da banheira como no início está o embrião, ou o ovo. Deixo-a. Atravesso o quintal onde os mainatos ainda riem, os calções ainda escorrem.

Mas não decorrem vinte e quatro horas que eu não reatravesse o living sem ar condicionado. Pela manhã o telefone tocou e não era Helena de Tróia, era a sua mainata. Será que Helena cortou a veia? Engoliu um frasco? Usou uma das cinco armas que tem dentro do gavetão? Esfaqueou a carótida? Já atravessei o living. Os peixes no meio da sala romana, a que Helena dá nome inglês, parecem um molho de répteis, ápodos feridos, debatendo-se sob o vidro. Sem ar condicionado, a sala é uma estufa onde amadurecem os objectos. Ao atravessá-la, creio que se o climatizador se mantiver desligado, nascerá um bolor até ao tecto. Tudo o que for de metal oxidará até ficar verde-esmeralda, tudo o que for coiro curtirá até ficar podre, e os tecidos que pendem aqui e além criarão manchas ruivas como as verónicas. Não consigo deixar de ver essa catástrofe dos objectos sob o calor. Sinto que também é um disfarce e uma mentira aquele tipo de sala, numa terra onde as papaias deixam cair os frutos do tamanho de melões, com um plof de saco. Oxalá Helena tenha o ar condicionado ligado dentro do quarto, de outra forma receio vê-la rodeada de bolor sobre as mãos, ver sair dos seus lençóis fungos do tamanho de arbustos. Se cortou a carótida o sangue já se decompôs e ferveu em redor da bela adormecida. A bela adormecida, em África, deveria ser acordada pelo príncipe dentro duma luminosa floresta de fungos. «Entra!» — diz ela de dentro. Não morreu.

Vou entrar. Dentro do quarto .Helena tem o climatizador ligado, ele vibra até, embora Helena viva tenha a persiana quase descida, e através dela apenas se veja uma sombra esfumada do mar. De vez em quando, porém, através do zunido do climatizador, o fumo do mar ergue-se, e dentro do quarto parece ouvir-se o rebentamento da onda. O mar desenrola-se pela praia como o cabelo vermelho de Helena se espalha pela almofada de cambraia. Toda a dobra do lençol é de renda. Procuro o vestígio do seu tormento na dobra do lençol, numa prega da cambraia, numa franja do cabelo. Não encontro, não tem. Helena mostra a placidez da neve, lembra uma princesa de pedra deitada sobre a tampa do seu sarcófago. Coberta de neve. Sou obrigada a rodeá-la, a vê-la de perto, a olhá-la de lado e de frente. Uma mulher que se sabe bela como Helena não atravessa drama, não tem tragédia. Não pode ter tragédia quem tem o perfil de Helena, e a perna de Helena. Ela pôs uma perna fora do lençol. Os músculos gémeos de Helena não se vêem, por mais que Helena comprima o peito do pé. Tenho a perna de Helena na minha mão, peço-lhe que a curve para ver a actuação dos gémeos. A perna apenas toma um pouco mais de volume e engrossa. Passa-se o mesmo com a coxa. Helena abre e fecha a coxa. O seu slip é tão escasso que melhor fora não o ter. Helena puxa os joelhos, senta-se, levanta o assento, retira o slip, escorre-o pelas pernas sempre unidas, estende-se. O braço move-se como uma sombra imaginada.

«Tranca a porta» — diz Helena.

Vista da porta, Helena assemelha-se a um narciso com uma mosca no meio. A mosca tem a cor dos cabelos da cabeça de Helena, senão mais arruivada ainda. É a primeira vez na vida que vejo uma mulher sem slip, no meio dum lençol. Não me surpreende contudo a mulher de que conheço o ser, mas a beleza que é seu acidente. Pergunto-me da porta o que pensará o caçador de pretos ao atravessar a porta e ao olhar para Helena. Procuro traçar uma ligação fortuita enquanto não me movo da porta — o caçador deve vê-la como um alvo que vai ser ferido com a bala mais tensa que traz à cintura. Penso que o capitão só pode sentir o aríete de carne que traz à cintura como uma bala. O que é o capitão mais do que um bom matador de pretos com um código de honra e uma folha de sacrifício? Não sei o que esse homem foi — possivelmente até procurou na harmonia dos números um senso de que também desistiu. Nada do que penso é um julgamento, mas apenas uma contestação. Agora, se o capitão entrasse, ele seria o bom matador, cicatrizado, com uma grande bala folicular à cintura. Mas se Helena de Tróia em vez de encontrar um capitão num baile de Carnaval tivesse encontrado um talhante? Seria que o talhante a via como uma rés? Seria que amá-la seria procurar nela a carne do bife mais tenro? Com a ponta da sua faca de carne? E o homem do lixo? Como seria o homem do lixo? Veria o homem do lixo Helena como uma peça de entulho a cobrir de estrume? O homem do lixo enterrá-la-ia sob si mesmo, e o seu sexo seria apenas a forquilha que a ia enterrando de estrume? Helena a desaparecer sob uma fina camada de lixo, e depois a sumir, a encobrir o corpo sob o olvido de montanhas de estrume, era a ideia mais implacável que me chegava, vendo-a branca, tersa, disposta. Helena como um objecto de amor mutável conforme quem a procura? Ou no amor alguma coisa imutável de ser a ser, uma natureza guardada sem mudança no esconderijo da natureza? Ë isso — escondido. Pensei. Pensei no coveiro. O que faria o coveiro se lhe fosse dito que se dirigisse àquele quarto, trancado, climatizado, guardado diante do mar, onde o ar zunia, e chegasse com a pá e o alferce? Seria que o coveiro quereria enterrar Helena? Sim, quereria enterrar Helena. Deitando-se sobre Helena, quereria enterrá-la, ele, o homem do lixo, o talhante ou o caçador de negros, todos a quereriam enterrar. Essa imagem tornava-se insuportável vista da porta onde eu me encontrava, fechada a porta atrás da cintura, como se receasse que alguém a abrisse quando me afastasse da maçaneta. Era insuportável porque eu traçava escalas que corriam para cima e para baixo, imaginava no topo das escalas os sublimes, os salvadores da humanidade, os médicos devotos, os poetas, os prémios da paz, via-os entrarem naquele sarcófago, onde ela se encontrava, colocarem os pés no local onde eu os tinha, e só continuava a imaginá-los caminhando na direcção de Helena, arrastando o alferce e uma pá, uma enxada, e ouvia a terra bater, bater, sob a lâmina fria, o som saindo e arremetendo-se contra as paredes faiscantes do cemitério cheio de ciprestes amarelos da minha cidade, que eram sem dúvida idênticos aos do cemitério dos brancos da cidade da Beira. O raso cemitério da Beira é que era igual aos grandes e sinistros da minha cidade. O demónio, peludo e terno na maciez do seu carácter defensor da invulnerabilidade, sacudia a anca de gato bravo, abandonava o seu posto, dava passagem a um fio de sofrimento. Não conseguia conter, por isso mesmo, a dimensão do grande diante do pequeno, nem do longínquo diante do próximo — disse Eva Lopo. Também diante de Helena tudo era igual a tudo. Helena estava perto do tape-tape do alferce, e os homens que a poderiam amar lindamente dispensavam uma tarde das suas vidas para aquele momento solene, abriam a funda cova do esquecimento, como se quisessem retirar dela mil toneladas de mármore, e logo partiam. Ou a pedreira era tão funda que não permitia o mármore, e por isso, apenas colocavam Helena, partiam. Não tinha ficado estúpida — Evita era eu. Ela sabia que era o despeito pela imperfeição do amor que a fazia castigar assim a parte da humanidade nascida com sexo comprido, por imperfeição do amor. Helena também sabia e dizia, com a sua leve inteligência de pombo, as palavras exactas. A sua inteligência devia ter suado gotas para o dizer.

«Vamos vingar-nos deles?»

Helena falava bem. A nudez devia clarificar-lhe a cabeça por dentro como um detergente com enzolves. «Sorry, sorry» — disse em inglês, para afugentar a inteligibilidade, na esperança de que, usando essas duas palavrinhas, aquele novelo não doesse, antes se desfiasse por si, às escuras, e parasse.

«Mas porquê?» — Helena de Troia juntou as pernas, sentou-se no côncavo dos seus tecidos leves, pós as mãos nos joelhos, e sobre as mãos, o queixo de pomba.

Não posso, Helena. Se me aproximasse de ti até te tocar, mergulharia num lodo cor de sangue. A natureza ou simplesmente o padre a quem me mandaram durante a meninice para me dizer junto das orelhas terríveis chis rolados, ou outra coisa qualquer como uma pedra ou um lenço encontrados por acaso num passeio, me impedem que te toque para outra intenção que não seja a de te contemplar. Fecho os olhos e prevejo uma espécie de catástrofe vermelha a partir da tua almofada de renda, que se alargaria até chegar ao mar azul para o tingir por inteiro dessa cor. Seria necessário voltar à mamada inicial para corrigir este defeito. Ou mesmo antes, porque não possuo nenhuma parte de corpo que te leve a enterrar no fundo do mármore, Helena de Tróia. O que amo em ti não tem enterro nem aspira a isso. Os homens sim, fazem-me feliz porque me enterram e me tornam mortal. Quero que um homem se ponha em cima de mim para me sentir mortal. Com uma gadanha e uma pá, e me enterre e me empurre até ao local donde se extrai o mármore, quando a terra fecha. Um homem com cinco membros erectos que me envolva como uma aranha envolve a mosca até esse pedaço de terra congelada, enterrada e por polir. Entre ti e mim a identidade é um espelho que nos reflecte e implacavelmente nos isola.

«Mas porque precisas de alguém e não sou eu?» — Helena de Tróia parecia querer voltar ao choro. Antes que chore, que derreta a sua inteligência de pombo em gotas de água e cloreto de sódio, que lhe molhem as mãos com tantas unhas, preciso abrir a porta atrás da cintura — nunca cheguei a mover-me da porta — e sair dali. Helena grita pela mainata.

«Odília!»

Não, não é preciso gritar. Eu sei ir. Pensemos em coisas justas, claras, como é o facto de estar o jardim em frente danificado pelos gafanhotos que se abateram sobre a verdura. É difícil caminhar sem que as solas escorreguem por cima dos gafanhotos tombados. Evita-se um, tomba-se noutro. Há ainda os que volteiam e batem na cara dos transeuntes como se nos tomassem por coisas transparentes — «Adeus, Helena de Tróia.» Não, nunca entrei pela porta do jornalista, mas sei que é aquela que está em frente, castanha, descascada. Ele é a única pessoa que conheço a quem poderei dirigir-me para pedir solidariedade, nessa manhã em que uma peguenhenta humidade sai da terra e não do mar nem do seu braço cor de lodo. Faz uma espécie de frio peguenhento também. O jornalista tem um robe pelo joelho, acaba de acordar. Estendo-lhe os braços — «Tremes?» Estou de facto a tremer. Aninho-me nele procurando a força dos cinco membros da aranha que me levem até ao fundo do celeiro de mármore. Aproximo a boca da boca do jornalista. Ele tem mau hálito, deve ter pelo menos um dente podre. O jornalista deve sabê-lo, porque põe a cara de lado. Não lhe largo a cara, espero sentir sob o robe o inchaço do seu quinto membro. Com essa vela içada, ele pode conduzir-me onde eu sozinha não posso entrar. O jornalista não se deixa inchar. Quer ir lá dentro lavar a boca. Mas antes de ir, senta-se porque o jornalista do Hinterland quer calma, quer compreender, quer falar a uma distância tal que não se lhe entorne o mau hálito sobre o meu nariz. Vamos lá a ver, afinal o que se passa? O jornalista vai lavar-se, volta vestido e calçado, batendo o tabaco sobre a unha. As meias dele dentro dos sapatos são um tranca á intenção com que entrei. Ele está no seu direito de calçar meias e pôr cinto — ele quer saber, quer compreender, tem todas as actividades intelectuais vivas depois da água nos dentes. Ele é um mar de inteligência que vai e vem, conforme fala e pergunta. Não lhe posso dizer nada assim trancado — penso que o amor é uma incompreensão, a beleza é um estorvo do amor, a fala o pior instrumento.

«Não é, não!» — diz ele, destrancando-se.

A casa era pequena e suja como a sua entrada, e o jornalista tinha plena consciência disso. Mesmo cheio de consciência, o jornalista desnudou-se e fez-me mortal — disse Eva Lopo.

Acha que esses são os passos que não deveriam ter sido dados? Faz bem achar. No seu relato eles estão ausentes quanto os anéis de Saturno estão das laranjeiras da Terra. Imagine o que seria se seguisse a realidade, e fizesse o jornalista sentar-se, logo a seguir ao almoço desse dia, no hall do Stella Maris, com o cabelo penteado, uma calça nova, uma revista debaixo do braço. Vejo-o — folheia a revista, cruza a perna, toda a gente do Stella sabe que está uma pessoa esperando obstinadamente por mim, no hall — disse Eva Lopo.

Ele vinha e sentava-se, e esperava, e não se importava com os olhares irradiantes de quem passava. O jornalista parecia estudar as portas que davam para o hall, passava a vista pela da entrada que havia sido escaqueirada pela gincana e agora parecia nova, e embora não fizesse ruído, punha os lábios no feitio de quem assobia. As mulheres dos alferes passavam lentas por entre os sofás e olhavam-no no pescoço. Acho que ele sentia o olhar e quanto mais assobiava, sem assobiar, mas rescendia a colónia e a medo. Vejo-o â distância — tinha uma pose triunfante de quem vem de atravessar com um pau, dentro de si, o frágil animal do medo que dormita dentro do homem, agarrado ao coração do homem. No excesso da colónia havia a compensação do suor do esforço. No exagero da roupa vincada, havia o contraponto da camisa amarrotada onde punha a mão para se debater contra o bicho gelatinoso do medo. A paz dos seus olhos não era paz — era a desistência do tormento. Ele sentava-se ali, não por mim — disse Eva Lopo. Mas para encontrar um pretexto para rebentar a bolha da sua vida. Ele procurava forma de cortar com África, as mulheres de África, os filhos inumeráveis desse tempo de África. Isso é que ele procurava. Um salto, uma transfiguração, um corte, uma desistência. Mas podia procurá-la noutro sítio e seguir as pisadas dos seus precedentes, em vez de se colocar no meio do hall com uma determinação apaixonada no olhar.

«Não é verdade!» — dizia ele. Mas eu sabia que era. «É».